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Manaus: cenário caótico e recordes sucessivos de infecções pelo novo coronavírus

Quanto mais pessoas continuarem se infectando com qualquer variante do vírus, maior é a chance dele evoluir para algo ainda mais perigoso e incontrolável

05/02/2021
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Mudanças na proteína Spike podem afetar a transmissibilidade do vírus, bem como torná-lo mais resistente às vacinas desenvolvidas por diferentes laboratórios no mundo

Com 1641 mortes confirmadas apenas nos primeiros 20 dias de janeiro, Manaus, capital do Amazonas (AM), chocou o mundo com momentos de brutalidade e monstruosidade, representados pela perda de dezenas de vidas por asfixia dentro e fora de unidades hospitalares. Para o Dr. Jesem Orellana, epidemiologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz do Amazonas (Fiocruz/AM), o problema de Manaus e talvez do Brasil, seja a falta de políticas públicas voltadas para o controle da epidemia fora do hospital. “Temos que interromper a transmissão comunitária do novo coronavírus na população ou, pelo menos, mantê-la em níveis controlados, porque quem opta por controlar a epidemia dentro do hospital acaba optando pela morte”, ressalta. Diante do colapso do sistema de saúde, o epidemiologista defendeu, em alerta divulgado no dia 21 de janeiro, o envio urgente de uma missão de observadores internacionais, por não ser mais possível confiar nos diferentes níveis de gestão que estão à frente da pandemia no estado.

Em dezembro, estudo publicado na revista Science, estimava que 76% dos Manauaras já tinham sido previamente expostos ao novo coronavírus. Então como explicar a segunda onda que levou o sistema de saúde ao colapso, colocando Manaus em estado de emergência pelos próximos seis meses? Em relação à estimativa, o Dr. Orellana esclarece que o estudo tem um problema metodológico sério e comum em amostras de conveniência como a de doadores de sangue, o ‘viés de seleção’. “Como consequência, o estudo superestimou a quantidade de possíveis infectados. Por exemplo, o dado apresentado para a possível prevalência de infecção em abril foi menor do que 5%, valor incompatível com os dados epidemiológicos disponíveis em relação à circulação viral à época, pois o mês de abril foi o mais crítico durante a primeira onda de COVID-19”, afirma. Ainda segundo o pesquisador, este é um dado que pode ser facilmente checado em qualquer base de dados de acesso público ou mesmo em artigos já publicados e citados no próprio estudo. “Outro indicativo desse problema, é a estimativa de 52,5% feita por esse mesmo estudo para a possível prevalência de infecção em junho, a qual contrasta radicalmente da estimativa de 14,6% feita pelo EPICOVID-19 em junho de 2020 (Fase 2), único estudo de base populacional que avaliou a soroprevalência de infecção em Manaus”, complementa.

O epidemiologista defende que se as estimativas para meados de outubro, não faziam sentido prático, agora fazem menos ainda. Segundo ele, isso é algo preocupante e talvez tenha influenciado na tomada de decisão de políticos, de empresários e da população, que pode ter se sentido referendada pela ciência, por um artigo publicado na revista Science, uma das mais respeitadas do mundo. “As pessoas acreditaram na imunidade de rebanho pela via natural e acabaram por abandonar medidas distanciamento físico e outras voltadas à contenção da circulação viral, e o resultado é esse que vemos agora, uma segunda onda marcada por explosivo e dramático aumento no número de casos novos, internações e, sobretudo, de mortes por COVID-19”, lamenta.

No entanto, esse mesmo artigo critica a situação epidemiológica em Manaus, afirmando que a imunidade de rebanho pela via natural não pode ser considerada uma opção aceitável. O Dr. Orellana concorda com a afirmação, embora critique a porcentagem de 76% de infectados em meados de outubro, considerada irreal e incompatível com uma segunda onda tão violenta como a vivenciada em Manaus, especialmente no mês de janeiro, que inclusive apresentou pico de mortalidade maior do que na primeira onda. “Contudo esse artigo traz uma contribuição interessante que nos obriga a considerar que boa parte dos indivíduos que estão adoecendo agora podem ser casos de reinfecção”, observa.

Na opinião do pesquisador, a imunidade de rebanho pela via natural, no nível populacional, é uma alternativa que se mostrou amplamente antiética e acima de tudo desumana. Para ele, isso infelizmente é consequência não apenas da má gestão, mas da falta de uma política efetiva para o controle da circulação viral durante a pandemia no Brasil e, em especial, em Manaus, bem como da má ciência, que gera expectativas errôneas e cria um ambiente de falsa vitória em cima do vírus. O resultado, segundo o Dr. Orellana, é que lamentavelmente estamos mergulhados no que podemos considerar como uma das piores tragédias sanitárias e humanitárias registradas durante toda a pandemia, pelo menos até o momento.

Cenário caótico de Manaus pode se repetir no Brasil?

O epidemiologista considera pouco provável que se tenha um cenário igual ou pior ao de Manaus se repetindo em outra grande metrópole brasileira. Ele argumenta que o estado do Amazonas antes mesmo de entrar na pandemia já apresentava desvantagens: ampla desigualdade social; infraestrutura precária nos serviços de saúde; pouco quantitativo de médicos e enfermeiros por 100 mil habitantes; outros tantos profissionais que são necessários para atenção especializada de doença infecciosa respiratória; falta de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) no interior do estado, que sobrecarregam a rede hospitalar de média e alta complexidade em Manaus; ou ainda o quantitativo insuficiente de profissionais com residência médica em UTI.

Aliado a isso, o estado amarga com a corrupção histórica que se arrastou durante a pandemia, além de fraudes, má gestão da COVID-19 pelos responsáveis pelo Município e Estado, baixa eficácia das políticas para conter a circulação do vírus, descrença da população em relação à segunda onda e, por fim, uma nova cepa. “Essas são circunstâncias que colocam Manaus em uma situação peculiar e, por isso, vejo como pouco provável esse cenário caótico se repetir em outra cidade brasileira, embora não seja impossível. O caso é que as pessoas precisam fazer sua parte mantendo as medidas do distanciamento físico, uso adequado de máscaras, higiene, e evitar aglomerações, caso contrário, outras cidades podem ser duramente castigadas pela COVID-19 durante a segunda onda”, atenta.

Nova variante de coronavírus detectada em Manaus

O Dr. Orellana lembra que o conhecimento que se tem sobre a nova variante do Sars-CoV-2 se deve basicamente ao esforço de vigilância do Ministério da Saúde do Japão, iniciativa que levou o Brasil a realizar uma avaliação mais aprofundada. “Do ponto de vista filogenético, a variante detectada em Manaus tem algumas características que podem estar associadas com a maior transmissibilidade e essa seria a 18ª detectada no Amazonas. Isso não significa que temos 18 variantes, mas que a vigilância Laboratorial, em especial, genômica conseguiu detectar essas”, complementa.

Questionado por que a variante do coronavirus do Amazonas está entre as três que preocupam os cientistas, ele explica que isso se dá por ela apresentar  características que a aproxima do perfil filogenético observado nas do Reino Unido e da África do Sul, ambas associadas com maior infectividade. “Essa é uma questão importante que preocupa não só os cientistas, mas sobretudo os tomadores de decisão na área de saúde pública e a população”, ressalta o pesquisador. Provavelmente, a nova variante seja um dos componentes que ajude a explicar o cenário caótico observado em Manaus de dezembro para janeiro.

Por fim, o pesquisador reconhece que a preocupação com essa nova variante se justifica, já que há diferentes relatos médicos sugerindo maior número de infectados com quadros clínicos aparentemente mais graves, inclusive nos mais jovens. No entanto, o Dr. Orellana é categórico ao dizer que é cedo para se fazer qualquer avaliação mais contundente em relação a uma eventual maior patogenicidade dessa nova variante, já que a maior gravidade clínica desses pacientes pode estar sendo influenciada pelo colapso da rede médico-hospitalar ou pelo fato da doença estar acometendo pacientes mais vulneráveis e que ainda não haviam adoecido. “Para ser melhor entendida, precisamos realizar mais estudos, não apenas para avaliar a evolução clínica dos pacientes acometidos, mas também para melhorar a capacidade diagnóstica, em especial da vigilância genômica, essencial para a detecção oportuna de novas variantes e para a confirmação ou descarte de eventuais reinfecções”, conclui.