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Malária: pesquisadores usam IA para triar possíveis novos fármacos

Dois novos compostos promissores foram identificados e testados por pesquisadores da UFG, Unicamp e USP

14/03/2024

O alvo do trabalho foi o Plasmodium falciparum, espécie responsável pelos casos mais graves de malária do Brasil

A malária representa um dos principais desafios de saúde pública em regiões tropicais e subtropicais, com quase 250 milhões de casos anualmente em todo o mundo. Diante da ausência de uma vacina eficaz contra a doença, o tratamento inclui uma combinação de medicamentos que atuam em diferentes estágios do ciclo de vida do parasita. Pensando nisso, pesquisadores de universidades brasileiras, incluindo Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade de São Paulo (USP), utilizaram inteligência artificial (IA) para identificar possíveis fármacos com potencial atividade contra o parasita da malária. Conforme divulgado na revista ACS Omega, o foco do estudo foi o Plasmodium falciparum, responsável pelos casos mais graves de malária no Brasil, e o Plasmodium vivax, principal causa de mortes. Foram utilizadas várias técnicas de bioinformática para identificar possíveis alvos e fármacos, bem como dados transcriptômicos para encontrar proteínas presentes tanto no P. falciparum quanto no P. vivax, espécie com escassez de informações sobre fármacos eficazes.

Utilizando uma estratégia computacional de reposicionamento de fármacos, os cientistas identificaram 75 compostos conhecidos e 1.557 similares, totalizando 1.632 com potencial bioatividade. Dois desses compostos foram selecionados para testes experimentais: NVP_HSP990 e aglicona de silvestrol. Os testes in vitro realizados em cepas de P. falciparum mostraram que ambos os compostos apresentaram atividade inibitória potente contra o parasita no estágio sanguíneo assexuado. Além disso, a aglicona de silvestrol exibiu baixa citotoxicidade em células de mamíferos e potencial de bloqueio da transmissão, com atividade inibitória comparável à dos antimaláricos estabelecidos.

Embora ainda seja necessário testar esses fármacos em modelos animais vivos para garantir sua eficácia e segurança, os resultados são promissores e demonstram o potencial da IA para acelerar a descoberta de novos tratamentos contra a doença. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou a Dra. Carolina Horta Andrade, coordenadora do estudo e pesquisadora líder do Laboratório de Planejamento de Fármacos e Modelagem Molecular (LabMol) da UFG e colaboradora do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: Poderia nos falar sobre o estudo sobre o potencial da inteligência artificial para triar possíveis novos fármacos contra a malária?

Dra. Carolina Horta Andrade: A descoberta de fármacos é um processo longo, caro e de alto risco, no qual a maioria dos compostos descobertos nas etapas iniciais falha nas etapas clínicas, não chegando ao desenvolvimento em seres humanos. A inteligência artificial tem sido utilizada para acelerar esse processo de descoberta de novos fármacos, otimizando-o e tornando-o mais eficiente, rápido e econômico, reduzindo as taxas de insucesso. Por exemplo, o processo como um todo pode levar de 10 a 15 anos para que um único novo fármaco chegue ao mercado. O uso de ferramentas de IA, principalmente nas etapas iniciais do desenvolvimento, para priorizar e selecionar compostos com mais potencial de desenvolvimento clínico, traz uma agilidade que encurta esse período para uma média de 6 a 7 anos. Isso representa um ganho de tempo de pelo menos 50%, além de aumentar significativamente a taxa de sucesso ao utilizar essas estratégias computacionais baseadas em IA.

SBMT: Neste caso, como a inteligência artificial pode ser utilizada?

Dra. Carolina Horta Andrade: Com relação ao nosso estudo especificamente, utilizamos inteligência artificial para gerar modelos com dados previamente gerados, obtidos de literatura e bases de dados científicas de compostos já testados contra a malária. A partir desses dados experimentais, geramos modelos utilizando inteligência artificial, a qual utiliza dados para aprender com eles e, assim, tentar gerar, planejar ou descobrir compostos com propriedades superiores. Essa é a base do nosso estudo: utilizar dados já gerados de compostos testados experimentalmente contra a malária. Os modelos de IA tentam aprender características estruturais e químicas importantes para que esses compostos apresentem atividade contra os parasitos da malária. A partir disso, conseguimos prever a atividade de compostos que ainda não foram testados. Dessa forma, utilizando os modelos de IA, conseguimos fazer essa predição de atividade anti-malárica de compostos não testados e priorizar aqueles que serão selecionados para avaliação experimental, aumentando assim a taxa de acerto. Inicialmente, realizamos simulações computacionais, conhecidas como estudos in silico, utilizando os modelos de IA. Em seguida, selecionamos os compostos para testes experimentais em modelos in vitro e, posteriormente, em modelos in vivo.

SBMT: Como a ferramenta “Chemical Checker” foi utilizada para selecionar os fármacos com potencial bioatividade?

Dra. Carolina Horta Andrade: A ferramenta Chemical Checker foi desenvolvida por pesquisadores, nossos colaboradores, da Espanha e do Reino Unido, e utiliza inteligência artificial para cruzar dados químicos e de propriedades biológicas de compostos que já foram testados experimentalmente. Ela gera um perfil de bioatividade a partir da estrutura química, buscando a similaridade química de compostos previamente testados para prever a potencial atividade ou ação de uma nova estrutura química. No nosso caso, utilizamos essa ferramenta para selecionar compostos similares aos que já havíamos selecionado com nossa estratégia de bioinformática e modelos de IA. Nosso objetivo era ampliar a diversidade estrutural dos compostos a serem adquiridos e testados experimentalmente, mantendo uma maior probabilidade de sucesso. Assim, a partir da similaridade química e estrutural, o Chemical Checker busca compostos similares e traça um perfil de bioatividade com base em compostos já testados experimentalmente.

SBMT: Quais os próximos passos para identificar possíveis fármacos contra o parasita da malária?

Dra. Carolina Horta Andrade: No caso do nosso estudo, os próximos passos para identificar possíveis fármacos contra o parasita da malária serão ampliar os estudos experimentais com os compostos identificados como ativos, o silvestrol aglicona e outro composto, o HSP-90. Assim, realizaremos vários experimentos in vitro, envolvendo diferentes espécies e cepas de Plasmodium, não apenas o P. falciparum, mas também experimentos ex vivo com sangue de pacientes infectados com Plasmodium vivax. Essa espécie é a mais prevalente no nosso País, principalmente nos estados amazônicos, e é conhecida por ser de difícil tratamento devido à sua forma latente, que forma hipnozoítas. A maioria dos fármacos não possui ação contra essa forma do parasita. Portanto, nossas próximas etapas incluem experimentos in vitro e ex vivo com Plasmodium falciparum e Plasmodium vivax. Se esses compostos continuarem a se mostrar promissores, avançaremos para modelos murinos de Plasmodium berghei e chabaudi, que são outras espécies que infectam roedores. A partir desses dados in vivo, se os compostos demonstrarem eficácia e baixa toxicidade, como já demonstraram nos primeiros experimentos in vitro, eles avançarão na cascata do desenvolvimento de fármacos.

SBMT: Gostaria de acrescentar algo?

Dra. Carolina Horta Andrade: Gostaria de acrescentar que neste trabalho, além de todo o estudo utilizando os modelos de IA nos quais temos expertise em desenvolver em nosso laboratório na UFG, também utilizamos várias estratégias de bioinformática para selecionar potenciais alvos e fármacos. Assim, utilizamos os dados transcriptômicos para selecionar alvos, ou seja, proteínas, que estivessem presentes tanto no Plasmodium falciparum, a espécie mais prevalente no mundo e causadora de mais mortes, quanto no Plasmodium vivax, a espécie mais prevalente no Brasil e que carece de dados de fármacos com atividade contra essa espécie.

Também gostaria de ressaltar a importância de termos financiamento e recursos destinados à pesquisa de novos fármacos para doenças parasitárias, doenças tropicais negligenciadas e viroses emergentes. Precisamos de recursos contínuos, não apenas em momentos de crises globais ou pandemias, como a que vivemos recentemente. A pesquisa e descoberta de novos fármacos são processos muito caros e demandam investimento contínuo de tempo, dinheiro e dedicação de pesquisadores de forma integrada, de diferentes áreas do conhecimento, desde ciências básicas como biologia, biologia molecular e genômica, até áreas mais avançadas, como estudos farmacocinéticos, farmacodinâmicos e toxicológicos da ação dos fármacos.

Agradecemos às agências de fomento, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que têm nos apoiado. No entanto, precisamos de editais e financiamentos específicos e mais constantes em nosso País, para que essas pesquisas não sejam interrompidas e para que possamos avançar de fato na descoberta de fármacos, não apenas contra a malária, mas também contra tantas outras doenças que nos afetam aqui no Brasil, como dengue, Zika, Chikungunya, doença de Chagas, leishmaniose, esquistossomose e tantas outras.

Saiba mais:

Transcriptomics-Guided In Silico Drug Repurposing: Identifying New Candidates with Dual-Stage Antiplasmodial Activity

Identification of potential inhibitors of casein kinase 2 alpha of Plasmodium falciparum with potent in vitro activity

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**