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Guerra no Sudão destrói único centro de pesquisa de micetoma e ameaça avanços contra doença

26/05/2025

A perda do MRC não afeta apenas o Sudão; pacientes em regiões endêmicas, incluindo o Nordeste brasileiro, dependiam do conhecimento gerado pelo centro

A guerra civil no Sudão, iniciada em abril de 2023, devastou o Centro de Pesquisa de Micetoma (MRC) no Sudão, a única instituição mundial dedicada ao estudo e tratamento dessa doença tropical negligenciada (DTN). O episódio representa um revés para o enfrentamento à enfermidade, que afeta populações vulneráveis, incluindo comunidades rurais no Nordeste brasileiro. Recentemente, o centro havia publicado um estudo clínico inovador sobre o novo tratamento com fosravuconazol. “Hoje, o Sudão, que estava na vanguarda da conscientização sobre micetomas, regrediu 100%”, disse a Dra. Borna Nyaoke-Anoke, chefe de micetoma da Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi).

A chefe de comunicação da DNDi em Nairóbi, Linete Otieno, disse em comunicado que o MRC conduzia pesquisas e tratava micetomas, uma doença que causa infecções de crescimento lento, destruindo pele, músculos e ossos, e frequentemente levando à amputação. “Trabalhamos em estreita colaboração com o centro por anos, colaborando com o Dr. Ahmed Fahal e sua equipe em um importante ensaio clínico: o primeiro do tipo a demonstrar que o fosravuconazol poderia ser um tratamento mais eficaz e simples para o micetoma. No entanto, agora, até mesmo esse impulso foi perdido. O edifício foi destruído. E, com ele, mais de 40 anos de amostras de fungos essenciais para pesquisa e desenvolvimento. Ele precisa ser reconstruído. Não podemos permitir que esta doença seja ainda mais negligenciada”, completou.

Em abril, o conflito entre o exército sudanês e as Forças de Apoio Rápido (RSF) devastou o MRC. Laboratórios foram saqueados, equipamentos destruídos e a área de recepção incendiada, conforme relatado pelo diretor Ahmed Fahal. “Quatro décadas de amostras únicas, arquivos clínicos e o trabalho de uma equipe dedicada foram aniquilados”, afirmou. Ele detalhou que cepas raras de fungos, usadas para estudar resistência a antifúngicos, e freezers com material biológico foram perdidos, interrompendo ensaios clínicos de compostos como o fosravuconazol, promissor contra o eumicetoma. A violência dispersou a equipe com médicos e pesquisadores forçados a abandonar o local.

O micetoma caracteriza-se por tumores subcutâneos, fístulas e secreções granuladas, acometendo principalmente pés e mãos de trabalhadores rurais expostos a traumas, como os causados por espinhos de acácia. Mais de 70 espécies de micro-organismos, como o fungo Madurella mycetomatis e bactérias actinomicetos, causam a doença, que pode levar a deformidades permanentes e, em 25% dos casos graves, a amputações. No Sudão, onde a incidência global é maior, o MRC atendeu cerca de 12 mil pacientes desde 1991, incluindo 20-25% de crianças. No Brasil, o Ministério da Saúde registra aproximadamente 200 casos anuais, mas especialistas estimam uma prevalência até dez vezes maior, especialmente no Nordeste, devido à subnotificação.

Fundado em 1991 na Universidade de Cartum, o MRC consolidou-se como referência global, atendendo gratuitamente cerca de 8.500 pacientes por ano, provenientes de países como Senegal, Etiópia, Somália e Índia. O centro acumulou amostras biológicas, registros clínicos de 22 mil pacientes e dados genômicos de patógenos, todos essenciais para avanços como o primeiro ensaio clínico randomizado de novos fármacos. Além disso, o MRC oferecia acompanhamento pós-terapêutico e treinamento vocacional para pacientes com incapacidades, formava profissionais de saúde e desenvolvia protocolos diagnósticos, beneficiando nações endêmicas, incluindo o Brasil, por meio de colaborações com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A destruição do centro agrava os desafios no manejo do micetoma. O diagnóstico, tardio em 70% dos casos devido à falta de acesso a biópsias e culturas, depende de infraestrutura como a que era oferecida pelo MRC. O tratamento do actinomicetoma, com antibióticos como dapsona e cotrimoxazol, alcança 80% de eficácia, mas exige um período de 6 a 12 meses. O eumicetoma, mais comum, responde mal a antifúngicos como o itraconazol, com taxas de cura abaixo de 40%. Apenas 15% dos pacientes em áreas endêmicas concluem a terapia, devido a custos e desafios logísticos, conforme a DNDi. A perda do MRC, que oferecia tratamento gratuito e conduzia pesquisas para reduzir essas barreiras, deixa um vazio no atendimento global.

Um marco interrompido foi o ensaio clínico do fosravuconazol, conduzido pela DNDi com o MRC e a Eisai Co., divulgado em 2023. O estudo, envolvendo pacientes com eumicetoma moderado a grave, demonstrou que o medicamento oral, administrado semanalmente, reduz lesões com boa tolerância, oferecendo uma alternativa prática aos tratamentos intravenosos. “Este avanço representa uma esperança para milhões de pacientes afetados por uma doença que causa sofrimento e estigma”, afirmou a DNDi. A destruição do MRC ameaça a continuidade de estudos regulatórios e a expansão do acesso ao fosravuconazol.

A guerra no Sudão, que deslocou 13 milhões de pessoas e causou dezenas de milhares de mortes desde 2023, segundo a ONU, expõe a vulnerabilidade da ciência em zonas de conflito. A equipe do MRC busca apoio da OMS e da DNDi para estabelecer um novo centro, mas o financiamento, inferior a 1% dos recursos globais destinados a doenças infecciosas, limita as perspectivas. Iniciativas como a formulação oral de anfotericina B, desenvolvida pela Universidade da Colúmbia Britânica, permanecem em andamento, mas dependem de colaborações fragilizadas.

A destruição do MRC reverbera em todos os países endêmicos, incluindo o Brasil, onde a ausência de centros de referência dificulta o controle do micetoma. A OMS, que incluiu o micetoma em sua lista de doenças tropicais negligenciadas em 2016, defende a descentralização da pesquisa e o treinamento de profissionais. No Brasil, integrar o micetoma a programas de vigilância de doenças tropicais, como a dengue, poderia otimizar recursos, mas exige priorização. A doença reflete desigualdades estruturais, afetando desproporcionalmente populações marginalizadas. Esforços para combatê-la demandam colaboração entre governos, organizações internacionais e comunidades locais, com foco em prevenção, diagnóstico precoce e acesso equitativo a cuidados. As histórias de pacientes, marcadas por resiliência diante da dor e da exclusão, reforçam a urgência de transformar conhecimento em ações concretas.

Assista o vídeo “Mycetoma: Neglected but not Forgottenhttps://youtu.be/tborAwdLdDk.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**