
Maior soroprevalência de toxocaríase humana do mundo é registrada em aldeia indígena na tríplice fronteira
Estudo revela que 95,3% dos indígenas da comunidade Avá-Guarani Tekoha Ocoy, em São Miguel do Iguaçu (PR), apresentam anticorpos contra o parasita Toxocara spp.
04/09/2025
Pesquisa conduzida por universidades brasileiras e internacionais identificou transmissão ambiental contínua de Toxocara canis: 246 de 258 indígenas apresentaram anticorpos contra Toxocara spp., e 6,5% das amostras de fezes de cães (8/124) continham ovos de Toxocara spp
Um estudo disponível na plataforma ScienceDirect intitulado “High toxocariasis seroprevalence in a tri-border indigenous community (Brazil, Paraguay and Argentina): A One Health perspective” revelou a maior soroprevalência de toxocaríase humana já registrada no mundo. Entre 258 amostras de sangue analisadas na comunidade indígena Avá-Guarani Tekoha Ocoy, localizada em São Miguel do Iguaçu (PR), 246 (95,3%) apresentam anticorpos contra Toxocara spp. A toxocaríase é uma zoonose parasitária causada por larvas de Toxocara canis (verme intestinal de cães) e Toxocara cati (de gatos), e afeta populações em regiões tropicais e subtropicais globalmente. A infecção ocorre por ingestão acidental de ovos presentes no solo contaminado com fezes de animais ou pelo consumo de carne crua ou malcozida de hospedeiros paratênicos.
O inquérito foi realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Instituto Carlos Chagas (Fiocruz/PR), Universidade de São Paulo (USP), Universidade do Oeste Paulista (Unoeste) e Purdue University (EUA), na comunidade indígena Avá-Guarani Tekoha Ocoy, situada às margens do reservatório da usina de Itaipu, próxima à tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. “A soroprevalência observada foi a mais alta já relatada no mundo, o que reforça a necessidade de políticas públicas específicas para comunidades indígenas em áreas de fronteira”, afirmou o professor Dr. Alexander Welker Biondo, da UFPR, coordenador do estudo.
O levantamento também incluiu amostras ambientais. Das 124 amostras de fezes caninas, 8 (6,5%) apresentaram ovos de Toxocara spp. Das 74 amostras de solo, 13 das 42 coletadas em áreas comuns (como escola e posto de saúde) estavam contaminadas (30,9%), assim como 17 das 32 amostras de domicílios (53,1%). As análises moleculares confirmaram a presença de T. canis como principal agente circulante. Segundo o Dr. Biondo, a alta quantidade de ovos viáveis no solo evidencia o papel da exposição ambiental diária na manutenção da transmissão.
A elevada taxa de infecção está diretamente relacionada às precárias condições de vida. A comunidade Avá-Guarani Mbyá foi descolada de suas terras originais na década de 1970, durante a construção da usina de Itaipu, e hoje vive em uma área de apenas 251 hectares, considerada insuficiente para os cerca de 800 habitantes. O abastecimento de água potável é limitado, o lago local apresenta contaminação por resíduos sólidos e pesticidas, e há grande número de cães soltos, sem vacinação ou vermifugação. Esses fatores favorecem a transmissão contínua de zoonoses, como a toxocaríase.
De acordo com o pesquisador, a situação de vulnerabilidade é agravada por Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) abaixo da média nacional e pela ausência de políticas de saúde específicas, incluindo vigilância veterinária. “É provável que essa realidade se repita em outras comunidades Guarani na região de tríplice fronteira, o que torna o cenário ainda mais preocupante”, observou. Apesar de muitas vezes assintomática, a toxocaríase pode causar lesões graves em órgãos vitais como fígado, pulmões, olhos e sistema nervoso. A forma ocular pode provocar cegueira e, na forma visceral, há risco de complicações hepáticas e pulmonares. A circulação transfronteiriça do povo Guarani contribui para a complexidade do enfrentamento.
O estudo, aprovado pelos comitês de ética da UFPR e do Ministério da Saúde, adota a abordagem de Saúde Única (One Health), que reconhece a interdependência entre saúde humana, animal e ambiental. Para reduzir a exposição ao parasita, os autores defendem medidas intersetoriais urgentes. “A realidade encontrada em Ocoy demonstra a necessidade de políticas públicas intersetoriais e integradas, que contemplem as especificidades culturais e sociais das populações indígenas”, disse. Entre as recomendações estão programas de vermifugação e vacinação de cães, melhorias no saneamento básico, acesso a água potável, monitoramento de solo em áreas comuns e campanhas educativas sobre higiene e prevenção.
O Dr. Biondo ressalta, entretanto, que a equipe vai além do diagnóstico das vulnerabilidades. “Nossa intenção não é apenas apontar o ‘mapa da desgraça’ destas populações. Todas as ações envolvem uma contrapartida ética, que inclui vacinação múltipla e antirrábica, vermifugação, antipulgas e carrapaticidas para cães e gatos das comunidades, sempre sem custos e com carteirinha de vacinação entregue aos responsáveis”, assinala. Como medidas educativa e preventiva, cartazes com mensagens contra o abandono de animais foram distribuídos em todas as 96 aldeias indígenas do Paraná. Esses esforços já reverberam em mudanças de políticas públicas. “Graças aos estudos com enfoque em Saúde Única, o Ministério da Saúde incluiu, em 2025 o médico veterinário no Núcleo de Apoio à Saúde Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)”, concluiu o pesquisador.
Sobre a doença
A toxocaríase é uma zoonose parasitária causada principalmente pelo verme intestinal Toxocara canis (de cães) e Toxocara cati (de gatos). A infecção humana ocorre pela ingestão acidental de ovos presentes no solo contaminado com fezes de animais ou pelo consumo de carne crua ou malcozida de hospedeiros paratênicos, como bovinos e aves. Embora muitas infecções sejam assintomáticas, as larvas podem migrar pelo organismo e provocar lesões em órgãos como fígado, pulmões, coração, olhos e sistema nervoso. As formas clínicas variam de leves a graves. A toxocaríase ocular pode levar à perda da visão, enquanto a forma visceral pode levar a complicações hepáticas e pulmonares. Estima-se que aproximadamente 20% da população mundial já tenha sido exposta ao parasita, com impacto econômico global superior a 2,5 bilhões de dólares anuais, considerando custos com saúde e perdas de produtividade.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**