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Raiva humana: alerta para uma ameaça persistente

Casos de raiva humana transmitidos por animais silvestres têm chamado a atenção e indicam uma mudança no perfil epidemiológico da doença

05/02/2024

A epidemiologia atual da raiva humana varia em diferentes regiões. No Brasil, com os cães domésticos e de rua vacinados, o alerta recai sobre o morcego, mas o sagui também já foi identificado como um potencial reservatório no País

 

Desde 2015, o Brasil tem enfrentado casos de raiva humana, o que configura uma preocupação constante para as autoridades de saúde. Atualmente, o alerta recai sobre o morcego, mas o sagui também já foi identificado como um potencial reservatório no País , criando uma “bomba armada” prestes a gerar surtos, cujos destinos ainda são incertos. Globalmente, a raiva é uma zoonose com letalidade de 100% e resulta em aproximadamente 60 mil mortes por ano, as crianças com menos de 15 anos representam 40% das vítimas. No Brasil, o número de atendimentos antirrábicos anuais é expressivo, cerca de 650 mil. Apenas dois casos evoluíram para cura.

A epidemiologia atual da raiva humana varia em diferentes regiões. Na Etiópia, por exemplo, os cães foram responsáveis por 95% dos óbitos entre 1990 e 2000. No Nepal, a carga da doença é desproporcionalmente alta, com um impacto significativo na saúde pública. Na China, vários estudos analisaram a epidemiologia e a dinâmica de transmissão para os humanos e a maior incidência foi registrada em 2007. No Brasil, apesar da transmissão estar muito ligada aos cães, no imaginário popular, houve mudanças significativas impulsionadas pela prática de vacinação anual de cachorros domésticos e de rua, que deixaram de ser os principais agentes transmissores. Atualmente, a maior parte dos casos está relacionada à transmissão por morcegos. Segundo dados do Ministério da Saúde, dos 47 registros de raiva humana desde 2010, 24 foram provocados por morcegos (51,06%), contra nove por cães (19,15%) e quatro (8,51%)  por gatos.

O médico infectologista e professor substituto da Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor do Centro Universitário Christus (Unichristus), Dr. Luís Arthur Brasil Gadelha Farias explica que o cenário evoluiu das décadas em que o cão era o principal agente envolvido na transmissão (1970-1990) para o protagonismo de espécies animais silvestres como o morcego, responsável por surtos na Amazônia em 2004 e 2005. “A ampla vacinação de cães domésticos e de rua foi uma das principais responsáveis pela mudança no perfil de transmissão da raiva humana no País. O Programa Nacional de Profilaxia da Raiva, implementado em 1973 e estendido a todos os estados em 1977, foi essencial para a redução significativa dos casos em cães e para o controle da raiva urbana no Brasil”, acrescenta. Na série histórica de 1999 a 2017, o Brasil passou de 1.200 casos positivos para apenas 11, em 2021. Todos identificados como variantes de animais silvestres, revelando a predominância dessas variantes na natureza.

Ainda de acordo com o Dr. Farias, o contato com animais silvestres como morcegos, raposas, saguis e a circulação de variantes selvagens tem explicado os últimos casos de raiva humana no País. “Os casos se estabilizaram após os surtos causados por morcegos na Amazônia, entretanto, ainda são evidenciados na região Norte. Em 2017/2018, ocorreram novos surtos relacionados a ataques de morcegos hematófagos em comunidades ribeirinhas isoladas na Amazônia brasileira, representando um novo desafio de saúde pública no que se refere ao controle da transmissão da raiva humana”, alerta. Além disso, segundo o professor, mostra a necessidade de ampliar o acesso à profilaxia pós-exposição nas comunidades remotas, assim como uma nova discussão sobre alternativas para vacinação e controle de reservatórios animais silvestres. Em 2022, outro surto, desta vez, em uma comunidade indígena em Minas Gerais, chamou a atenção pelo acometimento de crianças indígenas, o que reforça a necessidade de vigilância da doença nessa população.

Devido à sua elevada taxa de letalidade e por ser passível de eliminação no seu ciclo urbano e pela existência de medidas eficientes de prevenção, como a vacinação humana e animal, a disponibilização de soro antirrábico humano, a realização de bloqueios de foco, entre outras, a raiva desempenha importante papel na saúde pública. “O Brasil é um dos países com os maiores avanços no controle da transmissão da raiva humana no mundo. No entanto, precisamos atentar para a raiva de origem silvestre, assim como para o controle, prevenção e acesso à profilaxia antirrábica. O tema é relevante e merece debate, conclui o Dr. Farias ao lembrar que o impacto da pandemia nos sistemas de saúde voltou a atenção para a Covid-19 e que agora é o momento de retomar a discussão sobre outras doenças que historicamente assolam o País.

Ações coordenadas para conter a raiva humana no Brasil ressaltam a importância da vigilância epidemiológica, da vacinação de animais e da conscientização das pessoas sobre os riscos associados. O conhecimento da população sobre a profilaxia antirrábica e o cuidado ao interagir com animais são fundamentais para evitar a transmissão da doença. Apesar da raiva humana transmitida por cães ter apresentado um declínio notável, a atenção continua para a raiva mantida e transmitida entre mamíferos silvestres, principalmente morcegos e saguis, nas regiões Norte e Nordeste. A prevenção é a chave para evitar uma escalada dessa ameaça à saúde pública.

Com mais de 180 espécies de morcegos no Brasil, apenas três são hematófogas

Assim como todos os seres vivos, os morcegos desempenham um papel fundamental na manutenção e no equilíbrio dos ecossistemas. A maioria das espécies encontradas no Brasil são frugívoras, insetívoras ou nectarívoras, contribuindo para a polinização de diversas espécies de flores. Existem apenas três espécies hematófagas, conhecidas popularmente como morcegos-vampiros: Diaemus youngi (morcego-vampiro-de-asas-brancas), Diphylla ecaudata (morcego-vampiro-de-pernas-peludas) e Desmodus rotundus (morcego-vampiro-comum). As duas primeiras espécies, especializaram-se evolutivamente na ingestão de sangue de aves, e não são relevantes na transmissão da raiva humana. Dentre elas, o Desmodus rotundus alimenta-se quase exclusivamente do sangue de mamíferos, incluindo o homem, e aves, especialmente quando o número de mamíferos domésticos e selvagens é baixo. Além disso, ele tem a capacidade de se adaptar às mudanças ecológicas antropogênicas.

Apesar de serem apontados como vetores do vírus da raiva, os morcegos-vampiros têm auxiliado estudos e pesquisas na medicina devido às substâncias anticoagulantes que apresentam na saliva, importante fator para o desenvolvimento de novas drogas anticoagulantes mais específicas e seguras, com propriedades mais adequadas para uso clínico. As espécies hematófagas têm ganhado destaque como modelo no desenvolvimento de medicamentos para tratar trombose e outros problemas de saúde de pessoas que sofreram acidentes vasculares. Vale lembrar que os morcegos são animais protegidos por lei, agredi-los ou matá-los configura crime ambiental.

Variantes do vírus da raiva de saguis são encontradas em morcegos

Pela primeira vez, foi encontrado em morcegos um grupo de variantes do vírus da raiva humana bastante semelhante ao das variantes detectadas em saguis do Nordeste brasileiro. Conduzido com espécies de morcegos encontrados no Ceará, o estudo intitulado “Rabies virus variants from bats closely related to variants found in marmosets (Callithrix jacchus), a neglected source of human rabies infection in Brazil” foi publicado no Journal of Medical Virology em agosto de 2023. Nele, os pesquisadores analisaram 144 amostras de tecido retirado do cérebro de morcegos pertencentes a 15 espécies. O primeiro conjunto de sequências era compatível com variantes do vírus da raiva encontradas em duas espécies de morcego do Sudeste em 2010, os insetívoros Tadarida brasiliensis e Nyctinomops laticaudatus. Outro grupo de variantes, encontrado pela primeira vez em morcegos (duas espécies insetívoras e uma frugívora), tem relação evolutiva muito próxima com o vírus da raiva detectado em saguis-de-tufo-branco do Nordeste brasileiro.

Recentemente, outra situação envolvendo saguis foi registrada no Ceará e descrita no artigo “Caso de raiva humana após mordedura por sagui (Callithrix jacchus) em paciente com Covid-19: evolução clínica, cuidados intensivos e contexto epidemiológico”. Segundo a publicação, um homem de 36 anos buscou atendimento em maio de 2023 com sintomas de parestesia e dor no membro superior direito, relacionados a uma mordedura de sagui ocorrida em fevereiro. Após dois meses, apresentou quadro grave de agitação psicomotora, desorientação, espasmo muscular e diaforese, evoluindo para óbito. Na investigação para raiva humana, a imunofluorescência direta (IFD) do LCR e a RT-PCR de amostras de saliva foram negativas, contudo, a biópsia de nuca e de tecido encefálico coletado post-mortem foram positivas para o vírus da raiva na IFD. Embora a sintomatologia tenha ocorrido durante a coinfecção com Covid-19, provavelmente, não houve relação entre as doenças. Nenhum caso de raiva humana no Ceará foi registrado nos últimos sete anos. O último caso por mordedura de sagui ocorreu em 2012. Inquéritos epidemiológicos revelaram a presença de novas linhagens do Rabies virus (RABV) circulando nestes animais. Este relato de caso enfatizou a importância da profilaxia antirrábica e a conscientização da população.

Sobre a doença

A raiva é uma doença infecciosa viral aguda, que acomete mamíferos, inclusive o homem, e caracteriza-se como uma encefalite progressiva e aguda com letalidade de aproximadamente 100%. É causada pelo Vírus do gênero Lyssavirus, da família Rabhdoviridae. É transmitida ao homem pela saliva de animais infectados, principalmente por meio da mordedura, mas também por arranhadura e/ou lambedura desses animais. O período de incubação varia entre as espécies, desde dias até anos (com uma média de 45 dias no ser humano, podendo ser mais curto em crianças) e está relacionado à localização, extensão e profundidade da mordedura, arranhadura, lambedura ou tipo de contato com a saliva do animal infectado, da proximidade da porta de entrada com o cérebro e troncos nervosos, concentração de partículas virais inoculadas e cepa viral.

Após o período de incubação, surgem os sinais e sintomas clínicos inespecíficos da raiva, que duram em média 2 a 10 dias. Nesse período, a pessoa apresenta mal-estar geral, pequeno aumento de temperatura, anorexia, cefaleia, náuseas, dor de garganta, entorpecimento, irritabilidade, inquietudee sensação de angústia. Podem ocorrer linfoadenopatia, hiperestesia e parestesia no trajeto de nervos periféricos, próximos ao local da mordedura, e alterações de comportamento. A infecção progride e surgem manifestações mais graves e complicadas, como ansiedade e hiperexcitabilidade crescentes, febre, delírios, espasmos musculares involuntários, generalizados e/ou convulsões. Espasmos dos músculos da laringe, faringe e língua ocorrem quando a pessoa olha ou tenta ingerir líquido, apresentando sialorreia intensa (hidrofobia). Os espasmos musculares evoluem para um quadro de paralisia, levando a alterações cardiorrespiratórias, retenção urinária e obstipação intestinal. Observa-se, ainda, a presença de disfagia, aerofobia e hiperacusia.

A raiva é uma doença quase sempre fatal e a melhor medida de prevenção é a vacinação pré ou pós-exposição. Quando a profilaxia antirrábica não ocorre e a doença se instala, pode-se utilizar um protocolo de tratamento da raiva humana, baseado na indução de coma profundo, uso de antivirais e outros medicamentos específicos. As Secretarias Estaduais de Saúde possuem os imunobiológicos necessários para a profilaxia da raiva humana no Brasil: vacina antirrábica humana de cultivo celular, soro antirrábico humano e imunoglobulina antirrábica humana. Atualmente, após avaliação profissional e se necessário, são recomendadas duas medidas de profilaxia antirrábica humana: a pré-exposição e a pós-exposição.

Saiba mais

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/imagens/arquivos-2023/atualizacoes-16-05-2023/tabela-2-casos-de-raiva-humana-por-regiao-administrativa-e-unidades-federadas

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/imagens/arquivos-2023/atualizacoes-16-05-2023/tabela-3-casos-de-raiva-humana-por-especie-animal-agressora

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/imagens/arquivos-2023/atualizacoes-16-05-2023/tabela-4-casos-de-raiva-humana-por-municipio-de-ocorrencia

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/imagens/arquivos-2023/atualizacoes-16-05-2023/tabela-5-raiva-humana-por-regiao-administrativa-e-unidades-federadas_1990-2023

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**