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Um olhar preocupante sobre a realidade prisional

Estudo revela preocupante atraso no diagnóstico e tratamento da tuberculose em prisões de Mato Grosso do Sul

04/09/2023

Situação destaca a necessidade de medidas mais efetivas para identificar precocemente os casos de tuberculose dentro do sistema prisional e garantir o início rápido do tratamento

Um estudo científico publicado recentemente lança luz sobre a preocupante realidade do diagnóstico e tratamento da tuberculose em prisões do estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Os resultados da pesquisa intitulada “Delay in the diagnosis and treatment of tuberculosis in prisons in Mato Grosso do Sul, Brazil” destacam desafios significativos que impactam a saúde dos detentos e a saúde pública como um todo. No total, 362 casos de tuberculose pulmonar foram identificados na pesquisa.

De acordo com o responsável pelo estudo, o infectologista Dr. Julio Croda, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), os resultados mostraram um cenário alarmante de atraso no diagnóstico e início do tratamento da doença entre a população privada de liberdade (PPL). “Detectamos que há um tempo muito grande para consulta, diagnóstico laboratorial e notificação na vigilância. Do início dos sintomas até a primeira consulta foram 80 dias. Já o tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico laboratorial, mais 91 dias. E, finalmente, 94 dias para que as informações estivessem no sistema de notificação”, ressalta.

Para ele, o fator responsável pelo atraso no diagnóstico da tuberculose é a falta de acesso desse público ao sistema de saúde. “Há poucos profissionais, até 2014 não existia uma política de saúde prisional e o número de servidores que prestava atendimento era bastante restrito, a maioria era contratada pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública do Estado de Mato Grosso do Sul (SEJUSP/MS), não existia comunicação adequada e integração dos serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS). No que se refere à Atenção Primária e especializada, havia desinformação e muitos municípios não tinham conhecimento que eram responsáveis pelas políticas implementadas naqueles locais. Somente a partir de 2014, quando foi instituída a política de saúde no sistema prisional e teve início o repasse de recursos, houve incentivo para a contratação de pessoal”, detalha o pesquisador.

Demora no diagnóstico aumenta riscos de complicações da doença

De acordo com o Dr. Croda, o atraso entre o início dos sintomas e o diagnóstico da tuberculose no sistema prisional de Mato Grosso do Sul é de mais de três meses. Esse atraso, segundo ele, gera consequência direta na gravidade e na severidade da doença. O atraso no diagnóstico pode levar a complicações da tuberculose, tornando o tratamento mais difícil e prolongado. Além disso, mesmo com tratamento, o paciente pode ficar com sequelas importantes pelo resto da vida. O atraso também é responsável pelo aumento no número de óbitos. “Já do ponto de vista coletivo, a transmissão é especialmente preocupante, uma vez que ela se dá de forma respiratória, por gotículas e, portanto, ambientes superlotados, com condições precárias de higiene, pouca luz e falta de ventilação, facilitam a transmissão. Justamente nesses locais, o diagnóstico deveria ser mais precoce”, reforça.

Casos identificados tardiamente também representam risco de propagação da doença à comunidade em geral. A transmissão para além das grades demonstra que as prisões funcionam como amplificadores da tuberculose para o restante da população, pois ao retornarem à sociedade, contatos próximos e familiares ficam suscetíveis ao contágio. Dados do Ministério da Saúde, de 2019, demonstram que 84% das pessoas acometidas pela tuberculose em liberdade adquiriram a doença na prisão. Além disso, 83% descobriram a doença em até dois anos após sair do presídio.

Diante disso, o Dr. Julio Croda ressalta a importância de se enfrentar os desafios relacionados à tuberculose nas prisões. Medidas são necessárias para melhorar o diagnóstico precoce, garantir o acesso ao tratamento adequado, bem como implementar medidas preventivas eficazes. Para ele, o principal desafio é garantir o acesso ao atendimento, com enfermeiros e médicos suficientes para prestar assistência. A segunda etapa é o desafio do diagnóstico, tanto laboratorial quanto radiológico, já que em muitos estabelecimentos prisionais não há teste rápido molecular – menos de 50% da PPL tem acesso a esse exame –, muito importante para o diagnóstico microbiológico da doença. Além disso, menos de 30% dos estabelecimentos têm acesso à radiografia de tórax, outro exame fundamental para o diagnóstico. O início tardio do tratamento pode resultar em complicações mais graves e uma resposta menos eficaz. “Nossos achados enfatizam a necessidade de ter equipes de saúde estruturadas e garantir acesso ao diagnóstico nos estabelecimentos penais, a fim de oferecer tratamento adequado e diminuir a transmissão”, frisa.

Os dados acendem o alerta de que o atraso no diagnóstico muito provavelmente esteja ocorrendo em outros estados, inclusive aqueles com menos acesso à saúde, equipes de saúde prisional menores e que não possuem teste rápido molecular e raio x. O enfrentamento da tuberculose nas prisões apresenta desafios complexos, como superlotação, infraestrutura precária e dificuldade de acesso a recursos de saúde. Contudo, o pesquisador afirma que o cenário da tuberculose no Mato Grosso do Sul tem melhorado discretamente e atribui às ações do seu grupo de pesquisa, que tem trabalhado para prover melhor acesso ao diagnóstico e tratamento às pessoas que estão nos três maiores estabelecimentos prisionais do estado.

Infelizmente essa não é a realidade em outros estados brasileiros e países da América do Sul e Central. O que se observa é o crescimento da taxa de encarceramento e, portanto, maior risco de transmissão da doença. “A incidência da TB na PPL tem aumentado ao longo dos anos e há uma relação direta com o aumento da taxa de encarceramento. É preciso entender que apenas ações biomédicas não são suficientes para diminuir a transmissão; também são necessárias ações de desencarceramento e políticas mais específicas na área da justiça. Apenas com a diminuição da superlotação teremos efetivamente a diminuição da incidência da TB nesses locais”, conclui o Dr. Croda, que também é professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

O estudo analisou o cenário da tuberculose dentro das prisões de Mato Grosso do Sul, onde os pesquisadores tinham acesso a todos os bancos de dados da vigilância do Estado, tanto o Sistema Nacional de Atendimento Médico (Sinam) quanto o Sistema Gerenciador de Ambiente Laboratorial (GAL). Além disso, obtiveram acesso aos prontuários de mais de 300 participantes da pesquisa, todos acometidos pela TB no período, o que permitiu a revisão dos prontuários e identificar quando os sintomas iniciaram. “Esse acesso foi fundamental, assim como a parceria entre a Secretaria Estadual de Saúde (SES/MS) e a Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário de Mato Grosso do Sul (AGEPEN/MS), ao permitir e autorizar a realização do projeto, que se deu por meio da comparação do Sistema de Notificação Eletrônica (SNE), tanto da vigilância como laboratorial, bem como da revisão dos prontuários nos serviços de saúde prisional”, finaliza.

Epidemia silenciosa dentro das prisões

Pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revelou que a taxa de detecção de tuberculose nas prisões chega a ser 30 vezes maior do que a observada na população em liberdade. Ainda de acordo com o documento “Letalidade prisional: uma questão de justiça e saúde pública” , dos falecimentos dentro das cadeias que foram alvo da pesquisa, 62% tiveram como causa insuficiência cardíaca, sepse ou infecção generalizada, pneumonia e tuberculose.

Uma maior atenção e investimento em políticas de saúde voltadas para o ambiente carcerário podem contribuir significativamente para o controle da tuberculose e de outras doenças infecciosas dentro das prisões. Além disso, a capacitação de profissionais de saúde que atuam nessas instituições é fundamental para melhorar o gerenciamento dos casos e garantir um ambiente mais saudável. Medidas como a implementação de programas de educação e conscientização sobre a doença entre os detentos e funcionários são essenciais para enfrentar esse desafio. A ciência desempenha papel crucial no desenvolvimento de estratégias efetivas para lidar com a tuberculose e outras questões de saúde que afetam pessoas mais vulneráveis, como a população privada de liberdade. Compreender o cenário da doença nesses ambientes é de extrema importância.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**