Surto reacende alerta para vírus Marburg na África
Até 3 de dezembro, autoridades confirmaram em laboratório 13 casos, incluindo oito mortes, enquanto outras notificações seguem em investigação clínica e epidemiológica
15/12/2025
Com letalidade de até 88% dos casos descritos, vírus de Marburg é endêmico no continente africano, mas ainda não havia sido registrado ao país
O Ministério da Saúde da Etiópia confirmou, em meados de novembro, um surto de doença causada pelo vírus de Marburg na região de Jinka, no sul do país. Até 3 de dezembro, autoridades confirmaram em laboratório 13 casos, incluindo oito mortes, enquanto outras notificações seguem em investigação clínica e epidemiológica. O governo etípope mobilizou equipes de campo e contou com o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), que enviaram especialistas, insumos diagnósticos e equipamentos de proteção individual para apoiar as ações de resposta. Segundo a infectologista Dra. Maria Aparecida Teixeira Lustosa, que atuou como consultora da OMS no controle do surto de Marburg em Uíge, Angola, em 2005, os primeiros dias de um evento dessa natureza são decisivos para definir estratégias capazes de interromper a cadeia de transmissão e evitar a propagação para áreas densamente povoadas.
O vírus de Marburg pertence à família Filoviridae, a mesma do vírus Ebola, e provoca uma doença aguda caracterizada por febre, mal-estar intenso, distúrbios gastrointestinais e, em muitos casos, manifestações hemorrágicas. Essa apresentação clínica insere a enfermidade no grupo das febres hemorrágicas virais, que inclui síndromes como dengue, febre amarela e o próprio Ebola, além de outras viroses menos conhecidas. A letalidade varia conforme a rapidez do diagnóstico, as condições de atendimento e o acesso a suporte clínico intensivo. O principal reservatório natural documentado é o morcego frugívoro Rousettus aegyptiacus, frequentemente encontrado em cavernas e minas. A exposição prolongada a esses ambientes, bem como o contato com secreções ou carcaças de animais infectados, constitui a principal porta de entrada para a infecção humana. Segundo a infectologista, a relação entre ambientes de risco, circulação comunitária e expansão para áreas rurais ou periurbanas exige vigilância constante, pois é nesses contextos que a resposta sanitária pode avançar ou retroceder.
De acordo com a Dra. Lustosa, a transmissão entre pessoas ocorre por contato direto com fluidos corporais de indivíduos infectados ou com superfícies contaminadas. Serviços de saúde que não adotam protocolos rigorosos de biossegurança enfrentam maior risco. Nos surtos anteriores, profissionais de saúde figuraram entre os grupos mais vulneráveis, sobretudo devido à exposição direta aos pacientes doentes, especialmente em cenários marcados por escassez de equipamentos de proteção individual ou falhas no manejo clínico e no controle de infecção. “A proteção das equipes assistenciais é um divisor de águas. Foi assim em Angola e continua sendo em qualquer cenário de resposta ao Marburg. Quando a biossegurança falha, a transmissão se acelera”, afirma.
Para a infectologista, fatores culturais também podem contribuir para a propagação da doença, como observado durante o surto ocorrido em Uíge, em 2005. Ela relata que algumas comunidades tribais mantêm rituais sagrados tradicionais, como a escarificação da pele com propósitos medicinais. Nessas práticas, curandeiros utilizam os mesmos instrumentos cortantes em diferentes membros da tribo ou da família, favorecendo a transmissão de agentes causadores de síndromes hemorrágicas. A médica observa ainda que, em determinados rituais fúnebres, algumas tribos têm a tradição de banhar os falecidos dos seus mortos, o que implica manipulação do cadáver e aumenta o risco de exposição a secreções contaminadas. “Esses rituais representam uma herança cultural ancestral que, sempre que possível, deve ser respeitada. No entanto, precisam ser cuidadosamente dialogadas para que o problema não se propague”, explica. Ela relembra que, durante sua atuação em Angola, chegou a ter o carro blindado da Organização das Nações Unidas (ONU) apedrejado ao se aproximar de algumas tribos, em Uíge, que temiam a testagem dos casos suspeitos e o encaminhamento dos positivos para unidades de isolamento.
Na região de Jinka, equipes locais instalaram tendas de isolamento, estruturaram áreas de triagem e iniciaram o rastreamento sistemático de casos e contatos. A estratégia se concentra na identificação precoce de sintomas, no monitoramento de pessoas expostas e no encaminhamento imediato de indivíduos sintomáticos para unidades especializadas. Esse processo, é particularmente sensível, pois parte da população associa o isolamento a locais de onde poucos retornam com vida. Paralelamente, pesquisadores investigam possíveis rotas de exposição, incluindo a proximidade de cavernas e práticas comunitárias que envolvem contato com animais silvestres. A análise genética das amostras coletadas deve indicar a origem da cepa e auxiliar na reconstrução da cadeia de transmissão. Para a Dra. Lustosa, a identificação rápida dessas rotas orienta as ações de contenção e evita a multiplicação de focos de transmissão.
O diagnóstico da infecção pelo vírus de Marburg requer laboratórios com alto nível de biossegurança, o que representa um desafio adicional em regiões remotas. A coleta, o transporte e a análise das amostras em centros especializados demandam tempo, e qualquer atraso podem comprometer a contenção do surto. Esse cenário motivou o envio de equipes laboratoriais móveis, capacitadas para acelerar a confirmação diagnóstica de casos suspeitos. Paralelamente, autoridades intensificaram as ações de comunicação de risco, com orientações sobre modos de transmissão, sinais de alarme e cuidados durante a assistência domiciliar e os rituais funerários. Para a infectologista, o engajamento comunitário é um eixo central da resposta, pois a disseminação de informações confiáveis influencia diretamente o comportamento das famílias e das lideranças locais.
Atualmente, não existe tratamento antiviral específico comprovado para a doença causada pelo vírus de Marburg. O manejo clínico baseia-se em suporte intensivo, com reposição de fluidos, correção de distúrbios hemodinâmicos e tratamento das complicações hemorrágicas, que podem evoluir para choque, falência múltipla dos órgãos e óbito. Embora pesquisas estejam em andamento envolvendo antivirais experimentais, anticorpos monoclonais e plataformas vacinais, nenhuma dessas abordagens alcançou uso clínico amplo até o momento, o que reforça a centralidade de medidas de prevenção, isolamento precoce e controle rigoroso da transmissão.
A região afetada apresenta circulação frequente de pessoas entre vilarejos e regiões fronteiriças, o que eleva a preocupação das autoridades sanitárias. Como resposta, foi ampliada a vigilância em postos de entrada e intensificada a troca de informações com países vizinhos. Experiências recentes demonstraram que a detecção tardia favorece a expansão das cadeias de transmissão. “Em doenças de alta letalidade, cada deslocamento sem monitoramento cria oportunidades para novos focos. A vigilância transfronteiriça precisa funcionar de forma contínua, e não apenas quando os casos já estão visíveis”, alerta a Dra. Lustosa.
Os próximos dias serão decisivos para determinar se o surto vai permanecer restrito ou deve alcançar áreas mais populosas. A efetividade do trabalho de campo, a agilidade do diagnóstico e a adesão da comunidade às recomendações sanitárias definem a trajetória do evento. As equipes seguem empenhadas em esclarecer a origem da infecção, mapear todas as exposições relevantes e interromper possíveis ligações que mantenham a circulação do vírus. Por isso, a colaboração entre múltiplos atores torna-se imperativa. A infectologista relembra a experiência que vivenciou em Angola, em 2005, quando atuaram lado a lado a OMS, o CDC, o exército angolano, a Cruz Vermelha e o Médicos Sem Fronteiras (MSF), além de um elemento considerado central naquele cenário, os agentes comunitários, que, mesmo sob risco pessoal e social, desempenharam papel decisivo no enfrentamento do surto.
Episódios mais recentes dos surtos de Marburg
Nos últimos anos, outros surtos de Marburg foram identificados no continente africano. Em 2023, a Guiné Equatorial confirmou 17 casos, com 12 óbitos, enquanto a Tanzânia notificou nove casos e seis mortes no mesmo ano. Em 2022, Gana registrou três casos confirmados, com dois óbitos. O surto ocorrido em Angola entre 2004 e 2005 permanece como o mais letal já documentado, com 252 casos confirmados e 227 mortes, reforçando o potencial devastador dessa virose em cenários de resposta limitada.
**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**