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Sistema CRISPR/Cas9 pode ajudar na descoberta de novas drogas e prevenção de doenças infecciosas

Como o sistema é um facilitador para a geração de modificações precisas nos genomas dos organismos é possível que ele nos aproxime da meta de desenvolver linhagens de parasitos modificados geneticamente que sejam inábeis para causar a doença, mas que permitam resposta imune duradoura que os torne potenciais linhagens vacinais

09/04/2018
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CRISPR/Cas9 pode contribuir com a aceleração das investigações sobre modificações genéticas de insetos vetores de doenças em busca de gerar insetos que perderam a eficiência como vetores

Imagine um sistema que permita editar o DNA genômico nas células e organismos de forma precisa e metodologicamente descomplicada e ainda promovendo implicações marcantes na pesquisa básica, na medicina e na biotecnologia. Uma ferramenta eficiente, prática e simples que possibilite trabalhar em larga escala sobre os genomas e prever uma significativa aceleração nos processos de análise de função gênica. Pois ela existe e já é uma realidade no Brasil. Trata-se do Sistema CRISPR/Cas9.

Essa nova ferramenta pode facilitar a descoberta de novas drogas ou permitir a prevenção de doenças genéticas inatas ou adquiridas ou patologias causadas por agentes infecciosos. A tecnologia CRISPR/Cas9 pode ainda contribuir com a aceleração das investigações relacionadas às modificações genéticas de insetos vetores de doenças. O sistema representa uma enorme facilitação nos processos de edição de genes dos mais diversos organismos e seus desdobramentos são importantes para o conhecimento puro, a ciência básica, bem como podem abrir novos horizontes na ciência aplicada.

Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) conversou com a Professora Titular em Parasitologia Molecular pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Angela Kaysel Cruz, que desde 2017 iniciou os primeiros experimentos para nocaute de genes em diferentes espécies de Leishmania.

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CRISPR-Cas9 confere imunidade adaptativa. Painel Esquerdo: Depois que um fago injetou seu DNA no citoplasma bacteriano, um complexo proteico é formado por Cas1 e Cas2. Uma sequência de DNA do fago, denominada protospacer, é adquirida a partir do DNA do fago pelo complexo Cas1-Cas2 (1). Esta sequência é então integrada no local genético CRISPR (2). A sequência agora é chamada de espaçador. Vários espaçadores de contatos anteriores com fagos são armazenados no locus genético CRISPR. Painel Direito: sequências espaçadoras são transcritas como RNA, e a proteína Cas9 é sintetizada (1). O RNA se liga ao Cas9 para formar um complexo de vigilância e interferência (2). O complexo então verifica o DNA intracelular para sequências correspondentes (3). Se uma sequência fágica correspondente for encontrada, Cas9 destrói o DNA por clivagem (4). Fonte: https://goo.gl/MPJA5F

 

SBMT: Dra Angela, fale um pouco da sua experiência com CRISPR/Cas9. Como e quando a senhora começou seus trabalhos nesta área?

Dra. Angela: Eu trabalho com espécies do protozoário do gênero Leishmania. Como regra geral, as ferramentas para manipulação genética desses parasitos têm que ser re-engenheiradas, repensadas e testadas, pois sua organização genética, estrutural e funcionalmente, é diversa da maioria dos eucariotos. De forma que todas as novas tecnologias geradas em outros organismos são readequadas aos tripanossomatídeos posteriormente. Dois grupos de pesquisa publicaram os primeiros artigos aplicando o sistema CRISPR/Cas9 a Leishmania em 2015 (grupos de Y. Sterkers e de G. Matlashewski, na França e no Canadá, respectivamente). Em 2016 iniciamos em meu laboratório os primeiros experimentos procurando reproduzir o sistema e os protocolos desenvolvidos pelo grupo canadense, sem sucesso, até que em 2017, o grupo de Eva Gluenz publicou um artigo sobre o desenvolvimento de ferramentas e protocolos alternativos. A pesquisadora nos forneceu as construções moleculares necessárias, de forma que ainda em 2017 pudemos iniciar os primeiros experimentos para nocaute de genes em diferentes espécies de Leishmania. Desde então, tivemos sucesso para gerar o nocaute de vários genes de interesse em Leishmania major e em Leishmania braziliensis. O que impressiona no sistema é sua eficiência e praticidade. A rapidez com que se alcança a edição desejada e a possibilidade de trabalhar em larga escala sobre os genomas permite prever uma significativa aceleração nos processos de análise de função gênica em larga escala com desdobramentos importantes de aplicação prática.

SBMT: Como funciona o sistema CRISPR/Cas9?

Dra. Angela: A edição de genomas pela enzima CAS9 (CRISPR-associated gene 9), uma endonuclease que reconhece repetições palindrômicas curtas regularmente espaçadas (do inglês clustered regularly interspaced short palindromic repeats (CRISPR), é uma tecnologia transformadora pois a Cas9 cliva a dupla fita de DNA de maneira precisa e sequência-específica. Um RNA guia (sgRNA) dirige essa especificidade. O reparo do DNA, que ocorre para corrigir a clivagem da dupla-fita, permite que a sequência de interesse seja retirada do genoma ou modificada de forma precisa. A habilidade de editar o DNA genômico nas células e organismos de forma precisa e metodologicamente descomplicada tem implicações marcantes na pesquisa básica, na medicina e na biotecnologia.

SBMT: Como essa nova ferramenta CRISPR/Cas9 pode ajudar na prevenção das doenças tropicais?

Dra. Angela: Como tentei explicar acima, a grande questão, o grande trunfo dessa nova ferramenta é sua simplicidade relativa e sua eficiência. A minha impressão é que o CRISPR/Cas9 é um catalisador poderoso do conhecimento a adquirir sobre o papel de um gene ou conjunto de genes para o funcionamento de um organismo (ou um patógeno) ou para sua interação com o seu hospedeiro. Pegando o exemplo das diversas espécies de Leishmania sabemos que há fatores múltiplos e redundantes envolvidos na patogênese ou na virulência, o que essa nova ferramenta pode fazer é contribuir com a aquisição do conhecimento acerca desses fatores por facilitar os procedimentos de manipulação genética dos parasitos. A segunda etapa, depois das edições, é compreender os seus efeitos, o que pode ser bastante complexo.

SBMT: A senhora acredita que a tecnologia CRISPR/Cas9 estará disponível também aos países mais pobres?

Dra. Angela: Essa tecnologia é possível em laboratórios de pesquisa com condições de infraestrutura e financiamento estáveis, em que experimentos e análises genéticas possam ser conduzidos. A questão seguinte, a mais difícil e que nos escapa, é empregar os avanços alcançados, facilitados pelo uso do CRISPR/Cas9, em benefício da sociedade de uma forma a incluir países pobres e/ou populações marginalizadas.

SBMT: A utilização dos novos métodos deve revolucionar o desenvolvimento de ferramentas mais avançadas para o controle de doenças tropicais. Como isso deve influenciar a indústria farmacêutica na produção de novos medicamentos e na produção de vacinas para doenças tropicais?

Dra. Angela: Entendo o Sistema CRISPR/Cas9 como uma ferramenta muito poderosa e muito útil, que pode ser usado nos mais diversos organismos. Essa ferramenta permite acelerar o conhecimento sobre genes e suas funções. Assim, é possível prever que a geração de parasitos mutantes de forma eficiente e ‘em larga escala’, como permite a edição por CRISPR/Cas9, pode facilitar os processos de varreduras de compostos para a descoberta de novas drogas ou facilitar o desenvolvimento de linhagens de parasitos modificados geneticamente que sejam inábeis para causar a doença, mas permitam o desenvolvimento de uma resposta imune duradoura, tornando-se assim potenciais linhagens vacinais.

SBMT: Que avanços se esperam na tecnologia de CRISPR/Cas9?

Dra. Angela: Talvez o uso mais impactante que já se fez com o sistema CRISPR/Cas9, por seu poder e possíveis desdobramentos, foi editar genes em embriões humanos, nesse terreno encontram-se talvez as maiores expectativas e os maiores perigos. É preciso compreender que o CRISPR está tornando muito mais fácil modificar microrganismos, animais e plantas. Isso cria novas questões regulatórias que cientistas, agências de fomento e agências regulatórias governamentais terão que enfrentar urgentemente.

SBMT: O CRISPR/Cas9 tem limites? Quais?

Dra. Angela: Ainda que seja uma tecnologia muito poderosa, como já mencionado, por sua eficiência e relativa simplicidade, há questões ainda desconhecidas – até pelo desenvolvimento ainda recente – ou controversas. Uma delas se refere a possíveis eventos de edições não planejadas/fora do alvo, que pode representar, em alguns casos, uma limitação importante do sistema.

SBMT: O que podemos esperar na produtividade da agricultura com a tecnologia?

Dra. Angela: A manipulação de genomas de plantas empregando o sistema CRISPR/Cas9 de edição de genomas já é uma realidade e pode ter desdobramentos e aplicações de grande impacto, particularmente pela eficiência e escala permitida pelo sistema. No entanto, eu prefiro não me pronunciar sobre uma área de conhecimento que não é a minha.

SBMT: O mosquito Aedes aegypti tem sido o grande vilão global nos últimos anos. De que forma as mutações nesse vetor podem ajudar a humanidade a vencer essa guerra?

Dra. Angela: Modificações genéticas de insetos vetores de doenças vem sendo implantadas em laboratórios de pesquisa com o objetivo de aplicação prática e já existem ensaios em andamento no campo. O que o sistema CRISPR/Cas9 pode fazer é contribuir com a aceleração das investigações por ser, como já mencionei, muito eficiente e simples do ponto de vista técnico.

SBMT: Quais as preocupações éticas em relação ao CRISPR / Cas9?

Dra. Angela: As questões éticas permeiam a investigação científica e todas as atividades humanas. Eu vou buscar o exemplo da descoberta da radioatividade por Marie Curie, há mais de cem anos. Quando M. Curie conduziu as primeiras investigações sobre a radioatividade e isolou o rádio pela primeira vez não tinha em mente as aplicações práticas da sua descoberta, fazia ciência pura. Os benefícios e avanços para a humanidade alcançados pelas diversas aplicações práticas possíveis graças às descobertas de Marie Curie são indiscutíveis. Mas, em associação a esses benefícios, existem também prejuízos e danos monstruosos, como o uso dos saberes sobre a radioatividade pela indústria armamentista. O uso pernicioso não diminui a importância dos benefícios e esse tipo de consideração e reflexão deve permear toda e qualquer atividade científica, penso eu.

Assim, é possível estender essas questões para um grande número de outras investigações e descobertas e entre elas a do sistema CRISPR/Cas9 e sua utilização e otimização como ferramenta para edição de genomas. Existe um grande número de benefícios possíveis, mas existe a possibilidade de sua utilização para fins amorais ou antiéticos. A regulamentação estrita e internacionalmente acordada sobre o uso de CRISPR/Cas9 definidora de aplicações autorizadas é urgente e a primeira conferência internacional de discussão sobre a ciência e a ética da edição de genes humanos ocorreu em 2015. A atenção da comunidade científica internacional é mandatória para regulamentação das aplicações do sistema dentro de preceitos éticos estritos.

SBMT: É possível se chegar a um super-humano resistente a todas as infecções?

Dra. Angela: Temos ainda muito a compreender sobre os processos e as relações entre agentes infecciosos e hospedeiros antes de pensar em um ‘super-humano resistente’, como você diz. O sistema CRISPR/Cas9 representa uma enorme facilitação nos processos de edição de genes dos mais diversos organismos, mas é necessário compreender o papel dos genes, suas inter-relações e funções antes de modificá-los. É necessário antes aprender o que precisamos e devemos modificar.

SBMT: A Eugenia será uma realidade?

Dra. Angela: Voltamos às questões relacionadas à ética que apenas tangenciei acima. A eugenia cabe nessa discussão que carece de muita reflexão e profundidade. Não me aventuraria nessa discussão neste momento.

SBMT: A senhora gostaria de acrescentar alguma informação que considera importante e que não tenha sido contemplada acima?

Dra. Angela: Entendo o Sistema CRISPR/Cas9 como uma ferramenta muito poderosa e muito útil, que pode ser usada nos mais diversos organismos – dos unicelulares às plantas e ao homem. Ela está permitindo acelerar o conhecimento sobre genes e suas funções e isso já tem desdobramentos importantes para o conhecimento puro, ciência básica, como pode abrir novos horizontes na ciência aplicada. Pode facilitar a descoberta de novas drogas ou facilitar a prevenção de doenças genéticas inatas ou adquiridas ou patologias causadas por agentes infecciosos. No entanto, não devemos perder de vista que ainda temos a aprender sobre potenciais fragilidades ou limitações do sistema CRISPR/Cas9 para sua aplicação em benefício da sociedade.