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Leishmania: uso de parasitas deficientes em centrina para produção de vacina

Atualmente, não existem vacinas disponíveis contra qualquer forma de leishmaniose humana

10/08/2020
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Uso de parasitas atenuados vivos, que não são virulentos, pode ser usado da mesma forma para desenvolver vacinas de leishmania

Na maioria das infecções humanas da Leishmania, as pessoas são resistentes à reinfecção após a cura clínica, o que sugere que é possível desenvolver uma vacina contra a Leishmaniose. A prática de inoculação voluntária conhecida como leishmanização que foi usada em alguns dos antigos países da União Soviética, Irã e Israel com parasitas leishmania virulentos vivos de uma lesão cutânea causada por parasitas leishmania muitas vezes resultou em lesões descontroladas e desde então foi abandonada. Mas uma pesquisa recentemente publicada na revista Nature A second generation leishmanization vaccine with a markerless attenuated Leishmania major strain using CRISPR gene editing, mostra que essa realidade pode mudar. Até agora estudos com seres humanos não foram realizados, no entanto, de acordo com um dos autores, os testes podem começar em um futuro próximo.

Para saber mais sobre o assunto, a Assessoria de Comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), entrevistou o Dr. Hira Nakhasi, diretor da Divisão de Doenças Transmissíveis Emergentes do Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica do Food and Drug Administration (FDA/CBER, sigla em inglês).

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: Como o senhor teve a ideia de usar parasitas deficientes de centrina para vacinação?

Dr. Hira Nakhasi: Começamos com uma visão fundamental de que algumas das vacinas virais mais bem-sucedidas até o momento são compostas por organismos vivos atenuados. Em relação à leishmaniose humana, embora a melhor proteção contra a reinfecção tenha sido observada após uma inoculação deliberada, conhecida como leishmanização ou cura de uma infecção natural, esses métodos não são seguros para fins de vacinação. Por isso, focamos em no método de imunização mais seguro possível, criando um parasita Leishmania vivo atenuado, geneticamente modificado por CRISPR-Cas, o método de manipulação genética mais preciso que está atualmente disponível para nós. Nós focamos no gene centrin para exclusão desde que mostramos que a deficiência deste gene na Leishmania resulta em defeitos específicos no estágio amastigota durante a divisão celular e produz uma cepa de parasita mutante que é altamente atenuada em sua virulência. Hipotetizamos que a replicação limitada de parasitas Leishmania mutantes deficientes em centrin no hospedeiro vertebrado permite que o hospedeiro desenvolva uma imunidade protetora análoga ao que foi observado na leishmanização, mas sem qualquer patologia. Até agora, todos os nossos estudos pré-clínicos em vários modelos animais confirmam que parasitas Leishmania deficientes em centrin podem vir a ser uma potente vacina profilática.

SBMT: Há quanto tempo trabalha com esses parasitas? Você pode contar um pouco sobre essa história tão interessante?

Dr. Hira Nakhasi: Com base nas experiências bem-sucedidas com as vacinas virais vivas atenuadas, pensamos que parasitas vivos atenuados, que não são virulentos, poderiam ser usados da mesma forma para desenvolver vacinas contra Leishmania.  Assim, há 20 anos, começamos a estudar a biologia da Leishmania e identificar os genes que poderiam ter um papel relevante na virulência da Leishmania. Depois, pensamos que se tais genes fossem alterados, tais parasitas poderiam ser usados como vacinas vivas atenuadas. Durante esse processo, selecionamos o gene centrin, que quando modificado, resulta em parasitas Leishmania com um defeito na divisão celular durante a fase amastigota, a forma virulenta do parasita. Primeiro, estudamos a função genética de centrin e a caracterização imunológica dos parasitas sem centrin em Leishmania donovani e, mais recentemente, em L. major. Durante esses estudos, fomos bastante beneficiados pelas colaborações de especialistas na área de Leishmania, como Dennis Dwyer, David Sacks e Jesus Valenzuela no NIH, com quem temos bastante proximidade. Os principais avanços no nosso conhecimento acerca da imunidade protetora dos parasitas sem centrin como potenciais candidatos à vacina ao longo dos anos vieram de diversos estudos, como o papel das células T polifuncionais, células T efetoras de IFN-g+, a importância de testar vacinas contra uma infecção transmitida por flebótomos em vários modelos animais.  Nossos primeiros resultados com parasitas sem centrin despertaram interesse em trabalhos colaborativos internacionais, inclusive de pesquisadores no Brasil que compartilham o objetivo de controlar a leishmaniose humana [Ricardo Fujiwara e Rodrigo Oliveira]. Mais recentemente, nosso trabalho com parasitas sem centrin como candidatos à vacina avançou ainda mais com colaboradores da Ohio State University, EUA, McGill University no Canadá, Nagasaki University no Japão, Pasteur Institute, Tunis e a indústria Gennova Biopharmaceuticals na Índia como parceiros. Esses estudos tiveram apoio do FDA, NIH, GHIT, Japan e Welcome trust, Reino Unido ao longo dos anos.

SBMT: Quão bem-sucedidas são estratégias semelhantes para outros microrganismos como Mycobacterium tuberculosis?

Dr. Hira Nakhasi: Como descrito na literatura, estratégias semelhantes de vacinação contra Mycobacterium tuberculosis e Plasmodium falciparum estão em diversos estágios de desenvolvimento e esperamos ver alguns candidatos promissores em um futuro próximo.

SBMT: Por que o senhor acha que não existem vacinas disponíveis contra qualquer forma de leishmaniose humana?

Dr. Hira Nakhasi: Na maioria das infecções humanas da Leishmania, as pessoas se tornam resistentes à reinfecção após a cura clínica, o que sugere que é possível desenvolver uma vacina contra as leishmanioses. A prática de inoculação voluntária conhecida como leishmanização que foi usada em alguns dos antigos países da União Soviética, Irã e Israel com parasitas Leishmania vivos virulentos, oriundos de lesões cutâneas causadas por Leishmania, muitas vezes resultou em lesões descontroladas e, desde então, foi abandonada. A segurança contra lesões cutâneas indesejadas não foi um desfecho garantido neste cenário. Os preparativos para vacinas usando parasitas Leishmania mortos e antígenos recombinantes ou vacinas de DNA, abordagens que produziram algumas vacinas altamente bem-sucedidas contra patógenos virais e bacterianos, mostraram-se inadequados para induzir uma proteção robusta. À medida em que novas ferramentas para testar a eficácia das vacinas anti-Leishmania se tornaram disponíveis, descobrimos que as vacinas anti-Leishmania que apresentaram resultados promissores quando testadas com uma inoculação por agulha em modelos animais comumente utilizados na literatura, não mostraram proteção contra o modelo natural de desafio, ou seja, o vetor flebótomo transmitindo Leishmania.  Isso sugeriu que componentes do flebótomo que desempenhavam um papel importante nas leishmanioses, o que complicou ainda mais o desenvolvimento da vacina. Além disso, a complexidade do genoma de Leishmania (~8500 genes, cerca de um terço do número de genes de uma típica célula humana) revelada nos estudos de genoma, destaca as potenciais interações multivalentes entre o parasita e seu hospedeiro que resultam na patogênese. Nossa compreensão limitada acerca desses problemas nos impediu de desenvolver uma vacina eficaz.

SBMT: Você estudou a imunidade gerada pelas células T-CD4 e mostrou que elas desempenham um papel crucial na proteção contra LC. Mas e as células T-CD8?

Dr. Hira Nakhasi: A imunização com parasitas LmCen-/- induz tanto as respostas das células T-CD4 e T-CD8 em modelos pré-clínicos com animais. Observamos que a produção de células T-CD4 e T-CD8, que secretam o antígeno experimentado, a citocina multifuncional IFN-g/IL-2/TNFa, foi induzida nos animais imunizados. Além disso, o LmCen-/- também induz células CD8 T secretoras de IFN-g e células T citotóxicas específica de granzyme B nos animais imunizados. Um papel definitivo das células T-CD8 em induzir proteção precisa ser formalmente demonstrado.

SBMT: Você acha que os efeitos diferenciais da dicotomia Th1 e Th2 na leishmaniose cutânea vista em camundongos também estão presentes em espécies mais suscetíveis, como hamsters, cães e humanos? Você acha que a proteção conferida por camundongos eficientes em centrin também ocorrerá nestas espécies? Por quê?

Dr. Hira Nakhasi: Sim, observamos uma resposta imune predominante do tipo Th1 em hamsters, cães e em células mononucleares de sangue periférico de humanos semelhantes aos camundongos após a infecção por LmCen-/-. Além disso, observamos que a proteção foi dada por parasitas LmCen-/- contra leishmaniose visceral em hamsters, bem como devido à indução de uma potente imunidade protetora envolvendo respostas de células T-CD4 e T-CD8.

SBMT: Uma vez que centrin é essencial na duplicação de centrossomos em eucariotos, incluindo a Leishmania, por que eles persistem por um tempo? A propósito, por quanto tempo eles persistem?

Dr. Hira Nakhasi: Observamos que a exclusão do centrin permite uma replicação limitada, onde amastigotas se tornam células multinucleadas, multi-organela e assim, a sua sobrevivência no hospedeiro é afetada. Observamos que os parasitas deficientes em centrin ficam indetectáveis após 12 semanas. É possível que um pequeno número de parasitas possa sobreviver indefinidamente, como revelado por nossos experimentos de imunossupressão.

SBMT: Em seu artigo você declarou que L. major permanece na pele no local da infecção e não causa a doença visceral. Mas que certeza você tem de que eles protegeriam contra espécies visceralizantes?

Dr. Hira Nakhasi: A partir de nossos estudos preliminares aprendemos que os parasitas LmCen-/- induzem um forte tipo de resposta imune Th1 nos linfonodos, bem como que os animais imunizados ficam protegidos das espécies visceralizantes da Leishmania.

SBMT: Por que a L. donovani deficiente de centrin é viável em culturas axenicas, mas não em macrófagos infectados?

Dr. Hira Nakhasi: Os parasitas L. donovani deficientes em centrin são viáveis como promastigotas axênicos, mas são rapidamente eliminados em culturas de amastigotas axênicos por morte por apoptose, indicando que a proteína centrina funciona de forma específica no estágio de crescimento da Leishmania. Parasitas L. donovani deficientes em centrina não sobrevivem em macrófagos como você afirmou, já que a fagocitose por macrófagos a seguir, diferenciam parasitas de Leishmania em amastigotas.

SBMT: Por que a presença de genes de resistência a antibióticos em qualquer vacina viva atenuada torna a vacina inaceitável pelas agências reguladoras para testes de vacinas em humanos?

Dr. Hira Nakhasi: Independentemente dos requisitos das agências reguladoras, é desejável que as vacinas sejam preparadas livres de materiais alheios, como genes de resistência a antibióticos e outras substâncias com ácidos nucleicos exógenos, o que pode impactar a segurança e a eficácia das vacinas.

SBMT: Os resultados com L. major deficientes em centrin são promissores para a infecção causada pelo complexo L. donovani ou espécies relacionadas distantes com Leishmania do complexo Viannia?

Dr. Hira Nakhasi: Sim, em nossos estudos preliminares observamos que a imunização por LmCen-/- confere proteção contra L. donovani e nos resta saber se uma proteção semelhante poderia ser gerada contra outras espécies de Leishmania pertencentes ao complexo Viannia.

SBMT: O senhor já tentou imunizar camundongos imunodeficentes com parasitas deficientes de centrin? Se não, você tem planos para isso?

Dr. Hira Nakhasi: Testamos parasitas L. major deficientes em centrin em modelos de camundongos knockout RAG, STAT-1 e IFN-g e mostramos que nenhuma lesão se desenvolveu nesses camundongos até 20 semanas após a inoculação, o que demonstrou as características de segurança dos parasitas mutantes. No entanto, não testamos a imunogenicidade em tais modelos de camundongos.

SBMT: O senhor já começou estudos humanos com L. major deficiente em centrina?

Dr. Hira Nakhasi: Até o momento não iniciamos os estudos em humanos, no entanto, planejamos realizá-los em um futuro próximo em conjunto com nossos colaboradores.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**