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Saída dos EUA da OMS desafia saúde global e expõe fragilidades da cooperação internacional

Programas de imunização em massa, vigilância epidemiológica e combate a surtos epidêmicos, frequentemente implementados com suporte técnico e financeiro da OMS, enfrentam risco de descontinuidade

03/02/2025

Os Estados Unidos contribuem com aproximadamente 500 milhões de dólares anuais para a OMS. A redução desse financiamento pode comprometer programas essenciais, especialmente em países vulneráveis

Em 22 de janeiro, Os Estados Unidos formalizaram sua saída da Organização Mundial da Saúde (OMS), consolidando um movimento que gerou repercussões significativas na saúde global. A decisão, oficializada em meio a discussões sobre a gestão internacional da pandemia de Covid-19, refletiu críticas à transparência da organização e à suposta influência de alguns países em suas decisões. A medida anunciada pelo então presidente Donald Trump deve entrar em vigor em 22 de janeiro de 2026.

Com um histórico de contribuição substancial, os Estados Unidos eram o maior financiador da OMS, destinando anualmente US$ 500 milhões, cerca de 15% do orçamento total da entidade. Esse montante sustentava diversas iniciativas, incluindo o combate a doenças infecciosas, o fortalecimento de sistemas de saúde em países em desenvolvimento e respostas emergenciais. A saída do país ameaça a continuidade desses projetos, sobretudo em regiões vulneráveis.

A Dra. Mariângela Simão, ex-diretora-geral adjunta da OMS para acesso a medicamentos e produtos de saúde, enfatizou que pandemia de Covid-19 evidenciou a necessidade de uma coordenação sólida entre os países, permitindo a disseminação da melhor evidência científica e aprimorando a gestão de crises sanitárias. “O maior desafio é garantir essa cooperação internacional, pois nenhum país está seguro enquanto outros permanecem vulneráveis”, frisou. Como resposta às limitações identificadas durante a pandemia, os países decidiram revisar o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), aprovado em 2005, que se mostrou insuficiente para emergências de grande escala.

Entre os programas mais afetados pela redução do financiamento, destacam-se as iniciativas de erradicação da poliomielite e os esforços no combate à malária e à tuberculose, que dependem fortemente de apoio financeiro internacional. A Dra. Simão alertou que o programa de tuberculose, cuja maior parte do financiamento (60%) provém dos Estados Unidos, vai sofrer impactos severos. Ela mencionou ainda que, em alguns países africanos, clínicas de HIV estão fechando devido à suspensão de recursos do Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da SIDA (PEPFAR, na sigla em inglês), o que pode gerar consequências graves, como o aumento da resistência a medicamentos. “Além disso, a OMS enfrenta perdas significativas no setor de imunização, pois 50% dos profissionais do Departamento de Imunizações da entidade são financiados pelos Estados Unidos e estão sendo realocados”, assinalou.

A OMS anunciou medidas para mitigar os impactos imediatos, incluindo revisão de prioridades estratégicas, cortes administrativos e busca por novas fontes de financiamento. Alemanha e Japão já sinalizaram aumento de suas contribuições, enquanto a União Europeia discute a criação de um fundo coletivo para apoiar programas essenciais da OMS. Apesar desses esforços, especialistas alertam que o vácuo deixado pelos Estados Unidos será difícil de preencher no curto prazo. A ex-diretora-geral adjunta da OMS reconheceu a necessidade de mobilizar recursos e ressaltou que é essencial buscar financiamento entre países de alta renda e fundações privadas, como a Fundação Bill e Melinda Gates, que desempenham um papel estratégico, especialmente na erradicação da poliomielite.

A decisão norte-americana reacendeu debates sobre a governança da saúde global e o papel de potências emergentes, como a China. A Dra. Simão refutou alegações de uma crescente influência chinesa na OMS, afirmando que essa narrativa reflete mais cunho político do que fundamento real. “A organização opera sob um sistema rigoroso de controle e balanço, no qual decisões técnicas são tomadas com base no consenso de especialistas internacionais”, argumentou. No entanto, reconheceu que disputas políticas sempre são frequentes em temas sensíveis, como a propriedade intelectual. “A saúde global não pode se tornar palco de rivalidades políticas. A prioridade deve ser a proteção das populações mais vulneráveis”, defendeu.

Outro ponto abordado foi o impacto das mudanças climáticas e a emergência de novos patógenos. A Dra. Simão ressaltou que esses fenômenos não respeitam fronteiras, reforçando a necessidade de cooperação internacional contínua e robusta. Como exemplo, mencionou as variantes do vírus H5N1, que representam uma ameaça constante à vigilância sanitária global.

Os impactos da saída dos Estados Unidos serão sentidos, sobretudo, nos países em desenvolvimento, onde a OMS desempenha um papel fundamental. Programas de imunização em massa, vigilância epidemiológica e combate a surtos epidêmicos enfrentam o risco de descontinuidade, colocando em xeque décadas de progresso. A saída dos Estados Unidos da OMS marca um ponto de inflexão na saúde global, evidenciando a interdependência entre nações e os desafios de manter a solidariedade internacional em um cenário político cada vez mais polarizado. Em meio a ameaças sanitárias constantes, como o ressurgimento de doenças negligenciadas e os impactos das mudanças climáticas, a necessidade de mecanismos globais de cooperação torna-se ainda mais urgente. A comunidade internacional precisa reconfigurar suas estratégias para garantir que os avanços conquistados não sejam comprometidos e que as populações vulneráveis permaneçam protegidas diante de crises futuras.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**