
Nova pandemia ou epidemia pode vir de qualquer lugar
A Dra. Hiro Goto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, presidiu o 59º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (MEDTROP 2024), que aconteceu em São Paulo entre os dias 22 e 25 de setembro.
30/09/2024A médica afirmou que esse tema continua sendo negligenciado. E uma nova epidemia ou pandemia pode surgir a qualquer momento. “Em média, 70% das infecções e novas ameaças são causadas por zoonoses, infecções que estão em outras espécies animais e por algum contato acaba atingindo o ser humano. Então, pode vir de qualquer espécie ou de qualquer lugar”, disse ela.
Confira a entrevista na íntegra.
SBMT: O 59º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (MEDTROP 2024) teve como lema ‘Medicina Tropical sob olhar de Saúde Única’. O que é a Saúde Única na perspectiva do congresso?
Dra. Hiro Goto: A Saúde Única foi uma definição acordada entre várias entidades, com foco na saúde dos seres humanos, de outras espécies e também no meio ambiente, mostrando que há uma interconexão entre essas áreas e que precisamos tratar de forma conjunta ao analisar os problemas e achar as soluções. Sem isso, não conseguiremos chegar à saúde para todos. Além disso, a Saúde Única possui uma visão diferente da Saúde Global, visto que esta contempla os fatores socioeconômicos, históricos, éticos e educação que entram nessa análise. Nós focamos na Saúde Única por causa do nosso público participante do congresso, já que não contempla a área de humanas, psicossociais, históricos, entre outras áreas.
SBMT: Estamos falando sobre as doenças tropicais, vírus emergentes que estão relacionados ao animal, ao ser humano e às plantas. Por exemplo, leishmaniose, Mpox, AIDS, hanseníase. E em algumas mesas falaram sobre a possibilidade de essas doenças serem a próxima pandemia. A próxima epidemia ou pandemia pode vir de qualquer lugar?
Dra. Hiro Goto: Sim. Em média, 70% das infecções e novas ameaças são causadas por zoonoses, infecções que estão em outras espécies animais e por algum contato acaba atingindo o ser humano. Então, pode vir de qualquer espécie ou de qualquer lugar.
SBMT: A crise climática vai piorar cada vez mais essa ameaça?
Dra. Hiro Goto: Estamos discutindo sobre isso, mas esse aquecimento pode ser cíclico, como a era do gelo (Pequena Era Glacial ou Pequena Idade do Gelo) ou a era do aquecimento, que também é o que está acontecendo no momento. Estamos notando que o planeta todo está mais quente neste inverno, em que tivemos poucos dias de frio. Por exemplo, na Escandinávia, que fica ao norte da Europa, a população está feliz por ter um verão prolongado, mas no Mediterrâneo, a população está sofrendo com o calor excessivo.
No caso da Escandinávia, que já teve uma época mais quente no passado, houve casos de malária. Mas atualmente, só há casos importados, ou seja, os mosquitos infectados migram para aquela região e mesmo em regiões mais frias, essas doenças tropicais podem surgir. Mesmo que ainda não haja muitos dados sobre isso, essa mudança climática vai afetar todo mundo. Em uma das mesas do congresso, foi falado sobre leishmaniose e o surgimento de muitos casos nos Estados Unidos, mas não sabemos se há relação com as mudanças climáticas, as migrações ou o fluxo de viajantes que propicia essa disseminação.
SBMT: As doenças tropicais e os vírus emergentes eram negligenciados; a senhora acha que houve mudanças?
Dra. Hiro Goto: Continuam sendo negligenciadas, em algum aspecto; por exemplo, no desenvolvimento de drogas para essas doenças. Há falta de investimento nessa área, em pesquisas e a falta de interesse das indústrias farmacêuticas, já que os grandes compradores são as instituições públicas e governamentais. Por exemplo, não é um antibiótico que qualquer um com receita pode comprar. Então, economicamente falando, isso acaba não interessando à indústria farmacêutica. No caso da Covid-19, conseguimos desenvolver a vacina em um ano porque a estrutura do vírus não era complexa, diferente do caso do HIV e da malária, que tem o ciclo mais complexo que tem características diferentes de acordo com espécie e região.
Por exemplo, se desenvolver uma vacina na região da Ásia e utilizar na África, pode ser que não surjam efeitos, porque há variações de antígenos e a variabilidade dentro da espécie. Citando o caso da malária, são poucas as espécies que atingem o homem, por isso, já tem uma vacina com eficácia de 50% autorizada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em 2021, mesmo com baixa eficácia, está sendo aplicada em crianças na África para diminuir a taxa de mortalidade. A base dessa vacina começou no Brasil na década de 60 pela professora Ruth Nussensweigh, mas foi desenvolvida nos Estados Unidos pelo interesse do país que possuíam soldados no Vietnã que estavam contraindo a malária. Mesmo com a eficácia baixa e o longo período de pesquisa, é possível notar a complexidade para desenvolver uma vacina.
SBMT – É o caso da leishmaniose, correto?
Dra. Hiro Goto: Sim. Essa vacina tem mais de centenas de candidatos testados, e só agora, aqui no congresso, foi apresentada uma promissora para essa doença. Pelo fato de a biologia do parasito ser complexa, pegava-se o antígeno do parasito baseado na sequência do DNA, de proteína ou pedaços do parasito para desenvolver a vacina, mas não deu certo.
A partir de uma observação feita na população, notou-se que se uma pessoa infectada por uma espécie que não fosse tão agressiva acabava criando imunidade. Então, alguns lugares ainda fazem “leishmanização”, ou seja, injetam o parasito em áreas menos visíveis do corpo para que o indivíduo possa criar uma lesão e ficar protegido. Porém, por ser um parasito vivo, algumas pessoas tiveram efeito contrário e adquiriram a doença grave.
Com isso, estamos injetando o parasito inteiro modificado para que o sistema imune possa aprender a se proteger, já que precisamos da resposta protetora e reguladora para que o conjunto faça a proteção. Porém, mesmo com todos esses anos estudando a resposta imune, ainda não temos a resposta clara sobre o que realmente é preciso para nos proteger.
SBMT: Em relação a Mpox, a chamada varíola do macaco, e a Oropouche, por exemplo. O número de casos vem crescendo, mas não há vacina para nenhum desses problemas. Pode trazer também uma nova pandemia?
Dra. Hiro Goto: No caso da Mpox, temos a vacina da varíola que, ao que indica, gera uma certa proteção. Mas observamos que essas doenças como Mpox tinham indícios de ser doenças locais, de certa população. No entanto, estamos vendo que não, e estão surgindo casos mais graves do que o previsto. Então, é preciso analisar a necessidade de modificar a vacina já existente ou aplicar em qual população. Em relação à febre do Oropouche, ao que parece, há variantes do vírus e também, a questão de transmissão de mãe para filho que são questões importantes que precisam ser aprofundadas.
SBMT: Qual a importância deste congresso coordenado pela senhora e seu retorno a São Paulo depois de 28 anos?
Dra. Hiro Goto: Esse congresso é feito em várias regiões do país para que os participantes locais possam ter a oportunidade de participar, e isso reflete nos pesquisadores, professores e estudantes de cada localidade. O congresso também é levado para regiões que possuem certas doenças endêmicas; então causa uma certa estranheza falar de Medicina Tropical em São Paulo. Mas o retorno do congresso este ano para cá, é porque estamos no trópico e subtrópico e também, por causa da quantidade populacional e do fluxo globalizacional por onde entram essas doenças.
Pelo número de participantes (cerca de 4 mil), conseguimos ver a participação de pesquisadores de São Paulo e de outras regiões pela facilidade do fluxo de chegada e saída de voos. Dessa forma, conseguimos atrair mais participantes e ter uma programação científica mais completa para chamar a atenção de pesquisadores renomados de todos os lugares. Além disso, conseguimos interagir com instâncias governamentais com participação ativa neste congresso, visando uma ação conjunta governo, academia, institutos de pesquisa, pesquisadores, professores e alunos.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**