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Discurso da presidente da SBMT, Dra. Rosália Torres, na cerimônia de abertura do Medtrop 2024 enfatiza ciência no enfrentamento das mudanças climáticas e doenças tropicais negligenciadas e valoriza liderança feminina

Além de impulsionar inovações e colaborações, a SBMT tem sido uma força propulsora no avanço da pesquisa e da educação em Medicina Tropical, desempenhando um papel importante no desenvolvimento de soluções inovadoras para desafios complexos neste campo da saúde

02/10/2024

É com grande alegria que damos início à cerimônia de abertura do Medtrop 2024, um evento que reúne profissionais, estudantes e pesquisadores da área de Medicina Tropical. É um momento de celebração e de troca de conhecimentos, onde teremos a oportunidade de discutir os avanços e desafios da saúde pública, especialmente em regiões tropicais. Os pesquisadores brasileiros aqui reunidos desempenham um papel crucial na pesquisa, prevenção e controle das doenças tropicais, contribuindo não apenas para a saúde do Brasil, mas também para a saúde global, dado o potencial de disseminação dessas doenças em um mundo cada vez mais interconectado.

Quero aproveitar esta ocasião para expressar meus sinceros agradecimentos a todos os envolvidos na organização deste congresso. O empenho e a dedicação de cada um tornaram o Medtrop 2024 uma realidade. Agradeço também a todos os participantes, cuja expertise e experiência enriquecem nossas discussões e impulsionam o progresso nesta área crucial da saúde.

Ao longo de seus 61 anos de existência, a SBMT realizou 59 congressos, reafirmando seu compromisso inabalável com a ciência voltada para as doenças tropicais e suas implicações políticas e sociais. Além de impulsionar inovações e colaborações, a SBMT tem sido uma força propulsora no avanço da pesquisa e da educação em Medicina Tropical, desempenhando um papel importante no desenvolvimento de soluções inovadoras para desafios complexos neste campo da saúde.

O Medtrop é um marco não só no Brasil, mas em toda a América Latina, destacando-se por sua multidisciplinaridade e pela oportunidade de debater os mais recentes avanços científicos e práticas inovadoras em medicina tropical. Ele se distingue não só pela excelência de sua programação e de seus palestrantes, mas também pela riqueza e diversidade das atividades pré-congresso e pela estreita colaboração entre ciência e serviço público, resultando em recomendações fundamentais para políticas de saúde. Além disso, abraçamos calorosamente as reuniões satélites, como a Reunião ChagasLeish, o Workshop da Rede-TB, o Workshop de Entomologia, o Entomol, e o Fórum Social Brasileiro de Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas, que contribuem significativamente para a grandeza científica e técnica do Medtrop e seu impacto social.

Mas há algo mais a dizer sobre este congresso. Este 59º Medtrop, em particular, tem alguns elementos singulares:

Pela primeira vez, temos duas mulheres na liderança simultânea do congresso e da SBMT. A Professora Dra. Hiro Goto, da USP, que se dedicou incansavelmente à organização deste evento, nos honra como presidente desta edição. Esta conquista é emblemática, refletindo a crescente valorização da mulher na ciência, um tema que nos é tão caro. Sabemos que as oportunidades nem sempre são equitativas, e que, em muitas regiões do mundo, mulheres ainda se encontram à margem dos cargos de liderança. Mesmo no século 21, a presença feminina em posições de liderança continua a romper estereótipos e nos leva a refletir sobre a urgência de promover a igualdade de gênero. Temos, também, a responsabilidade de inspirar e encorajar outras mulheres a trilhar, com orgulho e determinação, seus caminhos tanto na esfera acadêmica quanto profissional. Embora a mulher na ciência e em cargos de liderança ainda seja alvo de estranhamento, a mensagem dessas duas presidentes para todas as mulheres, especialmente as mais jovens, que estão iniciando suas carreiras, é clara: todas serão acolhidas, respeitadas e valorizadas neste “coração tropical” que é a SBMT.

Outro aspecto único e oportuno deste congresso foi a escolha do seu lema, “Saúde Única” ou “Uma só saúde”. Esse conceito reconhece a interdependência entre a saúde humana, animal e ambiental, em uma visão mais ampla e integrada da saúde, que admite a importância de fatores como equidade, sustentabilidade e participação social na promoção do bem-estar e da qualidade de vida das pessoas aliados ao cuidado com o ambiente e com todos os seres vivos.

Em poucos momentos da nossa história a escolha do eixo central do Congresso Da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical foi tão dolorosamente oportuno: vivenciamos, neste ano, as enchentes que trouxeram tão grande sofrimento aos nossos irmãos no Rio Grande do Sul e testemunhamos, com grande preocupação, outros eventos climáticos adversos, como nível historicamente baixo das águas do rio Amazonas, as secas devastadoras e os incêndios que assolam o Brasil. A urgência de uma resposta integrada é inquestionável, pois a degradação ambiental afeta diretamente a saúde humana e a biodiversidade.

O que estamos ouvindo é o grito da Terra, ecoando em cada evento climático extremo, nos alertando sobre a interconexão entre a saúde do planeta e o bem-estar das populações, especialmente das populações negligenciadas, as mais afetadas pelos desastres climáticos. A degradação ambiental não apenas fomenta desastres naturais, mas também intensifica a propagação de doenças que afetam desproporcionalmente as populações mais pobres e marginalizadas.

É por isto que estamos aqui.

O outro aspecto único e oportuno deste congresso é, na verdade, uma extensão natural do seu lema. Falar sobre Saúde Única nos remete, necessariamente, às doenças socialmente determinadas, ou doenças de populações negligenciadas. As doenças tropicais negligenciadas são uma das mais cruéis expressões das desigualdades em saúde. Causam impacto devastador na saúde e no desenvolvimento das comunidades afetadas, o que perpetua ciclos de pobreza e exclusão. Combatê-las exige um esforço conjunto, envolvendo governos, instituições acadêmicas e a sociedade civil; demanda investimentos robustos em pesquisa e inovação. Além disso, a cooperação internacional e parcerias estratégicas são fundamentais para enfrentarmos esses desafios com eficácia e sustentabilidade.

Recentemente me chamou a atenção uma frase de Paul Farmer, médico infectologista e antropólogo, professor da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, citada no The Lancet: “Se o acesso aos cuidados de saúde é considerado um direito humano, quem é considerado humano o suficiente para ter este direito?” Certamente não são as populações e pessoas negligenciadas, aquelas cujas vozes raramente são ouvidas, aquelas a quem temos o dever de acolher, de escutar o seu silêncio.

Encerro lembrando que a saúde é, essencialmente, uma questão política. Os determinantes sociais da saúde – como renda, habitação, educação e emprego – são moldados por decisões políticas, e a vontade política é indispensável para o sucesso das políticas de saúde pública. Este é o momento de abraçar o conceito de “Saúde Única”, reconhecendo a interdependência entre a saúde de todos os seres vivos e a urgência de ações coordenadas para garantir um futuro saudável e sustentável.

Que o Medtrop 2024 seja um espaço de convergência de idéias, sonhos e ciência, em prol do bem-estar de todas as formas de vida.

TODAS AS VIDAS IMPORTAM

Boa noite a todos e um excelente congresso.

 

Rosália Morais Torres

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**