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Leishmaniose visceral avança na região Sul do Brasil

A crescente urbanização da doença ocorrida nos últimos 30 anos coloca em pauta a discussão das estratégias de controle

14/03/2023

A Leishmaniose visceral, zoonose antes de caráter rural, vem se expandindo pelo meio urbano, tornando-se uma endemia em expansão geográfica

A Leishmaniose visceral (LV), considerada um problema de saúde pública no Brasil, antes concentrada em estados do Nordeste, tem se espalhado cada vez mais para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, onde não havia incidência até o ano de 2006. De 1920 a 1980, a doença estava restrita às áreas silvestres e rurais. A partir de 1981, passou a ser notificada em grandes centros urbanos como Teresina, Belo Horizonte, Campo Grande. Em 2012, por exemplo, o parasito, causador da LV no Brasil, Leishmania infantum, já havia sido relatado em Foz do Iguaçu, cidade localizada no oeste do estado do Paraná, ou seja, longe das  primeiras áreas endêmicas estabelecidas. Entre as principais hipóteses para explicar a mudança no padrão de transmissão da doença, estão a migração de pessoas do campo para as cidades e levando junto animais domésticos como cães, o desmatamento e a urbanização desordenada causando grande impacto ambiental. Aliado a esses fatores, observamos uma grande adaptação da principal espécie de flebotomíneotransmissor de L. infantum, Lutzomyia longipalpis,aos ambientes modificados. ().

Aproximadamente 2 bilhões de pessoas vivem em áreas de risco de transmissão da LV em todo o mundo, sendo que 90% destes casos ocorreram em seis países, incluindo o Brasil. Endêmica no País, a doença pode ocasionar óbito em 95% dos casos não tratados. Conhecer as regiões e as populações mais suscetíveis ao desenvolvimento da doença, bem como entender a dispersão da doença podem colaborar no desenvolvimento de medidas de controle e ações de prevenção em saúde de forma a reduzir o impacto desse agravo na saúde pública e restaurando a qualidade de vida da população. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou a Dra. Patrícia Flávia Quaresma, professora e pesquisadora do Laboratório de Protozoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: Qual a situação atual da leishmaniose visceral na região Sul?

Dra. Patrícia Flávia Quaresma: A Leishmaniose Visceral (LV) foi considerada indene na região sul do país até 2006, quando houve a primeira notificação de caso autóctone canino no município de São Borja no Rio Grande do Sul. Em seguida, o primeiro caso de LV humana (LVH) foi identificado em 2009, em São Borja, seguido de confirmações de casos de LVH em Uruguaiana (2011) e Itaqui (2012), municípios contíguos no extremo oeste do estado, na divisa com a Argentina. Porto Alegre teve seu primeiro caso de LVH autóctone confirmado em 2016 (SMS-PA, 2022). Nos estados de Santa Catarina e Paraná, a autoctonia em caninos ocorreu nos anos 2010 e 2012 respectivamente. Em Santa Catarina, após os primeiros casos de Leishmaniose Visceral Canina (LVC) em 2010, houve o registro dos 3 primeiros casos humanos no ano de 2017, mais um caso foi registrado em 2020 e, recentemente, o quinto caso humano em 2022 (DIVE, 2023 – comunicação pessoal). No estado do Paraná a notificação do primeiro caso de LVC ocorreu mais tardiamente, em 2012, e em 2015 o registro do primeiro caso autóctone de LVH (SESA, 2023). Podemos notar que aqui na região sul, por ser de instalação recente, além das poucas notificações, observa-se a falta da inclusão da enfermidade nos diagnósticos diferenciais na clínica humana e veterinária, podendo a prevalência da LV ser muito maior que o registro de casos notificados.

SBMT: A senhora acredita que a falta de comunicação entre as esferas de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) dificulte o trabalho da vigilância, implicando diretamente nas ações de controle e prevenção locais?

Dra. Patrícia Flavia Quaresma: A LV é uma endemia de difícil controle pois o seu estabelecimento em uma determinada área envolve a presença de diferentes animais (hospedeiros vertebrados e reservatórios) e vetores (insetos flebotomíneos), além de fatores relacionados ao ambiente e ao contexto socioeconômico da comunidade envolvida. Neste cenário complexo, a integração das ações da vigilância em saúde (VS) dos municípios, dos estados e do governo federal pode ser considerada um dos grandes desafios do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, em todas as esferas de gestão. Embora diversas normativas e estratégias tenham sido elaboradas no sentido de estimular essa integração nas últimas décadas, e esforços institucionais tenham sido empreendidos para viabilizar os recursos financeiros e organizar estruturas técnico administrativas, ainda não se efetivou como esperado, especialmente no âmbito da execução planejada das ações de controle. Em diversos municípios, a ausência ou insuficiência desta integração provoca dificuldades no efetivo controle das doenças e dos agravos prioritários. Um bom exemplo é a dificuldade de preparação de resposta adequada e oportuna para doenças e agravos que apresentam sazonalidade, importante para a prevenção e redução no número de casos. Muitas vezes, em decorrência do aumento de casos de um agravo, as medidas de controle de outras doenças deixam de ser plenamente executadas, causando um retrocesso em todos os avanços alcançados. Uma vez que a LV é uma doença transmitida por insetos, existem épocas do ano em que as medidas voltadas para o controle populacional desses vetores devem ser muito bem executadas.

Nesse sentido, é importante destacar a necessidade dos profissionais da equipe de vigilância municipais estarem em constante comunicação com as secretarias estaduais, bem como, com a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS), a fim de estarem sempre em consonância. Dentre outros aspectos, as características gerais das doenças, informações sobre o diagnóstico laboratorial (formas de coleta e transporte de amostras, fluxos e algoritmos para utilização dos testes diagnósticos), tratamento e seguimento da pessoa, além de informações sobre como deve ser realizada a vigilância da doença (notificação, investigação e medidas de prevenção e controle) são informações que passam das esferas mais abrangentes para as esferas locais.

Portanto, comunicação eficaz entre as esferas de gestão do SUS tem sim uma implicação direta no sucesso do trabalho realizado pelas equipes locais de vigilância da LV, implicando diretamente em ações de controle e prevenção locais mais eficientes.

SBMT: Os casos de leishmaniose visceral denunciam a falta na contenção da sua expansão na região?

Dra. Patrícia Flavia Quaresma: É importante compreender que a vigilância de casos de LV ocorre de maneira ativa em áreas endêmicas, conforme preconizado pelo Plano de Prevenção e Controle da Leishmaniose Visceral – PVC-LV (Brasil, 2006) e passiva em áreas indenes. A SES é responsável pelas políticas de saúde e seguem diretrizes do MS, este último, é responsável por determinar políticas a partir de especialistas de diferentes áreas do país. O estado repassa as exigências do MS, mas o município tem autonomia para fazer suas próprias políticas (Dias et., al 2022).

Compreendendo esse fluxo complexo de gestão (e muitas vezes ineficiente), pensamos que na região sul do Brasil, ainda há um número reduzido de municípios com casos notificados, evidenciando o alto índice de subnotificações muitas vezes em decorrência da falta de conhecimento pelos profissionais da saúde, tanto no caso da LV humana quanto da LV canina. Uma vez que a caracterização da distribuição geográfica dos casos é considerada um elemento essencial na vigilância epidemiológica, torna-se muito mais difícil atuar no controle da LV, pela falta de determinação de áreas prioritárias para a realização das medidas profiláticas. Consequentemente, levando a uma grande dificuldade na contenção tanto da expansão geográfica, como também, no aumento de casos caninos e humanos da LV.

SBMT: Há dados sobre a distribuição geográfica dos flebotomíneos identificados na região Sul?

Dra. Patrícia Flavia Quaresma: Já foram realizados alguns estudos visando conhecer a fauna de flebotomíneos em diversos municípios aqui dos estados da região sul. Nas localidades onde já há o registro de casos de LV humana e canina, as secretarias municipais são responsáveis pela vigilância entomológica, realizando a coleta de flebotomíneos objetivando identificar potencias espécies transmissoras e monitorar a sua distribuição geográfica.

Até o momento, os resultados dessas coletas apontam que a espécie Lutzomyia longipalpis é a mais comum entre os municípios, sendo a mais ocorrente no RS, embora seja encontrada também no PR, onde foram verificados apenas vetores dessa mesma espécie. Os municípios de Florianópolis e Porto Alegre apresentam maior diversidade de flebotomíneos nativos identificados, no entanto, sem a identificação da Lu. longipalpis, principal espécie incriminada como vetor de Leishmania infantum (parasito causador da LV no Brasil).

Falando mais especificamente de Florianópolis, onde acompanho mais diretamente a situação da LV devido aos projetos de pesquisa que realizamos aqui no Laboratório de Protozoologia da UFSC em parceria com as secretarias estaduais e municipais, foram identificadas as espécies Nyssomyia neivai, Pintomyia fischeri e Migonemyia migonei positivas para a presença de DNA de Leishmania spp. Uma vez que esses flebotomíneos não são considerados transmissores comprovados do parasito, maiores estudos em relação à capacidade vetorial desses insetos são necessários para apontá-los como transmissores de L. infantum na região.

SBMT: Quais programas estão sendo desenvolvidos?

Dra. Patrícia Flavia Quaresma: Em Florianópolis, a secretaria municipal de saúde, através da Diretoria de Bem-estar Animal (Dibea) e do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), vem desenvolvendo diversas medidas que visam o controle dos casos caninos de LV tais como: utilização de coleiras impregnadas com inseticidas que tem ação repelente para flebotomíneos em cães residentes em comunidades vulneráveis, campanhas de castrações caninas gratuitas, programa de tratamento da LV em cães residentes junto à população carente. Além disso, o Laboratório de Entomologia da Diretoria de Vigilância Epidemiológica (DIVE) realiza coletas periódicas de flebotomíneos, especialmente nas localidades onde teve registro de cães com LVC. Atua também na realização de capacitações e treinamentos para profissionais dos laboratórios de entomologia do Estado, distribuição de equipamentos e insumos laboratoriais (EPI’s, microscópios bacteriológico e entomológico etc), manejo de materiais para controle das populações de insetos e produção de laudos entomológicos e relatórios (DIVE, 2023 – comunicação pessoal).

SBMT: Existem grupos de pesquisadores e professores conduzindo projetos de pesquisa e extensão voltados para ampliar o conhecimento acerca da Leishmaniose Visceral em SC?

Dra. Patrícia Flavia Quaresma: Sim. O Laboratório de Protozoologia (LP) do Centro de Ciências Biológicas (CCB) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) desde o início de suas atividades, em 1982, colaborou, no auxílio do diagnóstico das Leishmanioses para distintos órgãos governamentais. De 2001 a 2010, o LP foi o laboratório de referência estadual para o diagnóstico da doença de Chagas e de leishmanioses, sendo reconhecido pela Secretaria de Estado da Saúde do Estado de Santa Catarina. Atuando em ensino, pesquisa e extensão universitárias, o LP tem desenvolvido nos últimos anos inúmeros trabalhos abordando diferentes aspectos da biologia de tripanosomatídeos patogênicos como Leishmania spp., incluindo estudos de epidemiologia, diagnóstico, isolamento, tipagem/caracterização e tratamento. Desde 2010, quando foram registrados os primeiros casos autóctones de LVC em Florianópolis, a equipe de professores e pesquisadores do LP vem contribuindo ainda mais para uma melhor compreensão dos aspectos relacionados ao estabelecimento dessa endemia na grande Florianópolis.

Atualmente as atividades do Laboratório de Protozoologia são coordenadas pelos Professores Mário Steindel, Edmundo Grisard, Patrícia Stoco, Glauber Wagner e Patrícia Quaresma que contam com a colaboração de diversos alunos de graduação, de pós-graduação, pós-doutorandos, técnicos e bolsistas de diferentes agências de fomento, formando uma grande equipe. Destacamos, atualmente, projetos de pesquisa que vem realizando a avaliação da eficácia da miltefosina no tratamento da LVC e o monitoramento clínico, histopatológico e parasitológico dos cães em tratamento. A médica veterinária Amábilli de Souza Rosar desenvolveu seu mestrado e agora está no doutorado conduzindo o acompanhamento dos cães estudados neste projeto. Além disso, o LP desenvolve um projeto de extensão realizando o serviço de diagnóstico e quantificação da carga parasitária em amostras clínicas coletadas de cães, antes e após o tratamento, interagindo com setores privados e órgãos públicos no intuito de contribuir para o controle dos casos de LVC em Florianópolis.

SBMT: De 21 a 23 de junho será realizado o 3º Simpósio de Leishmaniose da Região Sul. Poderia falar um pouco sobre este evento que a senhora está coordenando?

Dra. Patrícia Flavia Quaresma: O LeishSul (Simpósio de Leishmanioses da região Sul) é um encontro científico que foi originalmente idealizado e organizado pelo Laboratório de Referência em Leishmaniose e pelo Laboratório de Biologia Celular do Instituto Carlos Chagas – Fiocruz Paraná, e acontece a cada dois anos. Ele foi criado a partir da necessidade de formação de um ambiente de discussão e atualização sobre o tema, tendo em vista o crescente avanço de casos de leishmaniose em cidades da região sul do país.

Sua próxima edição, que acontecerá nos dias 21, 22 e 23 de junho de 2023, será realizada de forma híbrida, em Florianópolis, fruto de uma parceria entre o ICC – Fiocruz Paraná e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) por meio do Laboratório de Protozoologia. Assim como nas edições anteriores, o simpósio contará com a participação de renomados pesquisadores da área e será aberto a estudantes de pós-graduação, graduação e profissionais de saúde. Serão três dias de intenso intercâmbio de ideias e atualização em diversos tópicos relacionados à doença, como interação parasito-hospedeiro, diagnóstico e tratamento, epidemiologia, transmissão e controle, aspectos imunológicos e vacina, evolução clínica e patogênese, e genômica aplicada a estudos em Leishmanioses. No pré-evento será oferecido um minicurso voltado aos profissionais da área de saúde e vigilância entomológica, propiciando um espaço de troca de informações e atualizações sobre as leishmanioses nos estados da região sul do país.

Nós, do Comitê Organizador, temos o prazer de convidá-los para o 3° LeishSul, que se insere no calendário científico da região como fonte de discussão e inovação no combate a esse grave problema da saúde pública do país. Acesse https://www.icc.fiocruz.br/leishsul/ para mais informações.

SBMT: Gostaria de acrescentar algo?

Dra. Patrícia Flavia Quaresma: Referências visitadas

https://prefeitura.poa.br/sms/noticias/informativo-da-vigilancia-em-saude-apresenta-panorama-da-leishmaniose-visceral-na#:~:text=Porto%20Alegre%20teve%20seu%20primeiro,a%20suspei%C3%A7%C3%A3o%20em%20tempo%20oportuno.

Dias et a., 2022. Leishmaniose visceral na região sul do Brasil: análise crítica frente a evolução epidemiológica. Research, Society and Development, v. 11, n. 5, e45711528361, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i5.28361.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**