
Pesquisa aponta esperança na luta contra leishmaniose
Bactéria Delftia tsuruhatensis reduz em mais de 70% a capacidade de flebotomíneos transmitirem Leishmania
26/05/2025
Tecnologias avançadas, como o sequenciamento genético e as análises do microbioma, possibilitaram compreender o papel da bactéria Delftia tsuruhatensis TC1 no intestino dos flebotomíneos
Um estudo publicado em maio na revista Nature Communications pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (NIAID) apresenta uma estratégia promissora para combater a leishmaniose, uma doença tropical negligenciada que afeta cerca de 1 milhão de pessoas por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Intitulado “Leishmania sand fly-transmission is disrupted by Delftia tsuruhatensis TC1 bacteria”, a pesquisa demonstra que a bactéria Delftia tsuruhatensis TC1, ao colonizar o intestino de flebotomíneos — vetores da doença —, reduz em mais de 70% a capacidade desses insetos de transmitir o parasita Leishmania major. Liderada pelos doutores Pedro Cecilio e Fabiano Oliveira, a descoberta representa um avanço importante para regiões endêmicas, como África, Ásia e América Latina, incluindo o Brasil.
A leishmaniose, transmitida pela picada de flebotomíneos infectados, manifesta-se em três formas clínicas: cutânea, que causa lesões desfigurantes; mucocutânea, que danifica mucosas; e visceral, potencialmente fatal se não tratada. Causada por cerca de 20 espécies de parasitas do gênero Leishmania, a doença é majoritariamente zoonótica, com reservatórios em animais como cães, roedores e outros mamíferos. No Brasil, é endêmica em áreas com a Amazônia, o Nordeste e o Centro-Oeste, onde a pobreza, a falta de saneamento básico e acesso limitado à saúde amplificam seu impacto. Além do sofrimento físico, a leishmaniose carrega um estigma social, especialmente nas formas que deixam marcas visíveis.
De acordo com os Drs. Oliveira e Cecilio, as estratégias atuais de controle, como o uso de inseticidas e mosquiteiros, estão longe de serem ideais. “Os flebotomíneos desenvolveram resistência a muitos inseticidas, e aplicá-los em ambientes abertos é um desafio logístico”, explica Dr. Oliveira. “Surpreendentemente, ao contrário do verificado para mosquitos, para flebotomíneos ainda não existe nenhuma estratégia de controle baseada na prevenção da infecção”, acrescenta o Dr. Cecilio. A nova abordagem foca-se nesta limitação e utiliza Delftia tsuruhatensis TC1, conhecida por bloquear o parasita da malária (Plasmodium) em mosquitos, para interromper o ciclo de Leishmania dentro do flebotomíneo.
Nos experimentos, realizados com Phlebotomus duboscqi, vetor da leishmaniose cutânea no Oeste da África, a bactéria colonizou o intestino do flebotomíneo de forma robusta. Usando uma variante marcada com proteína verde fluorescente (GFP), os pesquisadores observaram sua presença por até 12 dias após a alimentação com sacarose contendo a bactéria, mesmo sem ingestão de sangue. Com a ingestão de sangue, a colonização se intensificou, com maior fluorescência detectada aos 7 e 11 dias após a alimentação.
O impacto no parasita foi notável. Flebotomíneos colonizados, infectados com Leishmania major por meio de sangue artificial, apresentaram uma redução de 74% a 82% nas formas infecciosas do parasita (promastigotas metacíclicas) após 7 e 11 dias, em comparação com o grupo controle. “A bactéria torna o intestino do flebotomíneo um ambiente hostil ao parasita, limitando seu desenvolvimento”, detalha o Dr. Oliveira. Um achado interessante foi a redução no diâmetro do intestino anterior dos insetos colonizados (p=0,0266), possivelmente devido à disbiose intestinal induzida.
A especificidade da Delftia tsuruhatensis foi confirmada ao comparar seu efeito com o de outras bactérias comuns na microbiota de flebotomíneos, como Escherichia coli, Ornithinbacillus massiliensis e Enterococcus faecalis, que não reduziram a carga parasitária. Testes com a bactéria inativada também não replicaram os resultados, sugerindo que a bactéria viva é essencial para o efeito observado. “É a interação dinâmica da bactéria com os parasitas e outras bactérias no intestino do inseto que faz a diferença”, afirma o Dr. Cecilio.
Um dos resultados mais promissores adveio dos testes em camundongos. Os testes mostraram que flebotomíneos colonizados foram menos capazes de transmitir parasitas Leishmania, levando a infecções menos graves, com cargas parasitárias reduzidas ou até indetectáveis. Um modelo matemático, baseado no número básico de reprodução (R₀), sugere que a bactéria, ao aumentar a mortalidade dos flebotomíneos infectados e reduzir a transmissão, pode diminuir o R₀, potencialmente interrompendo a endemicidade da doença. “Se replicarmos esses efeitos no campo, poderemos salvar muitas vidas”, projeta o Dr. Oliveira.
“A Delftia tsuruhatensis pode ser uma ferramenta revolucionária para doenças tropicais. No entanto, desafios permanecem: a introdução da bactéria em populações naturais de flebotomíneos exige métodos práticos, como armadilhas de açúcar, e questões ecológicas, como o impacto na microbiota dos vetores, demandam mais estudos”, conclui o Dr. Cecilio.
No Brasil, onde a leishmaniose é endêmica e representa um desafio de saúde pública, especialmente na Amazônia, essa estratégia pode complementar o tratamento de casos humanos e o controle de reservatórios. Os pesquisadores planejam testes de campo para avaliar a viabilidade em diferentes espécies de flebotomíneos e parasitas. O estudo, disponível sob licença Creative Commons, permite ampla disseminação dos resultados e reforça a esperança de novas soluções para uma doença que afeta principalmente comunidades vulneráveis.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**