Divulgação, Notícias

Relato de caso: Sete casos de leishmaniose tegumentar no pênis

Desafios no diagnóstico de úlceras genitais: uma série de casos de leishmaniose genital

09/03/2021
width=402

Autores apresentam forma rara de leishmaniose mucocutânea genital, considerando as características epidemiológicas, apresentação clínica, diagnóstico diferencial e tratamentos oferecidos

Marina Dias de Souza[1], Aloísio Falqueto[1], Gabriela Lopes de Morais[1], Amanda da Silva Salomão[1] and Fernanda Daher Pereira

[1]. Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento de Doenças Infecciosas, Vitória, ES, Brasil.

Contatos

Autor correspondente: Dra. Marina Dias de Souza.

e-mail: dias.marinasouza@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0543-2529

Recebido em 2 de novembro de 2020

Aceito em 20 de janeiro de 2021

Dra. Marina de Souza e seus colaboradores, do Estado do Espírito Santo, Brasil, apresentam uma série de sete casos de leishmaniose tegumentar no pênis. Em quatro pacientes, está claro que eram lesões secundárias a infecções anteriores, propagadas, provavelmente, por via hematogênica, como ocorre, de fato, nos casos de leishmaniose disseminada. Não custa recordar também que a leishmaniose tegumentar costuma desenvolver-se em áreas mais frias da pele, como nariz, lábios e orelhas e, nestes casos, no pênis, cuja temperatura, em repouso, também é mais baixa. Em dois pacientes e, talvez, em um terceiro – não está inteiramente claro na descrição – as lesões foram primárias do pênis. Sobre isso, resta se especular duas questões. A primeira é se a transmissão teria sido venérea, a partir de parceira ou parceiro assintomático. Infelizmente, não se dispõe de informações sobre os contatos sexuais dos pacientes, mas parece altamente improvável devido a baixíssima parasitemia ou carga de infecção na pele de pacientes assintomáticos. A segunda, é se a infecção teria sido causada pela picada de flebotomíneos. Neste último caso, a investigação de hábito de nudismo – em casa ou na natureza – ou de abluções prolongadas ao ar livre poderia ter ajudado a resolver a questão. De qualquer modo, a série de casos chama a atenção para a importância de inclusão de leishmaniose tegumentar em lesões genitais masculinas e a necessidade de se investigar outras lesões no tegumento ou histórico de lesões em outros locais. Sugere também a investigação do hábito de nudismo e o alerta para comunidades nudistas em regiões endêmicas.

Resumo

A leishmaniose é uma doença infecciosa tropical causada pelo protozoário Leishmania spp. e é transmitida por insetos da subfamília Phlebotominae. Pode se manifestar como leishmaniose cutânea, uma úlcera indolor que pode evoluir para uma afecção sistêmica mais grave à medida que o protozoário se espalha de forma linfática ou hematogênica, dependendo da imunidade do hospedeiro. Nesta série de casos, os autores apresentam uma forma rara de leishmaniose mucocutânea genital, considerando as características epidemiológicas, apresentação clínica, diagnóstico diferencial e tratamentos oferecidos.

Palavras-chave: Leishmaniose. Mucocutâneo Úlceras genitais

Introdução

A leishmaniose é uma zoonose endêmica em 88 países, causada por um parasita Leishmania intracelular transmitido por flebotomíneos1. Os hospedeiros mais comuns são cães, roedores e raposas; os humanos são hospedeiros acidentais2. A leishmaniose cutânea (LC) é a apresentação clínica mais comum, e as características clínicas dependem da virulência da espécie e da resposta imune do hospedeiro3. Apresenta-se em áreas expostas do corpo como úlcera eritematosa arredondada e indolor, com bordas espessas, bordas elevadas e área periférica granulada vermelha4. Sete espécies foram identificadas no Brasil como causadoras de doenças cutâneas5. No Espírito Santo, apenas a espécie mais difundida foi encontrada: Leishmania (Viannia) braziliensis, responsável pela doença da mucosa6.

Os pleomorfismos da LC incluem as características da lesão, regiões afetadas2, e as manifestações genitais. A causa dessas manifestações atípicas não é clara, embora a imunossupressão seja um fator importante em alguns casos2,7. Para evitar deformações ou sequelas funcionais, o diagnóstico precoce é fundamental para o início do tratamento, uma vez que as úlceras genitais são comuns e podem ter múltiplas etiologias, sendo poucas as publicações que descrevem a leishmaniose genital. Até onde sabemos, esta é a primeira série de relatos de caso no Brasil a expandir as condições de diagnóstico diferencial em uma área endêmica de leishmaniose.

Relato de Caso

O primeiro paciente apresentou uma pequena lesão pruriginosa no pênis, que evoluiu por 20 anos com uso ineficaz de penicilina benzatina. Ele foi tratado para LC por três anos antes do aparecimento da ferida. A biópsia excisional da lesão mostrou inflamação granulomatosa epitelioide necrosante não caseosa, presença de vasculite, e foi negativa para tuberculose e resultados fúngicos. Uma úvula rugosa e infiltrada, leve aspereza no septo nasal bilateral e uma lesão ulcerada, hiperêmica e infiltrada ao redor da glande do pênis são mostradas na Figura 1. Os resultados do teste cutâneo de Montenegro foram positivos (15 mm). As lesões foram tratadas com três ciclos de 10 mg/kg por dia de antimoniais pentavalentes por 20 dias, o que levou à remissão completa dos sintomas e cicatrização satisfatória das lesões.

O segundo paciente apresentava lesão ulcerada de seis meses no prepúcio, 1,5 cm de diâmetro, com bordas eritematosas elevadas e centro limpo, pouco depressível e indolor. O paciente foi tratado sem sucesso com penicilina benzatina. Antimoniais pentavalentes haviam sido usados dois anos antes, sugerindo reativação. O exame da lesão peniana revelou uma forma amastigota do parasita, que foi tratada com sucesso com antimoniais pentavalentes.

O terceiro paciente foi submetido a tratamento prévio para LC em fúrcula esternal, face e pavilhão auricular com boa resposta clínica. Um ano após o primeiro tratamento, o paciente retornou com queixa de lesão peniana sem prurido e indolor iniciada dois meses antes. As sorologias para hepatite, sífilis e vírus da imunodeficiência humana (HIV) foram não reativas. Havia uma úlcera peniana no sulco balanoprepucial (0,6 cm) e duas lesões papulares proximais (0,5 cm) na superfície dorsal do pênis. O exame direto das lesões encontrou as formas intra e extracelulares do parasita e foram prescritos dois ciclos de antimoniais pentavalentes.

O quarto paciente apresentava lesão vegetante em lábio inferior, lesão ulcerada acometendo o sulco nasogástrico e asa do nariz (faces externa e interna) e lesão ulcerada à esquerda. Aproximadamente dois meses após o seu aparecimento, o paciente relatou três lesões ulceradas no pênis: uma no sulco balanoprepucial e duas na glande. O teste cutâneo de Montenegro mostrou resultado de 7 mm, e a biópsia da lesão peniana com histologia sugeria leishmaniose. O tratamento com antimoniato pentavalente não teve sucesso inicial. Todas as lesões cicatrizaram após três ciclos de tratamento adicionais.

O quinto paciente apresentou úlcera dolorosa extensa com bordas elevadas e bem definidas, superfície eritematosa e granular acometendo corpo do pênis e glande e exposição dos corpos cavernosos e da uretra distal (Figura 2). Onze anos antes, ele havia feito tratamento para LC com antimoniais pentavalentes. Foi realizada cistostomia e os resultados histopatológicos sugeriram sífilis, embora o teste do Venereal Disease Research Laboratory tenha sido não reativo no sangue periférico. O paciente foi diagnosticado com infecção pelo HIV. Além da lesão genital, o paciente apresentava linfonodomegalia cervical e hepatomegalia. O exame direto da lesão confirmou leishmaniose. Após a alta, o paciente retornou com queixa de duas áreas sangrentas com tecido granuloso. Foi submetido a mais dois ciclos de antimoniais, com remissão completa dos sintomas, cicatrização satisfatória da lesão e retirada da cistostomia.

O sexto paciente apresentou lesões nodulares em antebraço e joelho sem tratamento específico. Após dois meses, o paciente desenvolveu úlcera na mucosa do lábio inferior granular com aumento progressivo e indolor de tamanho. Estava associada a extensa lesão ulcerada em palato mole (Figura 3) e rebordo gengival superior, com infiltração de úvula e amígdala. Havia múltiplas pápulas na região genital, com superfície granular, cor vermelho-vinho e crosta central no escroto e na base do pênis. Uma úlcera bem definida com bordas altas, um centro com crosta profunda e uma pequena quantidade de secreção foi encontrada no joelho esquerdo. O exame direto revelou a forma amastigota do protozoário. O paciente foi diagnosticado com leishmaniose mucosa cutânea disseminada e teve boa resposta a um ciclo de antimoniais pentavalentes.

O sétimo paciente apresentava lesão eritematosa ulcerada com bordas bem definidas no antebraço direito, que aumentava progressivamente de tamanho. Lesões semelhantes apareceram no antebraço esquerdo, face e região temporal bilateralmente e, por último, no pênis. A biópsia da lesão do antebraço revelou dermatite superficial e profunda com áreas de granuloma e intenso infiltrado mononuclear com linfócitos, plasmócitos e histiócitos. Após um mês, surgiram úlceras hemorrágicas na mucosa nasal. O exame direto confirmou o diagnóstico de LC disseminada. O tratamento com antimoniais pentavalentes levou à regressão completa e cicatrizes.

Discussão

A leishmaniose tegumentar americana (LTA) é muito comum no Brasil, com ampla expansão territorial e transmissão focal. Globalmente, existem entre 0,7 e 1,3 milhões de casos entre 85 países2,5,8. As características clínicas da LC consistem em úlceras exclusivamente cutâneas, sendo possível o reaparecimento das lesões cutâneas e mucosas devido à disseminação hematogênica ou linfática do parasita. A manifestação mais rara da LTA é a LC difusa, na qual as lesões não estão próximas à picada; LC localizado tem feridas perto da picada; a leishmaniose mucocutânea pode se manifestar de qualquer maneira9. As lesões genitais são comparáveis às lesões mucosas e são causadas por inoculação direta por picada de mosquito-pólvora ou por disseminação hematogênica10.

Na maioria dos casos, as lesões cutâneas aparecem em áreas expostas do corpo, com bordas elevadas e superfície granular, que são indolores, de crescimento lento e, eventualmente, causam desvitalização significativa do tecido adjacente. Como pouco se sabe sobre as leishmanioses localizadas na região genital, esses casos revelam a importância do exame físico das lesões cutâneas e mucosas e da obtenção de histórias epidemiológicas e clínicas detalhadas. Lesões genitais podem aparecer próximas a picadas de flebotomíneos ou resultar da disseminação sanguínea da infecção1,11. A detecção da forma disseminada permite ao médico identificar úlceras genitais crônicas que não respondem aos tratamentos convencionais.

O teste cutâneo de Montenegro é um método diagnóstico indireto realizado por injeção intradérmica de antígeno para medir a sensibilização do hospedeiro contra o parasita. Pacientes com doenças de longa duração, especialmente mucosas, apresentam respostas exacerbadas; nesses casos, o índice de positividade é próximo a 100%. O teste cutâneo de Montenegro não reativo em pacientes com lesões de mucosa tem alto valor preditivo negativo e diagnósticos diferenciais devem ser considerados7.

A confirmação visual direta do parasita é necessária para o diagnóstico e tem índice preditivo positivo de 90% superando a acurácia histopatológica. No entanto, são necessários médicos experientes. As características histopatológicas dependem das características imunológicas do hospedeiro e da duração da evolução da doença. A biópsia é essencial, apesar de sua baixa sensibilidade, uma vez que as úlceras de LC fornecem diagnóstico diferencial de micoses profundas, linfomas cutâneos, carcinoma basocelular, antraz cutâneo, hanseníase, sífilis e outras condições2.

Todos os pacientes relatados para a forma disseminada da doença são do sexo masculino, com idade entre 25 e 65 anos, residentes em áreas rurais, e metade era tabagista e consumia álcool. As lesões genitais foram acompanhadas de formas disseminadas ou recorrentes, que variaram de 1 a 11 anos após a primeira manifestação da doença cutânea. Em todos os casos, as histórias epidemiológicas eram de áreas endêmicas de leishmaniose mucosa cutânea.

As comorbidades, principalmente a imunossupressão relacionada ao HIV, indicam maior gravidade e prevalência de lesões atípicas, incluindo a forma genital7. O paciente portador dessa condição apresentou os sintomas mais agressivos e incapacitantes, com exposição da uretra e necessidade de cistostomia, sugerindo que o sistema imunológico do hospedeiro influenciou diretamente na gravidade do quadro clínico.

A LC pode se manifestar de várias maneiras, levando a possíveis atrasos no diagnóstico e tratamento. O histórico epidemiológico do paciente é fundamental para o diagnóstico diferencial das úlceras cutâneas mucosas, juntamente com o exame direto realizado por profissional experiente. Os testes cutâneos de Montenegro podem corroborar, mas o diagnóstico é confirmado com a visualização do parasita, mas atualmente não estão disponíveis no Brasil. O tratamento com antimoniais pentavalentes continua sendo o tratamento mais eficaz para todos os casos, mesmo nas formas atípicas.

A leishmaniose genital deve ser considerada no diagnóstico diferencial de úlceras genitais, especialmente em pacientes do sexo masculino de áreas prevalentes com o vetor da doença ou em pacientes previamente tratados para leishmaniose cutânea ou disseminada.

Contribuição dos autores

MDS: Concepção e desenho do estudo, Obtenção de dados, Redação do artigo, Análise e interpretação dos dados, Aprovação final da versão a ser submetida; GLM: Concepção e desenho do estudo, Obtenção de dados, Análise e interpretação dos dados, Aprovação final da versão a ser submetida; FDP: Concepção e desenho do estudo, Aquisição de dados, Revisão da redação do artigo, Aprovação final da versão a ser submetida; ASS: Concepção e desenho do estudo, Obtenção de dados, Análise e interpretação dos dados, Aprovação final da versão a ser submetida; AF: Concepção do estudo, Análise e interpretação dos dados, Revisão do esboço do artigo.

Conflito de Interesses

Os autores declaram que não há conflito de interesses.

Apoio Financeiro

O relato do caso não necessitou de suporte financeiro.

Referências

  1. Schubach A, Cuzzi-Maya T, Gonçalves-Costa SC. Leishmaniasis of glans penis. J Eur Acad Dermatol Venereol. 1988;10(3):226-8.
  2. Meireles CB, Maia LC, Soares GC, Teodoro IPP, Gadelha MSV, Silva CGL, et al. Atypical presentations of cutaneous leishmaniasis: A systematic review. Acta Trop. 2017;172:240-54.
  3. Cabello I, Caraballo A, Millán Y. Leishmaniasis in the genital area. Rev Inst Med Trop. 2002;44(2):105-7.
  4. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de Vigilância da Leishmaniose Tegumentar Americana. 2ª edição atualizada, 1ª reimpressão. Brasília: MS; 2010. 180 p.
  5. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de Vigilância da Leishmaniose Tegumentar. 1ª edição. Brasília: MS; 2017. 189 p.
  6. Falqueto A, Sessa PA, Varejão JBM, Barros GC, Homen H, Júnior GG. Leishmaniasis due to Leishmania braziliensis in Espírito Santo state, Brazil: Further evidence on the role of dogs as a reservoir of infection for humans. Mem Inst Oswaldo Cruz. 1991;86(4):499-500.
  7. Lindoso JAL, Barbosa RN, Posada-Vergara MP, Duarte MIS, Oyafuso LK, Amato VS, et al. Unusual manifestations of tegumentary leishmaniasis in AIDS patients from the New World. Br J Dermatol. 2009;160(2):311-6.
  8. Temponi AOD, Brito MG, Ferraz ML, Diniz SA, Silva MX, Cunha TN. American tegumentary leishmaniasis: a multivariate analysis of the spatial circuits for production of cases in Minas Gerais State, Brazil, 2007 to 2011. Cad Saude Publica. 2018;34(2):2-4.
  9. Veronesi R, Focaccia R. Tratado de Infectologia. 5th ed. São Paulo: Atheneu, 2015. 2489 p.
  10. Mota LAA, Miranda RR. Manifestações dermatológicas e otorrinolaringológicas na Leishmaniose. Int Arch Otorhinolaryngol. 2011;15(3):376-81.
  11. Gontijo B, Carvalho MLR. Leishmaniose tegumentar americana. Rev Soc Bras Med Trop. 2003;36(1):71-80.

width=237

FIGURA 1: Fotografia das lesões genitais dos casos 1 a 4, respectivamente

width=236

FIGURA 2: Fotografia de úlcera genital com exposição de corpos cavernosos e da uretra distal

width=252

FIGURA 3: Fotografia de lesões disseminadas de leishmaniose tegumentar

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**