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Troca intensiva de plasma: possibilidade no tratamento de formas graves de febre amarela

Pesquisadores da USP adaptaram método europeu contra falência hepática para enfrentar complicações da febre amarela

13/04/2025

Nos casos relatados, os médicos realizaram duas sessões diárias, com duração de até duas horas cada, ao longo de cinco a sete dias, ajustadas conforme a resposta clínica

A febre amarela, causada por um vírus da família Flaviviridae e transmitida por mosquitos como o Aedes aegypti no ciclo urbano e espécies do gênero Haemagogus no ciclo silvestre, mantém-se endêmica em diversas regiões do Brasil. Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre 2016 e 2019, o País enfrentou surtos significativos, com mais de 2.200 casos confirmados e cerca de 750 óbitos, concentrados nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Enquanto a maioria dos infectados apresenta sintomas leves ou permanece assintomática, entre 15% e 20% dos casos evolui para a forma grave, caracterizada por insuficiência hepática, renal, hemorragias e falência múltipla de órgãos. Nessas situações, a mortalidade pode ultrapassar 50%, mesmo com suporte intensivo.

Os pacientes dos três grupos no estudo chegaram ao Hospital das Clínicas em estado crítico, com diagnóstico confirmado por testes laboratoriais que detectaram o RNA viral. Todos exibiam sinais de deterioração rápida: níveis elevados de transaminases indicavam dano hepático severo, enquanto a queda na função renal e a presença de sangramentos, associadas aos baixos níveis dos fatores de coagulação, apontavam para um prognóstico reservado. Diante da ausência de antivirais específicos e das limitações das terapias de suporte tradicionais, a equipe decidiu recorrer à troca intensiva de plasma, um procedimento conhecido em outras condições, como hepatites fulminantes e púrpura trombocitopênica trombótica.

A técnica consiste na retirada do plasma sanguíneo do paciente por meio de um equipamento de aférese, seguida pela substituição por plasma fresco de doadores. Nos casos relatados, os médicos realizaram duas sessões diárias, com duração de até duas horas cada, durante cinco a sete dias, ajustadas conforme a resposta clínica. O objetivo principal foi repor os fatores de coagulação além de remover o vírus da febre amarela, os mediadores inflamatórios, como citocinas, e as toxinas circulantes que amplificam a resposta imune desregulada, um fenômeno conhecido como “tempestade de citocinas” e frequentemente associado à gravidade da febre amarela.

Os resultados mostraram que 12 dos 14 pacientes sobreviveram após a intervenção. Nos sobreviventes, os marcadores laboratoriais, como bilirrubina e creatinina, apresentaram redução significativa, acompanhada de estabilização hemodinâmica. Dois pacientes, apesar de uma melhora inicial, sucumbiram a complicações tardias, incluindo infecções secundárias. A análise dos dados revelou que os níveis de citocinas pró-inflamatórias, como IL-6 e TNF-alfa, diminuíram após as sessões, sugerindo que a troca de plasma pode mitigar o processo inflamatório sistêmico.

A médica infectologista Yeh-Li Ho, da FM-USP e uma das autoras do estudo, detalhou o contexto da decisão: “A febre amarela grave provoca um intenso dano hepático e sistêmico, associado a uma cascata inflamatória que o organismo muitas vezes não consegue controlar. A troca intensiva de plasma busca repor os fatores de coagulação sem aumentar a volemia dos pacientes, evitando assim o estado hipervolêmico que pode levar ao edema agudo dos pulmões. Além disso, a estratégia também auxilia na restauração do equilíbrio imune oferecendo ao paciente uma janela para que o suporte intensivo consiga reverter o quadro e o fígado se regenerar”, explicou. Ela destacou que a escolha pelo procedimento ocorreu após esgotarem-se as alternativas convencionais, como ventilação mecânica e hemodiálise, que, embora essenciais, não abordam diretamente a inflamação sistêmica.

O artigo assinala que a troca de plasma não substitui as medidas de suporte, mas atua como um complemento. Nos casos descritos, os pacientes receberam, em paralelo, transfusões, antibióticos para infecções oportunistas e monitoramento em unidade de terapia intensiva. Os autores observaram, contudo, que a pequena amostra e a ausência de um grupo controle dificultam a atribuição direta dos desfechos à técnica. Outros fatores, como a variabilidade na resposta individual ao vírus e o momento de início do tratamento, também influenciaram os resultados.

O contexto da pesquisa reflete um período crítico para a saúde pública brasileira. Entre 2017 e 2018, o surto de febre amarela silvestre levou a uma corrida pela vacinação, com mais de 20 milhões de doses aplicadas em campanhas emergenciais. Apesar disso, a cobertura vacinal em áreas rurais e de mata permanece irregular, e o risco de novos surtos persiste, especialmente em regiões próximas a ecossistemas preservados. Para os pacientes que contraem a doença, o tratamento limita-se, na maioria dos casos, aos cuidados paliativos, o que torna iniciativas como a do estudo da FM-USP particularmente relevantes.

A Dra. Ho enfatiza a necessidade de estudos mais robustos para confirmar os achados. “Ensaios clínicos randomizados, com grupos maiores e metodologia padronizada, poderiam esclarecer o impacto real da troca de plasma e definir critérios para sua aplicação. A técnica exige infraestrutura específica, como máquinas de aférese e acesso a plasma de doadores, o que limita sua disponibilidade em hospitais de baixa e média complexidade ou em regiões remotas, onde a febre amarela muitas vezes se manifesta”, acrescentou.

O trabalho, publicado na revista Tropical Medicine and Infectious Disease, não apresenta a troca intensiva de plasma como uma solução definitiva, mas como uma possibilidade que merece atenção. Ainda assim, os casos relatados no Hospital das Clínicas abrem uma discussão sobre como estratégias inovadoras podem ser testadas em cenários de poucas opções terapêuticas.

“A experiência brasileira com a febre amarela reflete a complexidade de lidar com doenças tropicais em um País de dimensões continentais. Enquanto a prevenção, ancorada na vacinação e no controle de vetores, continua sendo a principal arma contra a infecção, nosso estudo sugere que, para os casos mais graves, intervenções como a troca de plasma podem representar um recurso adicional, com potencial para influenciar o manejo clínico da doença no futuro”, concluiu a médica infectologista.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**