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Leishmaniose tegumentar: pesquisadores desenvolvem biocurativo para tratamento menos doloroso

Tratamento da leishmaniose ainda conta com medicamentos com efeitos adversos potencialmente graves

10/09/2022
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Curativo a base de celulose bacteriana trata leishmaniose tegumentar ou cutânea

Considerada uma Doença Tropical Negligenciada (DTN) por afetar populações vulneráveis, a leishmaniose tegumentar, ou cutânea, é classificada como um problema de saúde pública no Brasil. Em 2019, foram confirmados 15.484 novos casos no País, com coeficiente de detecção de 7,37 registros a cada 100 mil habitantes, segundo dados do Ministério da Saúde. A doença causa lesões cutâneas com várias características clínicas, desde lesões com cicatrização lenta até cicatrizes permanentes, resultando em estigma social e transtornos psicológicos que afetam negativamente a qualidade de vida das pessoas acometidas.

Sem tratamento, a doença pode ter consequências bastante graves. Entretanto, o tratamento da leishmaniose cutânea depende de múltiplas injeções de derivados de antimoniato, o que já representa um problema, já que a doença atinge pessoas que vivem em áreas rurais longe de centros urbanos, e que vão precisar se deslocar diariamente durante 20 a 30 dias para tomar as injeções. Atualmente várias terapias alternativas estão em desenvolvimento tendo em vista os desafios dos derivados de antimoniato, que incluem dor no local da injeção, alto custo, efeitos adversos, eficácia variável, resistência aos medicamentos. Além disso, um tratamento no qual não seja necessário o paciente submeter-se a tratamentos tóxicos em internações hospitalares e que possa ser aplicado em casa, seria um dos maiores benefícios que impactaria diretamente na vida de quem sofre com as lesões cutâneas causadas pela leishmaniose tegumentar.

A equipe da Dra. Camila Indiani, da Fiocruz Bahia, juntamente com colaboradores da área da química e da pesquisa clínica, tem realizado estudos com o curativo a base de Celulose Bacteriana (CB), um nanomaterial produzido por bactérias gram negativas, de várias espécies dos gêneros AcetobacterPseudomonasAchromobacterAlcaligeneAerobacter e Azotobacter. A pesquisadora explica que estruturalmente, a CB é formada por uma rede de fibras de celulose compostas por microfibrilas, apresenta alta pureza, alto teor de água e excelente propriedade mecânica, características relevantes para a sua aplicação prática. Ainda segundo ela, a CB é um candidato ideal a ser testado como biocurativo, pois apresenta biocompatibilidade, ausência de toxicidade e favorece a cicatrização. “Assim, a CB é indicada para o   tratamento de pequenos traumas, queimaduras, dentre outras. Também pode ser empregada como um sistema de liberação sustentada, ou seja, fármacos podem ser formulados na CB, associando as suas propriedades de cicatrização a um composto microbicida, por exemplo”, destaca.

Neste contexto, a equipe da Dra. Indiani, em colaboração com o Dr. Hernane Barud, da Universidade de Araraquara (Uniara), realizou testes com o dietilditiocarbamato (DETC), um inibidor de superóxido dismutase. “Inicialmente, realizamos ensaios no laboratório, em sistemas in vitro e, depois, em modelo pré-clínico de infecção por Leishmania, envolvendo camundongos. Nestes ensaios, mostramos que o DETC associado à CB reduziu a carga parasitária e impactou negativamente no desenvolvimento da lesão”,  assinala. Ainda segundo a Dra. Indiani, estes resultados motivaram a realização de um ensaio piloto, prova de conceito, em pacientes com leishmaniose cutânea, atendidos na área de Corte de Pedra, município de Tancredo Neves, Bahia. “Em colaboração com o Dr. Edgar Carvalho (FIOCRUZ/BA) e sua equipe, recrutamos pacientes com LC causada por L. braziliensis para participar de um estudo cujo objetivo foi avaliar a eficácia do uso de um biocurativo contendo DETC como adjuvante do Glucantime (Sanofi-Aventis) no tratamento da LC”, acrescenta. A eficácia foi avaliada pela taxa de cura e foi também determinado o tempo de cura.

O estudo

A partir do ensaio piloto, prova de conceito, observou-se que 60 dias após o início do tratamento, a taxa de cura foi de 22% (2/9) nos pacientes tratados com Glucantime, 80% (8/10) no grupo tratado com Glucantime + biocurativo e de 70% no grupo tratado com Glucantime + Biocurativo contendo DETC. Após 90 dias, a taxa de cura foi de 55% (5/9) no grupo Glucantime e permaneceu em 80% (8/10) nos outros dois grupos.

“Estes resultados mostraram que pacientes tratados com BC (com ou sem DETC), em associação ao Glucantime, apresentaram uma taxa de cura significativamente maior. Embora a presença do DETC não tenha aumentado a taxa de cura ou o tempo de cura, o uso do biocurativo, aplicado de forma tópica, sobre as lesões de pele teve um impacto positivo, aumentando de maneira significativa a taxa de cura. Novamente, este foi um ensaio pequeno, prova de conceito, mas com resultados muito promissores”, comemora a Dra. Indiani.

Questionada sobre a vantagem do biocurativo em relação ao tratamento convencional, a pesquisadora esclarece que o biocurativo não tem uma ação de matar a leishmania e dessa forma deve ser sempre utilizado com uma droga leishmanicida. A cientista lembra que o tratamento de primeira escolha no Brasil ainda é o antimonial pentavalente, aplicado por via endovenosa,  associado a efeitos colaterais, e que não pode ser aplicado em gestantes. “A falha ao tratamento com essa droga (Glucantime) tem aumentado e, nos dias de hoje, cerca de 50% dos pacientes tratados com LC não apresentam cura com um curso da droga. Adicionalmente, o tempo de cura é entre 60 e 120 dias”, ressalta ao atentar que o principal efeito do biocurativo é reduzir o tempo de cura da doença por mecanismos associados com a cicatrização da ferida. Ela também lembra que ele foi avaliado como adjuvante ao tratamento com Glucantime na dose recomendada.

Como o ensaio piloto mostrou que a aplicação do biocurativo em si já traz benefícios ao paciente, é possível associar outros fármacos com atividade microbicida para um tratamento tópico da LC. Uma outra vantagem do biocurativo é que ele pode ser manejado pelo paciente. Contudo, no estudo, a equipe optou por fazer as trocas no posto de saúde. Indagada sobre quando o biocurativo pode estar disponível, a Dra. Indiani informa que ainda se faz necessário um estudo maior, com mais pacientes, para provar o efeito do biocurativo no aumento da taxa de cura e também na redução do tempo de cura da doença. Por fim, ela enfatiza que qualquer nova estratégia de tratamento que tenha menos efeitos colaterais, seja eficaz e que possa ser manejada de maneira autônoma pelo paciente será revolucionária. A comunidade científica está empenhada em chegar nestas soluções e o biocurativo é uma alternativa que ela e equipe estão testando.

A leishmaniose cutânea é a forma mais comum de leishmaniose e é endêmica em cerca de 90 países em todo o mundo, com novos casos que chegam entre 600 mil a 1 milhão anualmente. De acordo com Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 90% dos casos relatados em 2019 foram do Afeganistão, Argélia, Brasil, Colômbia, República Islâmica do Irã, Iraque, Líbia, Marrocos, Paquistão, Peru, República Árabe Síria e Tunísia. A doença também é conhecida pelos nomes de úlcera de Bauru, nariz de tapir, botão do oriente e ferida brava.

Saiba mais:

A pilot and open trial to evaluate topical Bacterial Cellulose bio-curatives in the treatment of cutaneous leishmaniasis caused by L. braziliensis

DETC-based bacterial cellulose bio-curatives for topical treatment of cutaneous leishmaniasis

Além do biocurativo, outras formas alternativas de tratamento também têm sido desenvolvidas, entre elas crioterapia (com nitrogênio), terapia fotodinâmica, alopurinol e combinação miltefosina + termoterapia. A Anfotericina B tópica já está em fase muito avançada e apresenta duas formulações: uma hidrossolúvel, muito tóxica, e outra, em partículas de gordura, chamadas de nanopartícula, de uso hospitalar e as apresentações são bastante caras. O tratamento com anfotericina B pode ser intravenoso (IV) ou intramuscular (IM). O uso de glucantime intralesional e de termoterapia já são recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Entretanto, o tratamento IV e IM tradicionais utilizados no Brasil como glucantime, antimônio de elevada toxidade, provavelmente foi responsável por muitas mortes de pessoas que tinham doença apenas na pele.

Como podemos observar, há várias alternativas e o tratamento da leishmaniose tegumentar não é necessariamente feito por drogas endovenosas. Também não há justificativa para que o Brasil continue dando prioridade para tratamento parenteral. Precisamos investir cada vez mais no tratamento tópico, seja ele químico, com essas drogas, antibióticos ou tratamento térmico.