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HKU5-CoV-2: novo coronavírus em morcegos reacende alerta sobre riscos zoonóticos e necesidade de vigilância global

Capacidade de infectar células humanas impulsiona debates sobre prevenção e monitoramento

10/03/2025

Pesquisadores investigam o HKU5-Cov-2 enquanto monitoram a interface entre espécies

A identificação do HKU5-CoV-2, um novo coronavírus encontrado em morcegos na região de Hong Kong, na China, em fevereiro de 2025, intensificou os alertas sobre riscos zoonóticos. Isolado por uma equipe liderada pela virologista Dra. Shi Zhengli, do Instituto de Virologia de Wuhan, em colaboração com pesquisadores do Laboratório de Doenças Infecciosas de Guangzhou, o vírus pertence ao subgênero Merbecovírus, o mesmo que inclui o vírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV). O estudo, publicado na Nature em 19 de fevereiro de 2025, Newfound bat virus that uses notorious receptor poses ‘spillover’ risk, baseou-se em dados preliminares divulgados no bioRxiv em dezembro de 2024.

O HKU5-CoV-2 utiliza o receptor da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) humano para infectar células, mecanismo também observado no SARS-CoV-2, responsável pela pandemia de Covid-19. A análise estrutural da proteína spike, realizada por microscopia eletrônica criogênica (Crio-EM), revelou que o domínio de ligação ao receptor (RBD) exibe maior alta afinidade pelo ACE2 humano em comparação com outros Merbecovírus associados ao MERS-CoV. Em testes laboratoriais, a infecção foi observada em culturas de células humanas, com replicabilidade inferior à do SARS-CoV-2. Estudos com camundongos transgênicos expressando o ACE2 humano confirmaram a capacidade de replicar, mas sem eficiência significativa, sugerindo que o vírus ainda não está plenamente adaptado para mamíferos além dos morcegos. “A interação com o ACE2 indica um potencial de spillover, mas a eficiência de transmissão depende de adaptações adicionais”, destaca o estudo da Nature.

A análise genômica, realizada por sequenciamento de nova geração (NGS), revelou que o HKU5-CoV-2 é geneticamente próximo ao MERS-CoV, apresentando traços de recombinação genética dos coronavírus de morcegos. O vírus foi isolado de morcegos do gênero Rhinolophus, conhecidos reservatórios naturais desses patógenos. Testes sorológicos em moradores de áreas próximas aos locais de captura em Hong Kong não detectaram anticorpos contra o HKU5-CoV-2, indicando ausência de transmissão humana até o momento. A equipe da Dra. Shi Zhengli também buscou evidências em outros animais, mas não encontrou infecção em possíveis hospedeiros intermediários.

O virologista Dr. Fernando Spilki, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), integrante da Rede Nacional de Monitoramento e Sequenciamento do Genoma do Coronavírus no Brasil, e professor da Feevale, destaca a necessidade de vigilância ativa: “A capacidade desse vírus de se ligar ao ACE2 humano requer atenção. Morcegos são reservatórios naturais de coronavírus e o histórico de SARS, MERS e Covid-19 demonstra que saltos entre espécies acontecem. Precisamos monitorar ativamente e avançar no estudos para entender esse risco e no desenvolvimento de ferramentas diagnósticas e candidatos vacinais”, ressaltou. O Dr. Spilki coordena estudos que monitoram espécies animais no Brasil por meio de sequenciamento genômico para detectar ameaças emergentes.

O Dr. Spilki explica que o monitoramento de vírus circulantes em animais silvestres busca identificar agentes com potencial zoonótico, ou seja, capazes de infectar humanos. Um dos critérios analisados é a capacidade do vírus de se ligar a receptores celulares humanas, o primeiro estágio para a replicação viral. “O que chama a atenção, nesse caso, é a ligação ao receptor ACE2, o mesmo usado pelo SARS-CoV-2. Esse potencial, assim como a patogenicidade em modelos animais mais próximos do humano, precisa ser avaliado para entender se há risco de disseminação entre nós. O foco é monitorar de forma abrangente e realizar análises acuradas de todo vírus com esse perfil”, afirmou.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) mantém o vírus sob observação, em colaboração com centros de referência internacionais. Em Hong Kong, autoridades intensificaram a vigilância com testes de RT-PCR em tempo real, rastreando o vírus em populações de morcegos e em indivíduos expostos a animais silvestres. A descoberta ocorre às vésperas do quinto aniversário do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, registrado em 26 de fevereiro de 2020. A pandemia, que resultou em mais de 700 mil mortes no País até 2022, evidenciou a importância de sistemas de alerta precoce. Nos últimos 30 anos, a emergência de novos patógenos tem se acelerarado. Em 2024, variantes do SARS-CoV-19, como a XEC, pertencem à linhagem Ômicron, circularam com letalidade reduzida.

O virologista reforça a necessidade de vigilância ecológica e medidas preventivas. “Além da ligação ao ACE2, o salto entre espécies depende do contato com animais silvestres ou hospedeiros intermediários que o vírus consiga infectar, como ocorreu com o SARS-CoV-2. A destruição de habitats desestabiliza o bioma e aumenta essa possibilidade. Países de grande biodiversidade e impacto ambiental, como Brasil, Sudeste Asiático e África Equatorial, são áreas onde novas emergências podem surgir, exigindo monitoramento e preparação, alertou.

A interface entre humanos e ecossistemas naturais segue como um dos principais pontos de debate. Cada espécie carrega um conjunto próprio de vírus (viroma), e a disrupção ambiental pode facilitar a transmissão para humanos. Na China, o comércio de fauna silvestre, restrito desde 2020, ainda persiste em algumas regiões. No Brasil, o desmatamento na Amazônia e a expansão urbana aproximam comunidades de reservatórios naturais de vírus. Pesquisas em andamento utilizam modelos experimentais para avaliar a patogenicidade do HKU5-CoV-2, enquanto cientistas em Hong Kong investigam sua prevalência em morcegos do gênero Rhinolophus.Sobre a resposta nacional, o Dr. Spilki destaca avanços, mas aponta desafios. “A pandemia ampliou nossa capacidade de sequenciamento genético e metagenômica, mas seguimos sem laboratórios de biossegurança nível 4, essenciais para projetos de alto risco. Projetos como o Orion, em Campinas, são estratégicos, mas é preciso fomento contínuo para garantir que redes de pesquisa tenham capacidade de desenvolver e fabricar diagnósticos e vacinas. Além disso, a colaboração internacional, com troca de informações como na Covid-19, é fundamental: o Brasil deve buscar protagonismo, e não apenas uma participar perifericamente nessas redes”, afirmou.

O virologista recomenda evitar contato com animais silvestres e estar atento a sintomas respiratórios atípicos, especialmente em viajantes. “O HKU5-CoV-2 é um exemplo dos esforços globais de monitoramento, mas não deve ser superestimado como a próxima pandemia. Precisamos vigiar sua circulação no ambiente e em humanos, assim como ocorreu com o monkeypox, que emergiu sem aviso. Doenças já conhecidas, como a disseminação do Oropouche e o avanço da dengue no sul do Brasil, devem permanecer como prioridades na agenda governamental. A proteção ambiental e a saúde única são fundamentais não apenas para a sociedade, mas também para a estabilidade econômica”, concluiu.

O HKU5-CoV-2 segue sob análise, enquanto a ciência busca de respostas em um cenário no qual a história recente reforça a urgência da vigilância epidemiológica. A memória da pandemia de Covid-19 ainda ressoa, mantendo o mundo em alerta.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**