Revisão internacional revela subutilização da telemedicina no enfrentamento global às DTNs
Apesar de resultados promissores, o estudo revela que as iniciativas de cuidado remoto ainda são escassas e não alcançam os países mais pobres
15/12/2025
As Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) afetam mais de um bilhão de pessoas em regiões pobres e vulneráveis do mundo, perpetuando ciclos de exclusão social frequentemente agravados pela falta de saneamento básico, água potável e moradia adequada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecem o enfrentamento a esses agravos como prioridade global. Em países de baixa e média renda, onde os serviços de saúde são mais escassos e o acesso pode exigir longos deslocamentos, o diagnóstico tardio acaba por ocasionar sequelas irreversíveis ou mortes evitáveis. As teleconsultas surgem como uma estratégia promissora para reduzir desigualdades de acesso e melhorar indicadores de vigilância em saúde.
Uma revisão intitulada “Telemedicine in the Clinical Care of Neglected Tropical Diseases: A Scoping Review”, publicada na revista PLOS Neglected Tropical Diseases, reuniu experiências internacionais de telemedicina aplicadas ao cuidado clínico individual de pessoas acometidas por DTNs. Conduzido por uma equipe interdisciplinar, o trabalho analisou 422 artigos identificados em bases como MEDLINE/PubMed, Web of Science e Scopus, dos quais apenas oito cumpriram os critérios de inclusão. Metade das publicações incluídas foi publicada após 2021, refletindo a expansão da saúde digital após a pandemia de Covid-19.
A telemedicina, segundo a OMS, pode ser definida como o uso de tecnologias de telecomunicações para apoiar a prestação de serviços médicos, diagnósticos e terapêuticos em situações em que a distância é um fator crítico. Pode incluir interações síncronas, como videochamadas em tempo real, ou assíncronas, como o envio de imagens ou exames para telediagnóstico. O cuidado remoto pode ser especialmente útil em regiões rurais ou de difícil acesso, onde muitas DTNs são endêmicas. Nessas áreas, ela tem potencial para reduzir o intervalo entre o surgimento dos sintomas e o início do tratamento especializado, contribuindo tanto para interromper cadeias de transmissão na comunidade quanto para diminuir o risco de complicações e sequelas nos pacientes.
A Dra. Fernanda Salvador, Médica de Família e Comunidade e doutora em Doenças Tropicais e Saúde Global pela Universidade Nova de Lisboa, autora principal do estudo, explica que a produção científica sobre telemedicina nas DTNs se mostra desproporcional à carga global dessas doenças. “É fundamental conduzir estudos comparativos entre atendimento remoto e presencial, avaliando desfechos clínicos, indicadores de eficácia e segurança, assim como o impacto sobre os sistemas públicos de saúde e a morbimortalidade dos pacientes. Esses dados são essenciais para orientar políticas públicas baseadas em evidência e qualificar o cuidado às populações afetadas”, afirma.
Os estudos incluídos foram realizados na América do Sul (Brasil, Colômbia, Guiana Francesa e Paraguai), na Índia e na África (Costa do Marfim e Tanzânia). Quatro aconteceram em áreas rurais ou remotas, e quatro em zonas urbanas ou periurbanas. A maioria envolveu equipes da Atenção Primária à Saúde, em projetos-piloto com duração entre 2 e 18 meses. As tecnologias empregadas foram variadas, incluindo aplicativos móveis, plataformas dedicadas e chamadas telefônicas. Apenas um estudo utilizou videoconferências. Quatro dos oito estudos focaram em doenças dermatológicas como hanseníase e leishmaniose cutânea.
De acordo com a Dra. Salvador, os estudos incluídos demonstram que a telemedicina foi uma ferramenta eficaz no manejo de DTNs em situações específicas. Três estudos compararam o diagnóstico remoto com o atendimento presencial, evidenciando alta acurácia: hanseníase (74% de concordância), tracoma (95%) e complicações de neurocisticercose (sensibilidade 89% e especificidade 97%). “A vigilância remota também aumentou a detecção de casos suspeitos de dengue no território e reduziu em 94,4% a necessidade de consultas médicas presenciais para seguimento de formas leves e moderadas. Em doenças de pele, como leishmaniose cutânea e úlcera de Buruli, a telemedicina melhorou a adesão ao tratamento e possibilitou seguimento clínico contínuo em comunidades de difícil acesso. A saúde móvel evidenciou elevada acurácia diagnóstica por imagens a distância, melhorou o seguimento pós-tratamento em áreas de difícil acesso, reduziu deslocamentos e permitiu ajustes terapêuticos mais ágeis”, destaca a médica.
Apesar dos resultados positivos, lacunas importantes persistem na aplicação da telemedicina para o manejo das DTNs. Dos 21 agravos listados pela OMS, apenas cinco foram abordados nos estudos incluídos, e nenhum deles foi conduzido em países de baixa renda, evidenciando desigualdades geográficas e estruturais históricas. A África, que concentra cerca de 40% da carga global dessas doenças, apresentava em 2020 penetração de banda larga de apenas 30%, limitando a implementação de soluções digitais. Esses dados, segundo a pesquisadora, revelam que a infraestrutura tecnológica e o acesso à conectividade, aliados à alfabetização digital, são fatores determinantes para a equidade em saúde e fundamentais para que a telemedicina beneficie de forma justa as populações mais vulneráveis.
Para a Dra. Salvador, o Sistema Único de Saúde (SUS) apresenta atualmente um cenário favorável à expansão da telemedicina no Brasil, após superar importantes barreiras regulatórias com a Lei da Telessaúde. “Precisamos investir em avaliações efetivas de custo-efetividade e desenvolver estratégias digitais que contornem obstáculos concretos no cuidado das DTNs, como o analfabetismo, para garantir que a inovação chegue a quem mais precisa”, ressalta. Ainda segundo ela, a revisão mostra que a telemedicina pode ampliar significativamente o diagnóstico e o monitoramento clínico, mas sua incorporação nos serviços depende de protocolos clínicos robustos, que permitam escalonar essas iniciativas com segurança.
Alta aceitação em piloto de teleatendimento de doença de Chagas e leishmaniose cutânea em serviço especializado do SUS
Um estudo-piloto de viabilidade e aceitabilidade, conduzido em um hospital público de referência no Brasil, avaliou o uso de teleconsultas síncronas via videochamadas pelo WhatsApp para o acompanhamento clínico especializado de pacientes com doença de Chagas e leishmaniose cutânea. Entre agosto e outubro de 2024, 46 pacientes foram convidados e 38 (82,6%) realizaram a teleconsulta. Apesar de grande parte dos participantes apresentar idade avançada e baixa escolaridade, quase dois terços (63,2%) participaram da consulta sem auxílio de terceiros, demonstrando boa usabilidade mesmo em contextos de vulnerabilidade social. A maior parte dos usuários apresentou familiaridade com tecnologias digitais, e a satisfação foi elevada: 97,4% afirmaram que utilizariam novamente a telemedicina, evidenciando a redução de deslocamentos e economia de tempo e dinheiro como principais benefícios.
A Dra. Salvador assinala, entretanto, que são necessários estudos com maior número de participantes para avaliar impacto clínico e desenvolver plataformas adequadas para a incorporação desse modelo nos serviços públicos de saúde. Para mais detalhes, confira o artigo “Telemedicine in the clinical care of Chagas disease and American cutaneous leishmaniasis: pilot study in a public referral hospital in Brazil”.
Telemedicina e doença do sono em Angola
Um estudo conduzido no Instituto de Combate e Controlo das Tripanossomíases (ICCT), em Angola, mostrou que os profissionais de saúde percebem a telemedicina como uma oportunidade concreta para aprimorar o manejo da tripanossomíase africana humana (doença do sono), endêmica em regiões rurais onde a escassez de especialistas dificulta decisões terapêuticas. Devido à escassez de recursos humanos, a possibilidade de discutir casos remotamente, obter segunda opinião e acelerar encaminhamentos foi amplamente valorizada como forma de otimizar o cuidado clínico pelas equipes do território.
Apesar do interesse local, o estudo identificou obstáculos estruturais e desafios logísticos que limitam a adoção em larga escala: baixo fornecimento de internet em áreas isoladas, conexão instável, indisponibilidade de equipamentos e familiaridade limitada com ferramentas digitais pelas equipes de saúde. A Dra. Salvador reforça que a telemedicina tem potencial para reduzir desigualdades no acesso ao cuidado qualificado e fortalecer a tomada de decisão clínica no manejo da doença do sono, mas sua implementação requer investimentos em infraestrutura digital, capacitação de profissionais, políticas de suporte institucional e parcerias entre governo, centros de pesquisa e organizações internacionais. Para os autores, incluindo profissionais do ICCT, promover a equidade digital em saúde é fundamental para que a tecnologia alcance efetivamente as populações mais afetadas e contribua para o controle da enfermidade. Confira o artigo “Telemedicine and human African trypanosomiasis in Angola: Local insights into challenges and opportunities for remote health delivery“.
Recentemente, a Dra. Salvador concluiu seu doutorado em Cotutela Internacional com o programa de Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas do INI/Fiocruz, no Rio de Janeiro. Sua tese, intitulada “Telemedicine in the care of neglected tropical diseases: international overview and pilot study at a specialized reference service in Brazil”, foi orientada pela Professora Dra. Cláudia Maria Valete (INI-Fiocruz) e coorientada pelo Professor Dr. Henrique Silveira (IHMT-UNL), em uma parceria institucional pioneira entre as duas instituições.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**