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Um problema invisível: arenavírus ressurge no Brasil depois de 20 anos

Como poucos laboratórios têm capacidade de fazer os testes que levaram à identificação do caso em São Paulo, podem existir mais casos de arenavírus no País

07/02/2020
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Brasil precisa estar vigilante e preparado para a emergência. Somos o país com o maior número de arenavírus, dez espécie, entre eles estão o Sabiá, o Xapuri e o Aporé

O Ministério da Saúde confirmou no dia 20 de janeiro a morte de um homem por febre hemorrágica brasileira, causada por um arenavírus, o vírus Sabiá. A vítima, morador de Sorocaba passou férias em Eldorado, no Vale do Ribeira, no Sul do estado de São Paulo. Entre o início dos sintomas, em 30 de dezembro, e o óbito, em 11 de janeiro, o paciente passou por três hospitais diferentes, sendo o último o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFM USP). Não houve histórico de viagem internacional e ainda não está confirmada o local de origem da contaminação. O Ministério da Saúde classificou o caso como um evento de saúde pública grave.

O médico da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do laboratório de técnicas especiais do Einstein, chefe da equipe que descobriu o vírus, Dr. João Renato Rebello Pinho, explica que o diagnóstico foi realizado pela metodologia internacional viroma/metagenômica, utilizada pelo Hospital Albert Einstein a partir de um paciente internado na UTI da Enfermaria de Moléstias Infecciosas do Hospital das Clínicas da FMUSP. Este paciente fazia parte do projeto PROADI, com o Ministério da Saúde denominado Estudos das características clínicas e epidemiológicas das hepatities agudas no Brasil. Após a pesquisa dos agentes convencionais relacionados com hepatites agudas por métodos sorológicos e moleculares (febre amarela, hepatites virais, leptospirose, dengue, zika, chikungunya, entre outras doenças), o caso permanecia sem diagnóstico. “Resolveu-se então lançar mão deste novo exame padronizado no laboratório do Einstein. A técnica consiste em fazer a extração do RNA presente no soro do sangue do paciente e em seguida os RNAs humanos são retirados, ficando apenas os de vírus. Depois o RNA é transformado em DNA, amplificado e então é feito o sequenciamento. Para analisar a sequência e determinar o resultado foi utilizada bioinformática. A descoberta, uma espécie do gênero Mammarenavirus, da família Arenaviridae, mais conhecida como arenavírus, foi uma surpresa”, destaca o patologista. O resultado foi confirmado pelo Laboratório de Investigação Médica do Instituto de Medicina Tropical do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e Instituto Adolfo Lutz. “O vírus identificado tem 88% de similaridade de sequência ao vírus Sabiá, mas não é exatamente igual. É um vírus novo. Acreditamos que possa ser uma variante do Sabiá, mas isso ainda está em estudo”, ressalta o Dr. Rebello.

O risco de contaminação por esse vírus em laboratório é tão alto que ao identificá-lo, os pesquisadores não eram mais autorizados a trabalhar com amostras do paciente. Trabalhos com esse tipo de vírus só podem ser realizados em laboratórios com nível máximo de segurança e não há nenhum no Brasil. O vírus Sabiá está na mesma classe de risco do temido vírus africano ebola. Nessa categoria, a máxima é de número 4, estão os causadores de febres hemorrágicas e o coronavírus SARS. Os vírus 4 são aqueles que têm alta letalidade, são transmitidos pelo ar e podem passar de uma pessoa para outra. No caso dos arenavírus essa forma é rara. Amostras serão encaminhadas para o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, (CDC, na sigla em inglês), um dos principais centros epidemiológicos do mundo e também um dos poucos a dispor de laboratório com nível de segurança 4, onde ficam armazenados amostras dos vírus potencialmente letais.

A chefe do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Dra. Elba Lemos, observa que como poucos laboratórios têm capacidade de fazer os testes que levaram à identificação do caso em São Paulo, a possibilidade de outros casos de arenavirose no Brasil, que podem estar sendo confundidos com outras doenças, precisa ser considerada. “Assim, como o quadro clínico das febres hemorrágicas é semelhante ao das outras arboviroses, especialmente febre amarela e dengue, esses casos podem passar despercebidos, ainda mais em um país como o Brasil, de epidemias como dengue, chikungunya, febre amarela, onde nem sempre é possível o diagnóstico laboratorial confirmatório”, enfatiza. Como os arenavírus causadores de doença humana se encontram em roedores silvestres mantidos na natureza, é preciso que os profissionais da saúde sejam alertados quanto ao risco desta zoonose em pacientes com exposição laboral ou turística a roedores ou seus excretos. Por isso, segundo a Dra. Lemos, a vigilância e o diagnóstico diferencial são fundamentais. “Temos vírus e roedores silvestres em abundância e pessoas nas áreas onde eles existem. A maioria das pessoas nunca ouviu falar de arenavírus, mas eles estão aqui, causadores de doença de elevada letalidade que, embora estejam associados a casos isolados ou a pequenos surtos, representam um grande problema de saúde pública”, reconhece.

Os arenavírus são vírus transmitidos pelas fezes e excreções de diferentes espécies de roedores silvestres, que vivem em matas, e áreas rurais e periurbanas. Esses roedores infestam depósitos de cereais e lavouras de grãos, e com isso pode ocorrer infecção de humanos que trabalham nessas áreas. A doença difere da leptospirose, transmitida ao homem pela urina de roedores, principalmente por ocasião das enchentes, e causada pela bactéria Leptospira. De acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) e professor da Universidade do Estado do Pará, Dr. Pedro Vasconcelos, apesar da pouca ocorrência, a febre hemorrágica chama a atenção devido à gravidade. O vírus é adaptado ao sistema imunológico do roedor sem causar doença, mas costuma causar doença com extrema gravidade e ser fatal em muitos casos, quando infecta humanos.

O Dr. Vasconcelos é categórico ao afirmar que não há risco de epidemia de febre do Sabiá, mas novos casos podem aparecer inclusive infecções subclínicas que comumente não cursam com gravidade. “A doença é pouco prevalente em parte pelo desconhecimento no diagnóstico que é feito apenas por laboratórios especializados. É importante assinalar que, além disso, os arenavírus que causam doença em humanos são classificados como vírus com nível de biossegurança 4 (NB4) mesmo nível do Ebola e Marburg e outros vírus com elevado percentual de morbi-mortalidade. Assim, a limitação na investigação e estudos voltados para a detecção desses vírus, faz supor que esses vírus sejam mais raros do que na verdade devem ser”, acrescenta o virologista.

Ainda de acordo com o presidente da SBMT, a ausência de casos pode se dever a vários fatores incluindo, a raridade da doença, a ausência de contato humano com roedores infectados pelo vírus, dificuldade no reconhecimento dos casos clínicos suspeitos, e a dificuldade em realizar o diagnóstico laboratorial específico. Entretanto, como o Brasil faz fronteira com três países onde febres hemorrágicas causadas por arenavírus são endêmicas (Argentina, Bolívia e Venezuela), e existem outros arenavírus (sem causar doença em humanos) no Brasil, há possibilidade de ocorrência de casos esporádicos, bem como uma eventual (mas improvável) introdução de arenavírus exóticos em nosso território, atesta o Dr. Vasconcelos. Arenavírus geneticamente relacionado ao arenavírus Sabiá causou surto na Bolívia em 2019. Três pessoas morreram, e o vírus responsável pelos quadros foi o arenavírus Chapare. Finalmente, é importante assinalar que os arenavírus não são relacionados com o coronavírus que recentemente tem causado quadros graves de pneumonia e mortes em território chinês.

Febre hemorrágica brasileira

A febre hemorrágica brasileira foi identificada pela primeira vez no estado de São Paulo, no início da década de 1990. A vítima relatou ter viajado para o município de Cotia, no interior do estado, dez dias antes ao início dos sintomas. Após o óbito, foi identificado que se tratava de um novo vírus da família Arenaviridae, que foi denominado de vírus Sabiá, devido o nome do bairro onde a paciente provavelmente se infectou. No total foram relatados quatro casos em humanos, sendo três casos adquiridos em ambiente silvestre no estado de São Paulo e um por infecção em ambiente laboratorial, no Pará, além de um caso laboratorial nos EUA.

A doença é considerada extremamente rara e de alta letalidade. Estima-se que a taxa de letalidade seja de 20% a 60%. Não existe vacina nem tratamento específico, o qual é realizado de acordo com o quadro clínico apresentado pelo paciente. A exposição humana aos arenavírus ocorre principalmente a partir da inalação de aerossóis contendo partículas virais procedentes da urina, fezes ou saliva de roedores silvestres infectados, ou de mordeduras. A Dra. Lemos lembra que o Brasil é o país com o maior número de arenavírus, dez espécies, entre elas estão o mammarenavírus Sabiá, identificado pela primeira vez em 1990 em um caso fatal e os vírus Xapuri e Aporé, recentemente reconhecidos como espécies pelo Comitê Internacional de Taxonomia Viral. Esses dois últimos foram descobertos no ano passado pela equipe da Dra. Elba Lemos e receberam os nomes em alusão às localidades no Acre e no Mato Grosso do Sul onde foram identificados a partir da amostra de sangue de roedores silvestres. “A tese de doutorado intitulada ARENAVIRUS NO BRASIL: ECO-EPIDEMIOLOGIA E OS ASPECTOS DE SUA OCORRÊNCIA NO PROCESSO DE EXPANSÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR de autoria de Jorlan Fernandes, orientado por mim, foi premiada como a melhor tese CAPES Medicina II de 2018. Com esta tese identificamos cinco arenavírus, três novos, sendo dois deles aceitos como novas espécies: Aporé – Mato Grosso do Sul – (em roedor, potencial causador de doença humana – na mesma clade do Sabiá) e Xapuri – Acre (em roedor, potencial causador de doença humana – na mesma clade do Sabiá), além do Amapari e Cupixi – no Amapá, Flexal – Pará, Pinhal – São Paulo, Oliveros – Mato Grosso do Sul, Latino – Mato Grosso do Sul, Rio Preto – (ainda em fase de caracterização final) em roedor capturado em MG, GO e MS. Os vírus Latino e Oliveros nunca haviam sido descritos no Brasil. Assim, com os resultados desta tese, o Brasil passou de cinco para dez arenavírus em seu território”, complementa a Dra. Lemos.

A prevenção pode ser feita ao evitar o contato com roedores silvestres e usar um Equipamento de Proteção Individual (EPI) ao enfrentar exposição de risco. Detergentes, desinfetantes comuns (com hipoclorito de sódio, glutaraldeído, álcool etílico a 70% e lisofórmio na composição) e luz ultravioleta são capazes de inativar o vírus.