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Série “Ciência nos Trópicos” – Parte 3 – Financiamento limitado para pesquisas em países em desenvolvimento: um problema que requer mudança

A capacidade de investigação científica desenvolvida em um contexto social de extrema desigualdade pode suscitar desigualdade na pesquisa científica?

09/12/2019
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Os rumos do desenvolvimento científico e a necessidade de reflexão sobre ética na ciência trazem o tema da vulnerabilidade dos participantes na pesquisa para o centro das discussões éticas

É inegável que os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico têm proporcionado contribuições insuperáveis para o progresso da humanidade. Mas, se por um lado, estas conquistas trazem esperanças de melhoria, por outro, criam uma série de contradições que necessitam ser analisadas responsavelmente. Nos tempos atuais, a pesquisa científica deixou de ser a busca do conhecimento apenas pelo saber e passou a ser pensada, sobretudo, quanto à sua aplicação prática e instrumental. A ciência deve produzir conhecimentos universalmente úteis, que promovam a inclusão social nas suas mais variadas vertentes e desenvolvimento sustentável. Um aspecto importante a ser considerado na realização das pesquisas é o impacto que seus resultados podem causar. Devido à repercussão que certas pesquisas podem gerar, é fundamental que sejam estabelecidas formas de controle ético, seja a partir de uma nova postura diante da própria ciência e/ou dos valores da sociedade.

A ciência moderna tem exigido grandes investimentos para produzir resultados inovadores e todo pesquisador deve exercer sua profissão de maneira apropriada para que represente contribuições adequadas para o avanço da ciência. Nas últimas décadas, o debate acerca da ética nas pesquisas financiadas por países desenvolvidos e implementadas em parceria com instituições de países com recursos limitados tem ganhado destaque. Na África, por exemplo, houve aumento significativo em pesquisas em resposta aos sérios desafios de saúde do continente.

Nesta terceira matéria da série de reportagens produzidas pela Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) sobre “Ciência nos Trópicos”, conversamos com representantes da African Academy of Sciences (AAS), que promove aconselhamento baseado em evidências cientificas para os Governos e tomadores de decisão como forma de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do continente de forma racional e eficiente.

Em relação às diferenças entre a ciência feita nos países ricos e a aquela produzida em países menos desenvolvidos, o presidente da Academia Africana de Ciências, Dr. Felix Dapare Dakora, defende que, em princípio, não deveria haver diferença entre a ciência realizada em países ricos e a realizada em países menos desenvolvidos se o financiamento adequado estiver presente. “Contudo, geralmente o financiamento em países em desenvolvimento tende a ser fraco ou inexistente. Como resultado, os cientistas dos países em desenvolvimento muitas vezes não têm acesso a equipamentos sofisticados e infraestrutura adequada para análise de amostras experimentais. Aqui me refiro a pesquisa em áreas como engenharia, ciências naturais, saúde etc.

Hoje, um grande número de pesquisadores de países menos desenvolvidos têm treinamentos como alunos de PHD e/ou Pós-doutorado em laboratórios avançados em países desenvolvidos, logo, adquirem habilidades e técnicas capazes de conduzir pesquisas de ponta se tiverem o financiamento necessário para obter os reagentes ou outros insumos caros necessários para conduzir os grandes equipamentos”, explica. Ainda segundo o Dr. Dakra, a ciência realizada em países menos desenvolvidos pode ser restringida pela falta de recursos, falta de equipamentos, baixo nível de colaboração e baixa cultura/ética. Então, conclui ele, em contraste, a pesquisa em ciências sociais e humanas que não demandam equipamentos tão caros, deve ser similar em países ricos e nos menos desenvolvidos.

Para o vice-presidente da Academia Africana de Ciências para a Região da África Central, professor Dr. Vincent PK Titanji, em democracias frágeis, a importância da ciência é geralmente subestimada. “Muito frequentemente os tomadores de decisão acreditam que a política pode resolver a maioria dos problemas. É claro que muitos discursos falsos de apoio à ciência existem, mas financiar a ciência não é visto como uma prioridade. Mesmo quando os Governos dos países em desenvolvimento decidem financiar a pesquisa, eles tendem a focar nas chamadas pesquisas aplicadas, e não na pesquisa fundamental, deixando de lado que as duas estão inextricavelmente ligadas, uma levando à outra”, ressalta. Ainda segundo ele, as boas práticas de ciência derivam da aplicação do Método Científico e no Princípio da Universalidade da Ciência e ao fixar esse conceito na cultura das pessoas.

Já o vice-presidente da Academia Africana de Ciências para a Região da África do Sul, professor Dr. Boitumelo V. Kgarebe, reconhece que a pesquisa em países em desenvolvimento é bastante negligenciada financeiramente pelos governos. “Pela própria natureza da pesquisa, seus resultados demoram a serem atingidos, enquanto os governos precisam colher frutos fáceis e de curto prazo, como construir estradas, pontes, escolas e etc., como forma de garantir a reeleição. Dessa forma, as prioridades para os políticos são aqueles projetos que os fazem ‘sair bem na foto’, destaca.

Segundo ele, mudar essa realidade depende de convencer esses políticos, e isso demanda longos diálogos com eles. Informar do processo da pesquisa e do potencial retorno sobre o investimento requer que os pesquisadores expliquem elementos da pesquisa em uma linguagem compreensível, com metas factíveis ao longo da pesquisa. Frequentemente, é essa comunicação (ou a falta dela) que rebaixam projetos de pesquisa e quaisquer custos ou financiamentos, a um status de baixa prioridade.

“Esse fato pode futuramente ser abordado por instituições africanas como o African Development Bank Initiative ou a African Union, que são órgãos continentais no cenário africano que têm acesso direto aos políticos. Uma pesquisa alavancada através dessas instituições teria grandes progressos em priorizar a pesquisa e tornar o financiamento prontamente disponível”, conclui.

Em relação à credibilidade das pesquisas originadas de países como a África, o vice-presidente da Academia Africana de Ciências para a Região da África Oriental, professor Dr. Elly N. Sabiiti, admite que os pesquisadores na África são altamente treinados e realizam de boas a excelentes pesquisas que são publicadas tanto em periódicos nacionais como internacionais ou escrevem capítulos de livros ou que levam a composição de livros. Uma vez publicados nesses periódicos de referência eles são equivalentes ou até superiores quando publicados na Nature. “Na África há países com laboratórios de ponta onde pesquisadores geram conhecimento de qualidade igual a países desenvolvidos”, enfatiza.

O vice-presidente da Academia Africana de Ciências para a Região da África do Norte, professor Dr. Mahmoud Abdel-Aty, explica que para aproximar pesquisa com os procedimentos éticos e com a busca do conhecimento em países menos desenvolvidos, eles propõem comparações específicas e práticas para auxiliar na busca pelo conhecimento e para guiar os comitês na análise de quão bem os princípios éticos listados têm sido cumpridos em casos específicos. “Para aproximar a pesquisa dos procedimentos éticos, nós apoiamos parcerias colaborativas entre pesquisadores, patrocinadores, políticos e comunidades”, acrescenta.

Há pelo menos três milhões de anos, a África vem contribuindo com culturas, conhecimento, técnicas e tecnologias para o mundo. Mas a África também se move na ciência. A maioria dos países africanos tem algum sistema organizado para a revisão ética na investigação da área clínica. Em alguns deles, como Moçambique, os sistemas são apoiados por legislação, enquanto ainda são informais em muitos países africanos. Os trabalhadores de campo envolvidos na investigação frequentemente se deparam com um paradigma difícil: como interpretar as prioridades das próprias comunidades e traduzi-las em propostas concretas, e ao mesmo tempo satisfazer as expectativas das entidades financiadoras.

O desenvolvimento da bioética e da ética na investigação científica na África é relativamente incipiente, mas vem despertando o interesse público pelo tema. Em países subsaarianos como África do Sul, Nigéria, Quênia, Tanzânia e também Angola – propriamente na Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto (Fmuan) –, diversos programas de treinamento em ética de pesquisa foram criados por financiamentos da Fogarty International. A instituição pertence ao Instituto Nacional de Saúde Pública (NIH) dos Estados Unidos.