
OMS conclui negociações para acordo global contra pandemias
Marco na saúde global busca corrigir desigualdades e fortalecer respostas a crises sanitárias
05/05/2025
Estados-membros da OMS finalizam em Genebra acordo global para prevenir e enfrentar pandemias, com foco em equidade e cooperação internacional
Após mais de três anos de intensas negociações, os Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) finalizaram, em 16 de abril de 2025, o texto de um acordo global voltado à prevenção, preparação e resposta a pandemias. O documento, concluído em Genebra, na Suíça, representa um marco na cooperação internacional para enfrentar crises sanitárias, com o objetivo de evitar os desafios enfrentados durante a pandemia de Covid-19, que resultou em milhões de mortes entre 2020 e 2022. O acordo, que será submetido à 78ª Assembleia Mundial da Saúde em maio de 2025 para adoção, estabelece diretrizes para fortalecer a colaboração entre nações. Entre os principais pontos, destaca-se a adoção de uma abordagem “Uma Saúde” (One Health), que integra a saúde humana, animal e ambiental, além do reforço dos sistemas nacionais de saúde. O texto também propõe a criação de uma rede global coordenada de cadeias de suprimento e logística para emergências sanitárias, um sistema de acesso e compartilhamento de patógenos e benefícios, e o aumento do suporte para transferência de tecnologia e conhecimento. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou a Dra. Deisy de Freitas Lima Ventura, vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Global da Faculdade de Saúde Pública e Vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Confira a entrevista na íntegra.
SBMT: Quais aspectos do acordo global para pandemias, finalizado pela OMS em abril de 2025, a senhora destaca como mais relevantes para superar os desafios enfrentados durante a pandemia de Covid-19, especialmente no que diz respeito à cooperação entre países?
Dra. Deisy Ventura: Nas últimas décadas, a OMS elaborou e promoveu numerosos planos, diretrizes, cursos e outros documentos e atividades sobre pandemias ou sobre doenças com potencial pandêmico, mas a única norma obrigatória para os Estados sobre esta temática, até o momento, era o Regulamento Sanitário Internacional (RSI). No entanto, o RSI trata de qualquer Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), e não apenas de pandemias. Em maio de 2024, o regulamento foi emendado e, entre outras modificações, instituiu a categoria Emergência Pandêmica (EP), que é uma ESPII merecedora de um nível mais alto de alarme, definido a partir dos seguintes critérios: risco de propagação mais ampla, magnitude de impactos sobre sistemas de saúde, potenciais danos (perturbações sociais e econômicas, assim como no tráfego e no comércio internacional), e intensidade da resposta devida (rápida, equitativa e reforçada). De fato, entre as oito ESPIIs até hoje declaradas, apenas duas foram consideradas pandemias, e declaradas como tal algumas semanas após a declaração de ESPII: a influenza AH1N1 (2009-2010) e a covid-19 (2020-2023). As demais ESPIIs foram surtos ou epidemias de poliomielite, síndrome congênita do vírus zika, ebola (em dois eventos distintos) e mpox (também em dois eventos). Porém, embora imprescindível e bem mais eficaz do que parece ser, o RSI não pode ser considerado uma norma específica sobre pandemias, e o mecanismo de declaração de emergências e de cooperação que ele instaura não dá conta dos desafios que um fenômeno da amplitude da pandemia de covid-19, por exemplo, suscita no campo da cooperação internacional, com destaque para o problema da repartição equitativa de produtos de saúde. Assim, uma proposta de acordo sobre pandemias foi elaborada por um Órgão Intergovernamental de Negociação criado especialmente para esta finalidade em 2021. Essa proposta ainda necessita ser aprovada pela 78a. Assembleia Mundial da Saúde, que ocorrerá entre 19 e 27 de maio em Genebra. Caso seja aprovada, o seu aspecto mais relevante é ser a primeira norma multilateral obrigatória específica sobre pandemias, mais abrangente e detalhada que o RSI. O simples fato de existir um acordo, após três anos de difíceis negociações, é uma enorme conquista se considerarmos que os Estados Unidos renunciaram ao seu papel histórico de líderes do campo da saúde global, abandonando as negociações do acordo e reduzindo drasticamente o financiamento de programas internacionais, entre outros numerosos gestos de ruptura. É preciso ter em conta também os ataques sistemáticos que o acordo vem sofrendo por movimentos de extrema direita que promovem intensa desinformação, e as pressões da indústria farmacêutica e de outros atores para que temas políticos cruciais do enfrentamento às pandemias não fossem tratados. Que os Estados, inclusive países que estão atualmente em guerra, tenham sido capazes de construir uma abordagem conjunta das pandemias, ainda que limitada em relação ao que esperávamos, me parece o aspecto mais relevante deste acordo. Significa, antes de mais nada, que pode haver avanços na saúde global sem os Estados Unidos, e talvez uma concepção mais aberta aos interesses do Sul Global do que a preconizada pelos norte-americanos.
SBMT: O acordo inclui o Sistema de Acesso e Compartilhamento de Benefícios de Patógenos para promover equidade. Como a senhora avalia a viabilidade desse mecanismo para assegurar que países de baixa e média renda tenham acesso equitativo a vacinas, tratamentos e outros recursos em futuras crises?
Dra. Deisy Ventura: Este foi um dos temas mais difíceis da negociação do acordo. Grosso modo, podemos dizer que, com razão, os países de baixa e média renda condicionaram o fornecimento de informações sobre patógenos ao usufruto dos benefícios que decorrem do acesso a tais informações. Fabricantes de produtos de saúde que participarem deste sistema deverão colocar à disposição da OMS um percentual de sua produção, em tempo real, de vacinas e tratamentos para o patógeno causador da doença em questão, a preços acessíveis. Ainda é cedo para estimar a eficácia deste sistema porque o acordo prevê uma imensa flexibilidade na participação dos Estados neste sistema. Faltam também detalhamentos que serão ajustados por meio de um instrumento jurídico próprio elaborado uma nova etapa de negociações entre os Estados. Ainda não temos sequer a definição do que seria um “fabricante participante” do sistema. Porém, considerando a conjuntura internacional, é uma boa notícia que estas negociações continuem, mantendo em pauta a questão crucial do acesso
SBMT: A implementação do acordo depende de fatores como vontade política e recursos financeiros. Quais desafios a senhora identifica para que países da América Latina, como o Brasil, adotem as diretrizes propostas, considerando as limitações dos sistemas de saúde locais?
Dra. Deisy Ventura: Em matéria de sistema de saúde, o Brasil está bem posicionado para implementação das emendas ao RSI e do acordo sobre pandemias em razão das características do SUS, entre elas a garantia do acesso universal à saúde, a larga experiência de resposta a epidemias, o traquejo nas relações federativas e a capilaridade do sistema. O destaque que as emergências alcançam pontualmente é sempre uma forma de despertar a consciência da opinião pública sobre os riscos trazidos pelo subfinanciamento e pelas tentativas de desmonte do nosso grande trunfo, que é o SUS. O Ministério da Saúde recentemente instituiu um Grupo de Trabalho, do qual eu participo, que deve propor uma política de Estado relativa às emergências de saúde, inclusive pandemias, e que constitui uma oportunidade de sistematizar e aperfeiçoar o que já existe no Brasil nesta matéria, reduzindo a suscetibilidade de nosso sistema às alternâncias de poder que são naturais em uma democracia. Em outras palavras, seja qual for o governo, é preciso que o Estado brasileiro tenha amadurecida e organizada a sua abordagem da preparação e da resposta às emergências de saúde. Quanto aos países que não possuem sistemas com as características do SUS, o acordo sobre pandemias e as emendas ao RSI constituem uma oportunidade valiosa para que as forças políticas internas pautem o desenvolvimento de capacidades nacionais que serão decisivas não apenas para emergências, mas para o cotidiano da saúde pública.
SBMT: De que forma o acordo pode impactar as políticas públicas de saúde no Brasil, especialmente no controle de doenças tropicais, como dengue, zika e leishmaniose, que desafiam os sistemas de saúde da região?
Dra. Deisy Ventura: Tanto o RSI como o acordo sobre pandemias tratam de eventos extraordinários com potencial de propagação internacional, e não de doenças endêmicas. A doença do vírus zika acabou sendo relacionada a uma emergência internacional, mas é sempre bom recordar que a emergência foi a síndrome congênita do vírus zika, e não a doença em si. Contudo, sempre percebi os temas de saúde global como oportunidades para fazer avançar demandas locais importantes. No caso das emergências, devemos sublinhar a relação entre o agudo e o crônico que é apontada por tantos especialistas, e absolutamente tangível nas práticas de saúde. Em outras palavras, nossa forma de dirigir os recursos disponibilizados para preparação e resposta a emergências deve sempre contemplar elementos estruturais que melhorem nosso sistema de saúde em seu conjunto. Não devemos nos conduzir “para inglês ver”, tranquilizando outros países quanto à nossa capacidade de conter aqui doenças que eles temem. Devemos, na verdade, fortalecer o nosso sistema para que ele tenha um bom desempenho ordinário, o que necessariamente se refletirá diante do extraordinário, caso exista a devida preparação.
SBMT: Quais falhas na resposta global à Covid-19 a senhora acredita que o acordo aborda de maneira mais eficaz, e como essas mudanças podem melhorar a gestão de futuras pandemias?
Dra. Deisy Ventura: Embora longe do ideal, a criação de uma rede global relacionada a suprimentos e logística (The Global Supply Chain and Logistics Network, GSCL), preconizada pelo artigo 13, é o embrião de um mecanismo que pode ser crucial na resposta às pandemias. Embora a rede ainda dependa de detalhamento, ela é cercada de normas e princípios que, malgrado sua flexibilidade ainda patente, tentam enfrentar a maior falha da coordenação internacional da resposta à covid-19, que é a iniquidade no acesso aos produtos de saúde. Creio que o processo negociador serviu para “colocar o dedo na ferida” de posições inaceitáveis dos países ricos, mostrando que por trás do slogan “salvar vidas”, muito utilizado por eles na saúde global, existem atores e agendas indiferentes à morte massiva de populações periféricas (inclusive de grupos de baixa renda dentro dos países ricos) por falta de acesso a produtos de saúde como tratamentos, insumos e vacinas. É desolador testemunhar que representantes dos países desenvolvidos, influenciados por imponentes lobbies, persistem, mesmo em caso de pandemia, na defesa de lucros ilimitados e da brutal concentração de renda que, objetivamente, coloca o mundo inteiro em risco e ameaça até mesmo a sobrevivência da espécie humana. Mesmo se o resultado está longe do esperado, o processo negociador foi um palco importante para fazer ecoar as demandas de países do Sul Global, de especialistas, entidades e movimentos sociais que defendem uma resposta mais eficaz e mais justa – porque, de fato, neste caso, a justiça é um condicionante da eficiência do controle da propagação das doenças. Outro aspecto do acordo que pode ser saudado é o que se refere aos profissionais de saúde, que resulta de uma expressiva mobilização dos sindicatos e entidades representativas de trabalhadores. Certamente os dispositivos sobre proteção especial durante as emergências e de investimento na preparação da força de trabalho em saúde, previstos pelo artigo 7° do acordo, poderão ser evocados para fortalecer os direitos dos trabalhadores, em especial nos países cuja legislação nacional não contenha previsões deste tipo.
SBMT: Dado que a ratificação e implementação do acordo podem ser processos longos, quais medidas a senhora considera prioritárias no curto prazo para que o documento gere benefícios concretos, especialmente em regiões vulneráveis como a América Latina?
Dra. Deisy Ventura: O benefício concreto e imediato deste acordo é voltar a falar sobre pandemias em países que parecem ter esquecido que houve a covid-19. Não tenho dúvida de que as medidas prioritárias no momento, para todos os países, giram em torno da implementação plena das capacidades nacionais de preparação e resposta a emergências de saúde previstas pelo RSI, que envolvem destinação de recursos humanos e financeiros, elaboração de legislação adequada, aperfeiçoamento dos sistemas de vigilância etc. De modo geral, para cumprir o RSI, é preciso ter um sistema de saúde organizado e autoridades sanitárias fortalecidas.
SBMT: A senhora gostaria de acrescentar algum ponto que considera relevante e não foi abordado?
Dra. Deisy Ventura: Estou feliz pela derrota que a OMS impingiu aos movimentos de extrema direita que espalharam e seguem disseminando mentiras abjetas sobre este acordo. No momento em que o governo americano ataca brutalmente a saúde pública, no plano interno e no plano internacional, manter os Estados discutindo juntos soluções para o enfrentamento de emergências de saúde, repetir que elas são importantes e devem seguir pautadas nas agendas políticas nacionais com destaque, me parece o grande trunfo deste acordo. Entretanto, lamento profundamente que aspectos cruciais da resposta às pandemias, como a proteção social, em particular o direito à alimentação, não tenham merecido a devida atenção. Creio que faltou aos negociadores, neste aspecto, o conhecimento da realidade da resposta às pandemias para a maior parte da população mundial. A desproteção social diante de medidas de contenção da propagação da covid-19 foi o grande trunfo dos negacionistas em sua defesa de teses absurdas como a imunidade de rebanho por contágio. Cabe a nós o desenvolvimento de um enfoque brasileiro da resposta às emergências, de caráter intersetorial, que busque fornecer à população os meios necessários para atender as recomendações das autoridades sanitárias, e conceber uma governança das pandemias na qual os profissionais de saúde, os especialistas e as pessoas destinatárias das medidas possam ser ouvidos e integrados aos esforços governamentais, inclusive em matéria de combate à desinformação.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**