Hanseníase: Tatus da Amazônia apresentam risco à população humana, alertam Dr. John Spencer e Dr. Moises Silva
Animais em outras regiões podem ser naturalmente infectados pelo agente da hanseníase, precisamos ampliar o estudo para confirmar a hipótese
14/08/2018A hanseníase, doença infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium leprae, afeta de dois a três milhões de pessoas no mundo, de acordo a dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil o Ministério da Saúde a considera como endêmica. Somente em 2017 foram diagnosticados 23 mil casos novos, sendo 5 mil na região norte, 5 mil casos no centro-oeste e 11 mil no nordeste brasileiro.
Recentemente um estudo publicado na revista especializada PLOS Neglected Tropical Diseases intitulado Evidence of zoonotic leprosy in Pará, Brazilian Amazon, and risks associated with human contact or consumption of armadillos alertou que mais da metade dos tatus selvagens que habitam a Amazônia brasileira testados são portadores do bacilo da hanseníase.
De acordo com os cientistas John Spencer, Colorado State University (EUA) e Moises Silva, Universidade Federal do Pará (UFPA), com quem a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) conversou, as pessoas no Brasil, particularmente nas áreas rurais, caçam e matam tatus como fonte alimentar. Na pequena cidade de Belterra, no oeste do Pará, a pesquisa com 146 moradores mostrou que cerca de 65% das pessoas tinham algum contato com os tatus, por meio da caça, manipulação para preparo e posterior ingestão da carne. Ainda segundo os pesquisadores, um grupo de indivíduos que comia tatus com maior frequência (mais de uma vez por mês) apresentava um título de anticorpos significativamente maior e um risco quase duas vezes maior de ser diagnosticado com doença, um risco significativo.
Para saber mais sobre o assunto, confira abaixo a entrevista na íntegra com os cientistas Dr. John Spencer e Dr. Moises Silva.
SBMT: Como surgiu o interesse neste tema e nesta região?
Dr. John Spencer: Tenho trabalhado o Dr. Claudio Salgado e sua equipe por quase 10 anos, principalmente na vigilância e busca ativa de casos novos de hanseníase no estado do Pará. Este projeto foi proposto pela estudante de mestrado, Juliana Portela da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), com orientação dos profs. Antônio Minervino (UFOPA) e Claudio Salgado na Universidade Federal do Pará (UFPA). Inicialmente, tínhamos dúvidas que a exposição a tatus poderia afetar as pessoas que vivem em uma área hiperendêmica, como o estado do Pará, já que existe tanta exposição ao Mycobacterium leprae entre humanos, e mais de 60% da população mostra níveis elevados de anticorpos contra o antígeno PGL-I do M. leprae, mas quando vimos um título de anticorpos muito maior no grupo que come tatus a maioria (50% maior) e que houve uma quase duas vezes mais risco de ter a doença devido a esse comportamento, isso é uma forte evidência de que a hanseníase pode ser uma doença zoonótica espalhada de tatus para os seres humanos, assim como no sul dos EUA.
SBMT: Como a pesquisa foi realizada?
Dr.John Spencer: Este foi um projeto que incluiu meus colaboradores brasileiros (Claudio Salgado, Moises Silva, Josafá Barreto, todos da UFPA; Marco Andrey Frade na USP-Ribeirão Preto, e Antonio Minervino na UFOPA), holandeses da Leiden University Medical Center, (Annemiek Geluk); e suíços da Polytechnique Federale de Lausanne, Suíça (Stewart Cole e Charlotte Avanzi), além de pesquisadores da minha universidade, Colorado State University. A pesquisa foi realizada em todas estas instituições ao longo de um período de 3 anos.
SBMT: Quais os próximos passos?
Dr. John Spencer: A evidência para transmissão zoonótica de hanseníase de tatus para humanos em Louisiana e Texas foi comprovada usando sequenciamento genômico completo do M. leprae isolado de ambos, pacientes e tatus, mostrando que houve uma correspondência exata do tipo de cepa. Existem duas variantes genéticas muito específicas do M. leprae em tatus do Texas e da Louisiana (SNP tipo 3I-2-v1) e outra em tatus infectados no centro da Flórida no município de Volusia (SNP tipo 3I-2-v15) que foi identificado em 2015 como a capacidade para infectar humanos. Recentemente, foi relatado o primeiro caso conhecido de hanseníase endógeno em uma criança na Flórida, com a única exposição conhecida à doença sendo contato com tatus no quintal. Estamos tentando definir o tipo genético do M. leprae circulante nessa área no estado do Pará para mostrar que o tipo encontrado em tatus também é encontrado em pacientes com hanseníase.
SBMT: O que explica mais da metade dos tatus que vivem na Amazônia brasileira apresentaram o DNA do Mycobacterium leprae?
Dr. John Spencer: Tatús de nove-bandas, conhecido como tatu-galinha, tatu-verdadeiro, tatu-de-folha, tatu-veado e tatuetê, são nativos da América do Sul e Brasil. Eles expandiram seu alcance do México ao Texas por volta de 1850, chegando ao norte e leste para preencher todos os estados do sul nos EUAA, onde verificou-se que eles têm uma taxa de infecção de 15-20%, isto significa que os seres humanos poderiam infectar com M. leprae os tatús, em primeiro lugar e, em seguida, eles foram foram capazes de devolver a infecção aos seres humanos há décadas. Porque tatus são nativos do Brasil, onde a hanseníase ocorre em taxas muito altas, e mais elevadas ainda nos estados do norte e nordeste. Os seres humanos provavelmente infectaram tatus com M. leprae há muito tempo, talvez há mais de 300 anos, e esta é uma explicação possível para que tatus nesta região sejam naturalmente infectados (62%) com maior frequência que no sul dos EUA.
SBMT: O mesmo pode ocorrer com tatus de outras regiões brasileiras? Por quê?
Dr. John Spencer: Provavelmente. Isto é provável porque a hanseníase ocorre em todos os estados do Brasil. A incidência é maior nos estado do centro-oeste, norte e nordeste, e menor nos estados do sul, mas não elimina a hipótese.
SBMT: Outros animais desta localidade podem testar positivos para a Mycobacterium leprae? Por quê?
Dr. John Spencer: outros animais em outros estados ou regiões podem também podem ser naturalmente infectados. Pesquisas precisam ser realizadas a partir de uma região mais ampla para examinar isso.
SBMT: Em relação às transmissões nos Estados Unidos, como ela ocorreu? Não seria necessária uma pré-disposição para desenvolver hanseníase?
Dr. John Spencer: Como mencionamos no artigo científico, 90% de todas as pessoas de todo o mundo são resistentes à infecção por micobactérias que causam a tuberculose, hanseníase, e outras doenças micobacterianas, então, aproximadamente 10% das pessoas são suscetíveis a doenças causadas por estas micobactérias e se forem expostas por longo período de tempo elas serão infectadas e desenvolverão essas doenças.
SBMT: Levando-se em consideração as altas taxas de hanseníase na Amazônia, acredita-se que a rota de transmissão tatu-humanos não seja um fenômeno recente na região. Há indícios de quando isso teve início? E qual a rota específica?
Dr. John Spencer: Como eu mencionei acima, só podemos especular que tatus foram infectados pelos colonos europeus e escravos que trouxeram a hanseníase para as Américas do Norte e do Sul há 500 anos. Os seres humanos com hanseníase, provavelmente infectaram tatus simultaneamente a outros humanos, e o ciclo de infecção zoonótico (animal-homem) iniciou, mas levou pelo menos 100 anos, semelhante ao que ocorreu no Texas e Louisiana nos EUA.
SBMT: Como se dá a transmissão e como evitar?
Dr. John Spencer: Um caso de hanseníase não diagnosticado ou não tratado libera por aerossol o bacilo causador da doença, e pessoas sensíveis a infecção vão contrair a doença. A cadeia de transmissão só pode ser contida com programas sérios de diagnóstico e tratamento precoce. O ciclo de infecção entre tatus e homem também pode ocorrer por aerossol, pelo contato com sangue, ou a partir de solo contaminado.
SBMT: os autores estão pensando sobre a transmissão da hanseníase ANTES da vinda dos europeus, se o tatu é um animal do Novo Mundo e a hanseníase já era endêmica há milênios no Velho Mundo?
Dr. John Spencer: Dessa forma, conforme mencionado no artigo, apesar de que os tatus sejam originários da América do Sul e coexistiram com populações indígenas nativas dezenas de milhares de anos atrás, não havia hanseníase entre humanos ou tatus até a chegada dos exploradores europeus em 1500. A hanseníase existia na Europa desde pelo menos 700 D.C. na França, depois migrando para o norte e infectando toda a Europa, o Reino Unido e a Escandinávia. Quando os colonizadores (Portugueses, Ingleses, Holandeses, Espanhóis, Franceses, etc.) chegaram ao Novo Mundo nas Américas do Norte e do Sul, no início dos anos 1500, eles trouxeram a hanseníases e a espalharam (bem como outras doenças) entre os indígenas nativos, bem como entre eles próprios nas suas colônias nas Américas do Norte e do Sul. Em algum momento nos últimos 500 anos, os tatus na América do Sul se infectaram com M. leprae de humanos com hanseníase. Tatus somente chegaram ao Texas por volta de 1850, então levou um tempo para que eles contraíssem a doença de humanos no sul dos Estados Unidos. Não existe consenso sobre como eles contraíram, mas provavelmente foi através do solo contaminado (eles são escavadores). Uma vez atingida certa taxa de infecção entre os tatus, eles puderam transmitir de volta para os humanos através de contato direto, como tem feito atualmente no Texas, Louisiana e Florida.
SBMT: Os senhores acham que a doença é uma antroponose no Velho Mundo e é uma zoonose apenas no Novo Mundo?
Dr. Moises Silva: Não, no novo mundo a hanseníase também é uma infecção de caráter de transmissão antrópica, sendo este o alvo para o controle da infecção. O diagnóstico precoce dos casos de hanseníase, impedindo a dispersão do bacilo e evitando que os pacientes adquiram incapacidades físicas. A transmissão zoofilica, no Brasil, apresenta caráter secundário no processo de transmissão da doença. Tatus silvestres naturalmente infectados, isoladamente, não são responsáveis pela manutenção dos mais de 3 mil casos novos de hanseníase no estado do Pará detectados anualmente (dados de 20016 – SINAN). O controle da doença é multifatorial e dependente de ações que vão desde o aumento da cobertura da estratégia saúde da família – que em Belém, capital do estado do Pará, é de apenas 22% (2016), quanto do monitoramento dos casos notificados, e avaliação de seus comunicantes, quanto na aplicação de supervisão, suporte e treinamento de profissionais da saúde para a detecção dos casos iniciais da doença, incluindo ações nas escolas de ensino fundamental e médio.
SBMT: Gostaria de acrescentar algo que não foi contemplado acima e que considera importante?
Dr. John Spencer: Este trabalho representa o trabalho mais significativo eu publiquei na minha carreira, e a publicidade suporta isso. Todos os nossos colaboradores brasileiros e outros são muito orgulhosos deste trabalho, que levou 3 anos de árduo esforço para completar o estudo.
O melhor conselho para evitar contrair a hanseníase, no ciclo zoonótico, é limitar a exposição de uma pessoa a tatus. As pessoas que caçam, matam ou preparam a carne para cozinhar devem tomar precauções para não serem expostas a sangue, tecidos ou fluidos corporais (use luvas ao preparar ou manusear a carne). Cozinhe a carne totalmente para não consumir carne crua. No ciclo natural da doença dependemos da melhoria da qualidade de vida da população, incluindo melhorias sanitárias, bem como a ampliação da cobertura da estratégia saúde da família, com o treinamento de profissionais da saúde para o reconhecimento dos sinais e sintomas da hanseníase. O diagnostico precoce, com a notificação dos casos no SINAN e o correto tratamento é a única forma do Brasil alcançar o controle real da hanseníase.
Como discutido no artigo, muitas pessoas nas áreas rurais do Brasil comem tatus como fonte de proteína, mas também fazem parte de sua existência social e cultural, que ocorre por gerações. Os tatus para muitas pessoas são considerados uma iguaria, e como são grandes animais, um caçador que pega um pode compartilhá-lo com a família e os amigos, é uma festa. Por essas razões, não é provável que essa cultura ou comportamento mude, mesmo que essas pessoas tenham conhecimento de tatus transmitindo doenças (e contamos a cerca de 75 pessoas nesta cidade em uma reunião sobre isso, e elas pareciam não se perturbar com este fato, afirmando que eles ainda comem tatus).
Este é um momento importante para a publicação deste artigo, porque mostra uma nova possível via de transmissão, exatamente quando o Ministério da Saúde está discutindo uma alteração do esquema de tratamento dos pacientes de hanseníase, substituindo o esquema utilizado no mundo todo (multidroga terapia – MDT) com grande eficácia por diferenciar as formas clínicas dos doentes, por um esquema único (MDT-U), que trata todos os casos, independente da gravidade, com as mesmas medicações pelo mesmo tempo.
Esperamos que este artigo os alerte que ainda não temos o controle da doença e nem de suas vias de disseminação, então a redução do tempo de tratamento, de 12 para 6 meses, é um risco enorme para a população. A Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH) tem uma posição clara de que não existem dados suficientes para apoiar a implantação do MDT-U, e deixa claro que o treinamento e a capacitação da rede básica de saúde com a finalidade de aumentar a detecção da endemia oculta de hanseníase é o único caminho para o Brasil controlar a hanseníase.
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**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**