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Por que é difícil evitar leptospirose para pobres?

A leptospirose tornou-se uma epidemia global em comunidades urbanas empobrecidas

10/05/2023

Os resultados são importantes para identificar possíveis barreiras que limitam as práticas de prevenção e continuam a expor moradores à leptospirose

A leptospirose é uma grande preocupação para a saúde pública devido às suas altas taxas de morbidade e mortalidade. Estima-se que 1,03 milhão de novos casos ocorram anualmente no mundo, com aproximadamente 60 mil mortes, principalmente entre adultos jovens do sexo masculino. Comunidades desfavorecidas, especialmente em grandes centros urbanos, concentram uma incidência de doenças infecciosas maior do que em outros lugares. Bairros desfavorecidos, com precárias condições ambientais e de infraestrutura inadequadas, presença de lixo, esgoto a céu aberto e água parada, também contribuem para a proliferação de patógenos e seus hospedeiros que aumentam a exposição e o risco dos moradores contraírem doenças, como a leptospirose, adquirida durante contato direto com água e solo contaminados com urina de animais infectados.

Nos centros urbanos o rato-de-esgoto é o principal reservatório e disseminador da bactéria Leptospira no ambiente. No Brasil são registrados aproximadamente mais de 10 mil casos graves por ano. A doença inicia-com febre alta, dor de cabeça e no corpo, e pode ser confundida com dengue, gripe e outras viroses. Os casos graves evoluem com icterícia (olhos e pele ficam amarelos), falência dos rins (redução do volume da urina) e sangramentos. Cerca de 10% dos pacientes internados com leptospirose grave morrem. O risco de óbito é 50% maior entre os que apresentam sangramento pulmonar.

O diagnóstico é desafiador e complicado devido à apresentação inicial inespecífica que mimetiza outras infecções bacterianas e virais, dificultando o reconhecimento precoce e também devido à falta de uma técnica de teste padrão para verificar a infecção em todos os estágios. Além disso, algumas áreas endêmicas carecem de recursos laboratoriais e infraestrutura adequados, bem como de pessoal bem treinado.

Um estudo intitulado “Why is leptospirosis hard to avoid for the impoverished? Deconstructing leptospirosis transmission risk and the drivers of knowledge, attitudes, and practices in a disadvantaged community in Salvador, Brazil” realizou uma pesquisa transversal com metodologia CAP (Conhecimentos, Atitudes e Práticas) em uma comunidade urbana desfavorecida em Salvador (BA), com dados ambientais e epidemiológicos coletados simultaneamente sobre a transmissão da leptospirose. Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou o Dr. Federico Costa, um dos autores do artigo.

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: Poderia nos falar sobre o estudo e quais aspectos destacaria?

Dr. Federico Costa: Este estudo fez parte de projeto de pesquisa maior intitulado ‘Otimização de medidas de Controle para Zoonoses em comunidades Brasileiras”, financiando pela agencia Medical Research Council (MRC), que foi realizado no período de 2017 a 2019, em quatro comunidades vulnerabilizadas de Salvador, localizadas no Subúrbio Ferroviário desta cidade.

Foi um estudo de Conhecimentos, Atitudes e Práticas (CAP) relacionado a leptospirose, chamado de CAPL, onde tínhamos o interesse de entender como os fatores demográficos, socioeconômicos e ambientais interagiam para determinar o CAP dos residentes, e como a combinação desses fatores determinavam o risco de infecção. A pesquisa foi realizada em Marechal Rondon, localizada no Subúrbio Ferroviário de Salvador, considerada uma comunidade de baixa renda, com condições socioambientais e de saneamento deficientes e que possui uma alta concentração de famílias em situação de vulnerabilidade social. Contextos como o de Marechal Rondon, afetados por profundas desigualdades sociais, tem uma histórica exposição dos segmentos populacionais empobrecidos a uma ampla gama de doenças zoonóticas, como é o caso da leptospirose. Segundo dados do projeto de pesquisa maior, a soroprevalência para Leptospira em Marechal Rondon é 12%, o que é considerada alta comparada aos resultados que foram identificados nas demais comunidades com características similares, que apresentaram soroprevalência de 9% e 10%.

SBMT: Quais os principais achados e a importância deste estudo?

Dr. Federico Costa: Neste estudo nós identificamos que o conhecimento sobre a leptospirose dos residentes teve influência nas suas atitudes, práticas de prevenção e consequentemente, na redução do risco infecção pela Leptospira. Outro achado relevante e que foi pouco explorado em estudos prévios, esteve relacionado a influência dos fatores socioeconômicos e principalmente, ambientais sobre o CAP. Na população em que realizamos o estudo constatamos que a maioria das pessoas tinha ouvido falar sobre a leptospirose e os meios de comunicação de massa, como a televisão e o rádio foram as principais fontes de informação sobre a doença. A maioria dos participantes do estudo percebia a leptospirose como uma doença séria, se preocupava em ser infectado pela bactéria que pode causar a leptospirose e evitavam o contato com as fontes de contaminação da doença. Apesar disso, algumas pessoas reportaram que não faziam o uso de luvas e botas quando tinham contato com água de esgoto, o que pode ser devido as condições socioeconômicas, e utilizavam veneno ilegal para o controle de rato nos domicílios.

Destaca-se ainda, que o conhecimento que os residentes tinham sobre a doença influenciou as suas atitudes e consequentemente, as suas práticas de prevenção. As variáveis do CAP tiveram importante influência de fatores socioeconômicos e ambientais e as pessoas com pontuações mais altas de conhecimentos e práticas tiveram um risco reduzido de exposição à Leptospira. Pessoas do sexo masculino e aqueles com nível socioeconômico mais baixo estiveram em maior risco, mas uma vez que controlamos para as variáveis do CAP, sexo masculino e baixo nível socioeconômico não foram condutores diretos de soropositividade. O emprego esteve ligado a um melhor conhecimento e um ambiente menos contaminado e, portanto, menor risco, mas estar empregado foi associado a um risco maior, e não menor, de transmissão da leptospirose, sugerindo, portanto, que sair para o trabalho como uma atividade de alto risco para as pessoas que residem em contextos com deficiências de infraestrutura.

SBMT: Por que os negros tiveram melhores atitudes em relação à leptospirose?

Dr. Federico Costa: No nosso estudo, residentes autodeclarados negros tiveram melhores atitudes em relação à leptospirose em comparação com residentes autodeclarados não-negros. Percebemos ainda que não houve diferenças entre esses dois grupos em conhecimentos, práticas ou soropositividade, ao contrário de estudos anteriores, que mostraram que residentes autodeclarados negros apresentavam maior risco de leptospirose. Desse modo, nossos achados sugerem que os residentes autodeclarados negros, maioria da população em contextos de extrema vulnerabilidade social e expostos aos fatores de risco que podem causar a leptospirose, reconheciam mais a doença como um problema de saúde potencialmente grave, e estavam em um risco semelhante (e em estudos anteriores maior) de leptospirose em comparação com residentes não negros, o que pode ter relação também com experiência histórica de vida em contextos com deficiências socioambientais.

Percebemos ainda, que os nossos achados estão de acordo com os relatados para outras doenças em diferentes contextos. Grupos étnicos historicamente marginalizados nos EUA eram os que mais provavelmente percebera a COVID-19 como uma grande ameaça à sociedade. As infecções por COVID-19 afetam desproporcionalmente minorias étnicas marginalizadas. Além disso, as internações por doenças infecciosas em geral são maiores nas comunidades étnicas indígenas, especialmente para os grupos mais desfavorecidos. No nosso estudo, apesar das melhores atitudes terem sido observadas entre pessoas autodeclaradas negras, desigualdades socioeconômicas e ambientais, manifestadas por tipos de emprego, condições de vida, fatores sociodemográficos e ambientais, se mantem nesses grupos étnicos até hoje que vivem à margem da sociedade e em risco desproporcional de serem afetados por doenças infecciosas.

SBMT: A pobreza amplia o risco de contrair leptospirose?

Dr. Federico Costa: Infelizmente, no atual século, a pobreza continua sendo um determinante importante para a saúde e que contribui não só com a ampliação do risco de contrair doenças como a leptospirose, mais com a manutenção da exposição dos segmentos populacionais mais vulnerabilizados a um conjunto de fatores de risco para outras doenças transmissíveis. Acrescenta-se a isto, o fato de que doenças como a leptospirose continuarem na lista das doenças negligenciadas, ou seja, aquelas doenças que atingem principalmente populações empobrecidas, e que tem escassos investimentos para assistência à saúde, tratamento dos casos e ações de prevenção e controle efetivas e permanentes.

Se ainda convivemos em grandes centros urbanos como Salvador, submetidos a contextos com profundas desigualdades sociais e populações convivendo com saneamento básico precário, sem esgotamento sanitário, afetadas por episódios de alagamentos frequentes em períodos de chuvas fortes, vivendo em moradias precárias, com deficiências na infraestrutura urbana, sem pavimentação e com coleta de lixo inadequada, estaremos vendo um retrato de que a pobreza é real e ela ainda existe. Além disso, as populações submetidas a contextos como estes estarão expostas permanentemente ao risco de desenvolver não somente doenças leptospirose, mas também, outras doenças zoonóticas e transmissíveis.

SBMT: Por que é difícil evitar a leptospirose para os pobres?

Dr. Federico Costa: Porque a leptospirose é uma doença zoonótica que tem relação com um conjunto de fatores determinantes socioambientais e das condições de vida das populações. Além disso, não há uma priorização das políticas públicas para intervenção sobre esses fatores determinantes e consequentemente, na melhoria das condições de vida dessas populações.

Sendo assim, se permanecermos em um cenário onde não forem implementadas políticas intersetoriais efetivas e ações de intervenção para melhoria das condições de vida dos segmentos populacionais historicamente vulnerabilizados, continuará sendo difícil evitar a leptospirose entre os empobrecidos. Em contextos com graves deficiências socioambientais, onde residem as populações de baixa renda, as mensagens e intervenções de saúde devem levar em conta essa complexidade e priorizar as intervenções sobre os fatores que limitem a exposição dos residentes e apoiar práticas de prevenção mais efetivas da leptospirose.

SBMT: A população mundial de residentes em favelas tem aumentado exponencialmente. Estudos sobre a transmissão da doença nessas comunidades podem guiar intervenções ambientais a fim de controlar a leptospirose?

Dr. Federico Costa: Sim. Os estudos epidemiológicos sobre transmissão de doenças, como foi o estudo do CAPL, são estudos populacionais que tem como finalidade descrever as condições de saúde das populações, investigar e compreender os fatores que determinam a transmissão de doenças, propor/guiar intervenções e ainda, avaliar a efetividade das intervenções realizadas. Além disso, esses estudos devem e precisam ser acessados por gestores e profissionais de saúde no momento da construção das ações direcionadas a intervir sobre os problemas ambientais que podem contribuir no controle e na prevenção da leptospirose, mas também de outras doenças zoonóticas transmissíveis que afetam desproporcionalmente essas populações.

SBMT: Gostaria de acrescentar algo?

Dr. Federico Costa: Agradecer e dizer que para construir soluções efetivas voltadas para intervir sobre os problemas complexos como é o caso da leptospirose é preciso que haja o envolvimento e a participação efetiva de todos, residentes das comunidades, universidade, profissionais de saúde e gestores.