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Relação explosiva: aquecimento global e doenças tropicais

Por meio de modelos matemáticos, cientistas estimam como será, até o fim do século, a área de distribuição de quatro arbovírus: Oropouche, Mayaro, Rocio e vírus da encefalite de Saint Louis

06/11/2019
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O maior aumento na área de distribuição do Rocio foi previsto para Porto Alegre (RS). Atualmente, menos de 9% do município é considerado área de risco. Em 2100, no cenário de alta emissão, o índice chegaria a 57,3%

Pode parecer assustador, mas as evidências científicas indicam que se não forem tomadas medidas drásticas vamos enfrentar um dano irreversível do Planeta e o colapso das sociedades nos próximos anos. Foi o que advertiu o naturalista britânico David Attenborough no documentário “Mudança Climática” Mas o alerta não é recente. Há 18 anos, a relação entre as mudanças climáticas e a saúde foi declarada um consenso científico pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Há anos as mudanças climáticas estão diante de nossos olhos em tempo real.

Com o aumento da população e a globalização, os agentes causadores de doenças passaram a circular muito mais rapidamente, trocando de continente do dia para a noite e com isso a Europa ficou à mercê de epidemias até então típicas das regiões tropicais. Pesquisador notório do tema, Dr. Ulisses Confalonieri acredita que o aquecimento global pode alterar as doenças tropicais. “Possivelmente isso deve ocorrer em algumas regiões, se mais umidade e temperatura acelerarem o desenvolvimento dos agentes biológicos, especialmente vetores”, ressalta.

O aumento da temperatura média do planeta, induzido principalmente pela emissão de gases de efeito estufa, deve contribuir para ampliar, no Brasil, a área de distribuição de quatro vírus transmitidos por mosquitos: o Oropouche (OROV), o Mayaro (MAYV), o Rocio (ROCV) e o vírus da encefalite de Saint Louis (SLEV). A conclusão é do estudo de Camila Lorenz, Thiago S. Azevedo, Flávia Virginio, Breno S. Aguiar, Francisco Chiaravalloti-Neto e Lincoln Suesdek, publicado em setembro de 2017, na revista PLoS Neglected Tropical Diseases intitulado Impact of environmental factors on neglected emerging arboviral diseases.

Futuro das doenças tropicais perante o aquecimento global

As doenças transmitidas por mosquitos causam uma grande carga de doenças em todo o mundo. As taxas vitais desses vetores ectotérmicos e parasitas respondem forte e não linearmente à temperatura e, portanto, às mudanças climáticas. A Dra. Erin A. Mordecai, uma das autoras do artigo Thermal biology of mosquito-borne disease ressalta que as doenças transmitidas por vetores são uma grande preocupação com mudança climática, pois os mosquitos, carrapatos e outros artrópodes que transmitem as doenças são realmente sensíveis à temperatura. “Uma vez que esses vetores têm limites superiores e inferiores de temperatura, o aquecimento climático não apenas aumenta a transmissão em todo lugar, ao contrário, o aquecimento global tem mais probabilidade de causar mudanças nos alcances geográficos e sazonais de doenças como malária, dengue ou Zika. Por exemplo, em climas frios e grandes latitudes e altitudes (como grande parte dos EUA e Europa), espera-se que o aquecimento global crie condições mais propícias para doenças como febre do Nilo Ocidental, malária, dengue, Zika, entre outras. Ao mesmo tempo, o aquecimento dos Trópicos deve tornar o ambiente mais propício para dengue, Zika, chikungunya e outros patógenos”, alerta a pesquisadora.

Seus estudos demonstram que diferentes vetores e patógenos têm temperaturas ideais de transmissão distintas: a transmissão da malária pelo mosquito africano Anopheles gambiae tem seu pico em torno de 25ºC, enquanto a transmissão da dengue pelo Aedes aegypti tem seu pico em torno de 29ºC. “Isso quer dizer que algumas regiões que hoje tem altas taxas de malária podem sofrer mudanças causadas pela temperatura no sentido de doenças transmitidas pelo Aedes, como dengue e outras viroses, em consonância com a urbanização e outros fatores que afetam a dinâmica das doenças”, explica. Ainda segundo ela, isso deve ser uma grande preocupação com a saúde global porque as medidas de controle da dengue são completamente diferentes daquelas da malária, e porque muitas pessoas nunca tiveram nenhuma exposição prévia ou imunidade para essas viroses emergentes.

A Dra. Jamie Melissa Caldwell, também uma das autoras do artigo, complementa. “Espera-se que a mudança climática alterem onde as doenças ocorrem, os tipos de doenças mais prevalentes assim como a carga das doenças. Muitas doenças transmitidas por vetores são afetadas pelo clima porque a fisiologia dos próprios vetores e sua habilidade de transmissão estão ligadas à temperatura, umidade e pluviosidade. Diferentes vetores estão otimizados para diferentes condições, logo, esperamos que algumas doenças se espalhem com a mudança climática enquanto outras podem se restringir”, esclarece. Ainda de acordo com ela, espera-se que as mudanças sejam mais proeminentes nos Trópicos onde existem condições ao longo do ano inteiro para muitas doenças transmitidas por vetores. “Obviamente, existem muitos outros fatores que determinam como e se essas mudanças ocorrerão, como a dimensão da urbanização, crescimento demográfico, que também afetam a transmissão de doenças e estão em mudança rápida nos trópicos”, acrescenta.

População exposta às doenças tropicais

Especialistas ressaltaram no Congresso Europeu de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas, realizado em Amsterdã no primeiro semestre deste ano, que encorajados pelas mudanças climáticas, viagens e comércio internacional, as epidemias de doenças vetoriais vão se desenvolver para alcançar uma grande parte da Europa nas próximas décadas. “Esta questão da Europa foi muito discutida no âmbito do IPCC. Os modelos mostram estas possibilidades, especialmente em relação à migração de infecções do Norte Africano”, lembra o Dr. Confalonieri. Estudo do Instituto de Patógenos Emergentes, na Flórida (EUA), também chama atenção. De acordo com o documento, quase um bilhão de pessoas podem ficar expostas às doenças tropicais, uma vez que as mudanças climáticas estão aumentando a variedade de mosquitos dispersos no mundo. Os cientistas estão preocupados em como os mosquitos podem se dispersar à medida que o mundo continua a se aquecer.

De acordo com o Dr. Confalonieri, ainda temos tempo de evitar que isso ocorra. “O que se pode fazer é combater os vetores no ambiente construído, como as cidades, já que nas florestas e outros ecossistemas naturais é difícil ou impraticável”, enfatiza ao destacar que os mosquitos dispersam rápido por meio do transporte humano (aviões etc), mas a migração estimulada pelo clima demora. Questionado se a incidência de doenças tropicais em regiões quentes como Caribe, África Ocidental e Sudeste Asiático, pode diminuir à medida que o clima se torne tão quente que exceda os limites térmicos superiores de transmissão, o especialista diz ser pouco provável já que os patógenos e vetores têm amplas faixas de temperatura e umidade nas quais podem se desenvolver.

Saúde, poluição do ar e aquecimento global

Nove em cada dez pessoas respiram ar poluído todos os dias. Em 2019, a poluição do ar (um dos principais contribuintes para a mudança climática) foi considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o maior risco ambiental para a saúde e a OMS estima que as mudanças climáticas causem 250 mil mortes adicionais por ano devido à desnutrição, malária, diarreia e estresse por calor. “Mais prováveis são o estresse pelo calor e a exacerbação da poluição, pelos efeitos mais diretos. Para os demais agravos citados há vários fatores não climáticos que interferem e fica difícil prever”, assinala o Dr. Confalonieri.

O aumento da incidência de desastres naturais que tem provocado inundações, tempestades, enchentes e secas, que provocam mais danos à saúde pública e risco de redução da produção agrícola, é outra consequência da mudança climática, que segundo o Dr. Confalonieri, são os chamados eventos extremos, difíceis de se prever, mesmo com modelos matemáticos e estatísticos complexos. Ondas de calor mais intensas e incêndios; aumento da prevalência de doenças causadas por alimentos e água contaminados e de doenças transmitidas por vetores; aumento da probabilidade de desnutrição resultante da redução da produção de alimentos em regiões pobres e perda da capacidade de trabalho em populações vulneráveis são os principais riscos à saúde. Riscos incertos, mas potencialmente mais graves incluem: colapso em sistemas alimentares, conflitos violentos associados a escassez de recursos e movimentos de população, e exacerbação da pobreza, minando a saúde.

Independentemente das alterações esperadas na dinâmica das doenças tropicais ou de suas áreas de ocorrência, o fato é que a Mudança climática deve exigir novas maneiras de se pensar o controle e a prevenção das doenças tropicais em um futuro próximo. Assim, o monitoramento da incidência e da expansão geográfica destas doenças deve fazer parte da vigilância epidemiológica, com foco sobre as populações que já sofrem ou que poderão sofrer os impactos da variação climática. Ecossistemas alterados pela ação do homem não só potencializam a transmissão de doenças emergentes, mas contribuem também para a instalação de outras doenças associadas à ecotoxicologia que afetam o sistema imunológico e agridem a saúde de um modo geral, mesmo não sendo infecciosas.

Embora o tema mereça grande destaque, especialistas se preocupam com o fato de a saúde ainda não ser uma vertente importante da cobertura da mídia sobre o aquecimento global. Para mudar isso, algumas ações foram desenvolvidas. Em 2016, foi lançado o Lancet Countdown. O projeto tem como objetivo monitorar as evidências que relacionam mudanças climáticas e saúde humana até 2030.