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Vacina contra esquistossomose desenvolvida no Brasil é esperança contra a doença

No primeiro momento a vacina tem como foco a redução da reinfecção da esquistossomose

14/04/2022
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A esquistossomose, segunda doença parasitária mais devastadora socioeconomicamente do mundo, contribui para a manutenção do quadro de desigualdade e exclusão social

Presente nos países em que há maior número de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza e vulnerabilidade social, que convivem com esgotos a céu aberto e contato diário com ambientes sem higiene, como os países do continente africano, a esquistossomose assola cidades e mantém milhares de pessoas na invisibilidade. É uma doença da pobreza que o mundo não enxerga suas dores. Considerada uma das 17 doenças tropicais negligenciadas (DTN) no mundo, ela ainda é considerada um problema de saúde pública no Brasil. A esquistossomose é uma infecção parasitária com evolução da forma assintomática até as formas clínicas extremamente graves, que podem levar a internações e óbitos. Apesar de afetar anualmente mais de 200 milhões de pessoas no mundo, o único medicamento usado no tratamento foi descoberto há mais de 40 anos e atualmente, não há vacina disponível para prevenir a doença.

Mas um imunizante desenvolvido totalmente no Brasil, conhecido como vacina Sm14, simboliza a esperança para o controle da doença. A expectativa é que esteja totalmente disponível já para os países africanos e para o Brasil, entre 2 a 3 anos. Para saber mais sobre o assunto, a Assessoria de Comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou a Dra. Miriam Tendler, do Laboratório de Esquistossomose Experimental do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e coordenadora da pesquisa. A Dra. Tendler já teve seu trabalho reconhecido e recebeu homenagem em 2017 por seus estudos em prol de vacina.

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: A senhora poderia nos falar sobre a vacina brasileira Sm14 para esquistossomose?

Dra. Miriam Tendler: Esta é a primeira vez que uma vacina para esquistossomose está sendo desenvolvida e chega à fase de conclusão final.

Mas voltando um pouco no tempo, o projeto da Sm14, desde a fase inicial tudo foi muito direcionado, ou seja, não teve praticamente nada que acontecesse por acaso ou que tivesse a conotação fortuita de descoberta, que muitos imaginam que faca parte do desenvolvimento das vacinas em suas várias etapas de desenvolvimento, a começar pela fase inicial que é de identificação do princípio ativo.

Podemos dizer que o grande diferencial, o pulo do gato, da Sm14 foi a identificação de um componente, que à época não sabíamos se eram um ou mais, os quais foram obtidos dos vermes (parasitas) adultos vivos, em solução. Fomos buscar esses componentes.

Explicando brevemente, o esquistossoma vive na circulação sanguínea venosa, um ambiente muito adverso, onde estão as células de defesa, as células imunológicas, que posteriormente secretam anticorpos, quer dizer, o sangue não é o melhor lugar para um parasita viver. Mas é assim que acontece, e embora seja em um segmento específico da circulação venosa profunda, no caso do Schistosoma mansoni, o sistema venoso, porta hepático mesentérico (entre o fígado e intestino), os ovos são drenados e eliminados para o meio ambiente através das fezes das pessoas infectadas. Entretanto, os vermes adultos, apesar de viverem muito tempo no hospedeiro, não se multiplicam nele, o que é uma outra característica importante. A carga parasitária de um hospedeiro humano corresponde aos vermes, com alguns mecanismos de modulação, que ele adquire do meio ambiente.

Essas duas características, o fato dos vermes viverem muito tempo em uma pessoa e viverem no sangue, são características bem específicas e bem diferentes de outros parasitas. Então a ideia era buscar nos antígenos que são secretados e excretados pelos vermes vivos no sangue, os componentes que induzissem uma resposta imune protetora. E foi isso que fizemos no início da década de 80. Identificamos um conjunto de antígenos que não estavam caracterizados molecularmente, mas que estavam caracterizados do ponto de vista da sua atividade biológica. Identificamos, com muita robustez, que essa mistura de componentes (obtida dos vermes vivos) em solução salina, em temperatura ambiente, continha componentes que induziam uma resposta protetora nos animais (camundongos não singênicos, ou seja, de raça não pura) utilizados desde o começo. Aqui eu destaco alguns pontos importantes. O primeiro, como buscamos esses antígenos protetores, aonde buscamos e como testamos. A ideia era criar um modelo animal que nos permitisse reproduzir, de alguma forma, uma população humana pensando sempre em um dia chegar na vacina humana. O projeto Sm14 foi marcado desde o início por um direcionamento muito claro na direção de realmente desenvolver uma vacina humana para esquistossomose.

O modelo animal adotado que mais se assemelhava a uma população humana, que permitiu desenvolver um modelo para avaliar a proteção baseado na dinâmica da carga parasitária em uma população de camundongos não singênicos nos possibilitou ver a proteção com uma lente mais poderosa que não a forma clássica de se olhar para médias de vermes obtidas de animais vacinados X não vacinados, mas olhar para a distribuição da frequência de carga parasitária em populações de animais não singênicos, vacinados com os antígenos que tínhamos e desafiados com as larvas infectantes, as cercárias, e comparar a resposta em termos de carga parasitária dos animais vacinados e dos não vacinados frente a mesma infecção.

Quando desenvolvemos essa maneira alternativa e mais poderosa de analisar a proteção, começamos a ter um tipo de informação mais apurada. Não eram só valores médios, mas a distribuição da frequência de cargas parasitárias diferentes em população vacinada e não vacinada, e isso nos permitiu, uma caracterização muito forte do modelo que estávamos usando, ou seja, os resultados eram reprodutíveis experimento após experimento. Além disso, como o camundongo suíço sempre esteve disponível e barato, por ser não singênicos, a homogeneidade de resultados de vários experimentos é uma indicação muito forte, considerando-se que entre os indivíduos de uma população não singênica, esperaríamos ter alguma variação individual, coisa que não ocorreu. Para fazer o estudo populacional houve homogeneidade muito grande de perfis. Vale lembrar que a população vacinada tem um determinado perfil de distribuição de carga parasitária e a população não vacinada, de controle, tem um outro perfil. O que uma vacina contra doenças infecciosas faz, é exatamente alterar, a dinâmica de transmissão da doença. Ou seja, ela é capaz de causar impacto no meio ambiente, através da imunização e resposta  das pessoas. A população é imunizada e responde, mas o impacto volta do ambiente para as pessoas. Por isso a cobertura vacinal é tão importante: a medida que se tem um contingente muito grande de pessoas vacinadas, começamos a ver o impacto na dinâmica de transmissão da doença.

Quando desenvolvemos esse modelo, criamos um modelo populacional em camundongos, que foi e ainda é muito útil, no sentido de permitir que se evidencie o impacto da vacinação na dinâmica de transmissão, e na dinâmica da doença, em uma população não singênica de animais. Isso foi um ponto fundamental nessa fase. O outro foi a origem dos antígenos. Passamos muitos anos no laboratório, estudando variáveis de um esquema de vacinação como via de imunização, o número de doses, dosagem das doses, a maneira de olhar a proteção, a escolha do adjuvante, a seleção dos antígenos, e em todas essas etapas, o objetivo era um só: toda a parametria deveria ser adequada para um dia ser útil para a vacina humana quando chegássemos no ponto que estamos hoje, de ter uma vacina quase acabada. Esse pensamento esteve presente o tempo inteiro.

Alem do Schistosoma mansoni, existem outros nos quais estamos testando a vacina. A África, por exemplo, é uma região endêmica, onde é mais comum e apresenta maior impacto em todo o continente, o Schistosoma haematobium, que em vez de atingir a forma adulta e viver no sistema porta hepático e drenar ovos para o intestino, vive no plexo venoso vesical e elimina os ovos para dentro da bexiga. Ele induz outro tipo de patologia, e do ponto de vista de morbidade, de causar doença e impacto, é considerado mais agressivo na África do que o S. mansoni.

SBMT: Com a pandemia, a tecnologia de vacinas de RNA abriram novas janelas no campo da vacinologia dos processos de produção de vacinas. Qual a tecnologia utilizada na Sm14? De que forma as vacinas que utilizam RNA mensageiro podem contribuir com a primeira vacina para a esquistossomose?

Dra. Miriam Tendler: A Sm14 é um produto de engenharia genética, é uma vacina recombinante, desenvolvida seguindo os conceitos de uma vacina bivalente, potencialmente no futuro ela será multivalente, o que fica evidenciado a partir do momento em que se teve acesso à estrutura do DNA do clone da proteína Sm14. A vacina pertence a uma família de proteínas que tem a capacidade de ligar gorduras a ou ácidos graxos e os parasitas causadores da esquistossomose não têm a capacidade de sintetizar lipídeos/ gorduras que são a principal fonte de energia do metabolismo dos helmintos. Então, eles precisam pegar esses componentes do hospedeiro Sm14 faz essa função.

As vacinas de RNA são até agora contra vírus com características próprias. Acredito que a tecnologia do RNA mensageiro vai favorecer, em princípio, as doenças virais e não vai ter participação na primeira geração de vacinas antiparasitárias como a nossa, baseada na Sm14 ou de outros antígenos recombinantes. Acredito que ainda falta muito na tecnologia do RNA mensageiro para usarmos, e se utilizarmos proximamente provavelmente será em uma aplicação veterinária e não humana, que já está praticamente pronta e não tem muita razão para mexermos nisso agora. Para se ter uma ideia, já não fizemos isso antes, por exemplo, temos uma família de patentes que foi produzida para um conjunto de peptídeos que são fragmentos do Sm14, os quais foram identificados como epitopos (regiões que efetivamente se ligam nas células do parasito e que induzem a resposta imunológica), fundamentais na molécula. Resolvemos não usar esses peptídeos como vacina. A aplicação potencial que nos parece mais importante dos peptídeos é no diagnóstico de imunização. Estamos avaliando a possibilidade de desenvolver um marcador de proteção com os peptídeos.

Não acredito que a tecnologia do mRNA possa contribuir agora, no nosso caso, porque é uma tecnologia fechada. Ela não é uma ferramenta de pesquisa propriamente e sim um processo de produção que na verdade já existe há muito tempo. Mas havia muito preconceito em usar a vacina de mRNA, assim como quando as vacinas recombinantes foram introduzidas como vacinas humanas, a primeira delas foi a Hepatite B. À época houve muita resistência porque era fruto da engenharia genética. Hoje a gente tem um movimento antivacina forte, mais forte do que era no passado, e esse movimento muito orquestrado. Um exercício que indica a origem deste movimento é fazer a pergunta: a quem interessa manter a doença? Nesse caso, você tem uma doença como esquistossomose, que é abordada com drogas químicas, com remédios e fica relativamente fácil responder. Isso atrasou e gerou prejuízos enormes para população humana principalmente, provocando um número grande de mortes por doenças e imunopreveníveis, isto é recebíveis por vacina.

Acho que nesse momento ela não é necessária e nem aplicável ainda. Ela entra no momento em que você precisa baratear, aumentar o ritmo de produção etc  e em uma outra geração de vacinas, acredito que em algum momento ela vai chegar nas doenças parasitárias, sim, mas nesse momento não contribui muito.

SBMT: Tradicionalmente a produção de vacinas segue uma lógica vertical onde o Hemisfério Norte ‘fornece’ conhecimento para o Hemisfério Sul. O Sm14 inaugura uma premissa horizontal, onde o Hemisfério Sul desenvolve uma tecnologia para o próprio Hemisfério Sul. Em sua opinião, o que isso representa para os países pobres?

Dra. Miriam Tendler: A total diferença e o nosso grande orgulho é de desenvolver essa vacina e trabalhar para inverter este paradigma. Por exemplo, o grande parque tecnológico atual, está no hemisfério norte, e ele é mantido e fortalecido continuamente não por acaso. Nós somos meros receptores. O lobby de manutenção do parque tecnológico no hemisfério norte, está em todo lugar, inclusive em parte dentro da OMS. Não é fácil vencer essa barreira de que a tecnologia vem do hemisfério norte e desenvolver aqui uma vacina na fronteira da tecnologia disponível. Isso abre um campo enorme para o desenvolvimento de outras vacinas antiparasitárias . Também demonstra e comprova a nossa capacidade de atuar na área das doenças endêmicas e parasitárias, não só como área endêmica, porque isso a gente sempre participa, quando o povo lá de cima desenvolve uma tecnologia, seja a droga, teste diagnóstico ou o que for, eles querem testar aqui e na África, já que as doenças não são endêmicas no hemisfério norte. Somos sempre procurados como parceiro endêmico e agora seremos o líder tecnológico.

Nosso projeto Sm14 agora está a quatro mãos com uma instituição na África do Sul detentora da tecnologia do adjuvante que usamos, além de estarmos testando, no Senegal. O adjuvante incluído na vacina Sm14, é uma tecnologia que foi desenvolvida em uma empresa Americana e licenciada para a empresa africana, com a qual estamos fechando um acordo para que eles sejam os supridores, comercialmente falando do insumo que entra na vacina. É uma forte cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento de uma vacina que interessa aos países endêmicos do hemisfério sul, países pobres em que as doenças afetam desproporcionalmente populações menos favorecidas.

A esquistossomose, ao contrário do que alguns falam, de forma inapropriada,  causa espoliação, anemia crônica nas crianças, diminuição da capacidade de trabalho dos adultos, jovens. A doença tem um impacto na qualidade de vida muito grande que compromete a saúde, bem-estar, qualidade de vida, força de trabalho, capacidade cognitiva de aprendizado da população jovem dos países pobres e endêmicos que precisam dessas populações jovens acima de tudo para alcançarem o seu desenvolvimento.

A esquistossomose tem um impacto enorme espoliativo nessas populações e é um orgulho muito grande para nós entregar aquilo que nos propusemos a fazer a vida inteira, em um tempo muito curto, de maneira muito robusta. Isso é um ganho enorme porque vai ser é traduzido na forma de produto, uma vacina humanitária, que é uma plataforma criada pelas Nações Unidas no sentido de privilegiar o acesso de populações pobres a determinados desenvolvimentos e tecnologias, principalmente na área da saúde. São regras e parâmetros que limitam os ganhos e a , lucratividade, com um produto que é direcionado aos países endêmicos pobres. Ou seja, o fato de estarmos desenvolvendo como vacina humanitária segue regras, tem premissas, e vai garantir que a vacina chegue às populações pobres. As populações em si, provavelmente vão ter isso na rede pública, mas cabe aos países, a aquisição, e eles terão acesso por um custo extremamente baixo, fruto de todo o processo de produção da Sm14, que conseguimos desenvolver e aprimorar  nos últimos dois anos durante a fase aguda da pandemia quando demos um passo final no desenvolvimento de um processo de produção que permitiu a obtenção de uma vacina altamente estável, de baixíssimo custo e alto rendimento. Essas são características muito importantes e que vão favorecer os países endêmicos nessa linha de acessibilidade dos países pobres a uma tecnologia de ponta.

SBMT: Por que é tão difícil o desenvolvimento de uma vacina contra a esquistossomose?

Dra. Miriam Tendler: Não é tão difícil. A Sm 14 já podia estar em uso há muito tempo. O fato de vir do Brasil torna difícil, sim, pelos entraves burocráticos, políticos, administrativos, culturais e todas as dificuldades que a gente teve ao longo dos anos. Do ponto de vista técnico, científico, não é tão difícil, mas é parte do repertório que tenta retardar o desenvolvimento de vacinas antiparasitárias. E este repertório de argumentos, também não é inocente porque interessa muito aos  setores que produzem medicamentos e outros produtos químicos para todas as doenças parasitárias e cujo mercado são os países endêmicos localizados no hemisfério sul.

Tecnicamente não é tão difícil. O que é complexa, é a política de saúde. Por exemplo, para conseguirmos finalizar a vacina agora, estamos há alguns anos trabalhando alinhados, com reuniões contínuas com a OMS. Nós temos um escritório de representação diplomática do Brasil junto à ONU em Genebra, onde fica também a OMS, e o grupo de diplomatas que lá trabalha, é formado por pessoas muitíssimo bem preparadas e que começaram a se alinhar há alguns anos com o projeto do Sm14, em função dele integrar um programa  lançado pela OMS e que selecionou projetos prioritários chamados de demonstrativos, dentre eles o da Sm14, por apresentarem características de viabilidade e acessibilidade aos países pobres.

Quer dizer, são plataformas de desenvolvimento de produtos ou processos, que demonstram serem viáveis e acessíveis aos países pobres. Uma das grandes crueldades contemporâneas, é a ciência avançar e desenvolver produtos, que não chegam nem perto de serem acessíveis aos países pobres.  Essa é uma das grandes preocupações da OMS e de outras instituições humanitárias no sentido de alcançar a equidade e nivelar um pouco mais o padrão de saúde das populações ricas em relação às populações pobres. Esse movimento de advocacy, tem sido fundamental para preparar o caminho para a certificação da OMS para o uso e a introdução da vacina nos países endêmicos. Estamos criando mecanismos para isso, não só em Genebra, mas em outros segmentos, porque temos clareza de que precisamos vencer uma força que não é totalmente humanitária nem alinhada com os interesses humanitários, mas que é uma força que existe e que precisa ser transformada em força produtiva para os países pobres e não prejudicial, deletéria, como ela é hoje. Em síntese, uma das dificuldades é a ausência de politicas de saude criadas e adequadas aos países endêmicos. Há necessidade de mudar as políticas de saúde, de modo a revertê-las efetivamente para atender aos países de baixa e media renda e neutralizar as políticas de saúde que atendem à interesses espúrios. Mas, tecnicamente, eu não acho que é tão difícil. A dificuldade é política, e quando falo política não é de política partidária, mas sim política de saúde.

O que estamos produzindo, em um primeiro momento, é uma vacina contra a reinfecção, não contra a infecção, para então quando se começar a vacinar as crianças, logo depois do nascimento, possamos falar em prevenir a infecção. Na primeira abordagem, na introdução da vacina na população endêmica, a proteção tem que ser para a reinfecção, porque o que acontece na área endêmica é que as pessoas são tratadas continuamente, em tratamentos em massa, que não levam a lugar nenhum. Quer dizer, a carga parasitária diminui temporariamente, mas as pessoas se reinfectam e tudo volta aos níveis anteriores logo após um a dois meses, no máximo. Ficar tomando remédio a vida inteira pode ser lucrativo, mas não o é para a população. Então, no primeiro momento, nos primeiros anos, estamos focando a redução da reinfecção, porque é assim que tem que ser.

SBMT: Já foram desenvolvidos testes clínicos com o imunizante desenvolvido pela Fiocruz?

Dra. Miriam Tendler: A primeira fase de teste clínico foi realizada após todo o processo regulatório, que incluiu a análise pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana. Esse Comitê avaliou duas vezes (antes do teste em homens e antes do teste em mulheres). Obtivemos a autorização sem questionamentos do Comitê de Ética e depois da Anvisa, que nos deu uma licença fracionada. Logo quando entramos com a requisição na Anvisa em 2008/2009, eles levaram um ano e meio discutindo, solicitando mais informação, analisando documentos, até que deram a licença e aprovaram os testes clínicos Fase I em homens e pediram que se fizesse um teste toxicológico antifecundidade (tipo de teste feito em fêmeas animais grávidas, normalmente em coelhas), para somente depois liberar a licença para fazer o teste clínico em mulheres. Assim, fizemos dois testes clínicos Fase I independentes, um em homens primeiro e outro em mulheres. Fase I é uma coisa interessante, porque têm regulamentação própria, já que é a primeira vez que um produto experimental sai da bancada e entra em testes clínicos humanos.

Os resultados do teste fase I a em homens foram ótimos com clara demonstração de segurança e imunogenicidade e já foram publicados na revista Vaccine após o resultado favorável do teste toxicológico em coelhas grávidas utilizando protocolo que nos foi dado pela própria Anvisa recebemo a licença para fazer o teste Fase I b em mulheres. Após os testes muito bem-sucedidos dos testes fase I, que é realizada em área indene, sem a doença, precisamos fazer os testes em área endêmica para a esquistossomose, com pessoas previamente doentes, infectadas, submetidos a tratamento, então é um somatório de variáveis.

SBMT: Qual a expectativa para que a vacina esteja disponível para o Brasil e o mundo?

Dra. Miriam Tendler: Agora estamos trabalhando na Fase II em área endêmica, em uma região do Delta do Rio Senegal chamado São Luís, que é uma região endêmica para o Schistosoma haematobium e Schistosoma mansoni. A Fase II já foi realizada em adultos e crianças escolares, em um total de aproximadamente 250 pessoas. A expectativa é que até o final do ano esteja finalizada a última etapa desta rodada, a qual esperava fosse a última em nível de comunidades restritas, para passar à larga escala. Fizemos um road map e apresentamos para a OMS e estamos alinhados com eles. Mas existem forças que tentam retardar o máximo possível a entrada de uma vacina no mercado. Agora estamos com uma última exigência que é fazer um teste clínico com 3 mil pessoas e com isso conseguiremos a pre qualificação da vacina junto à OMS e o passo seguinte é a aprovacão dos órgãos que fornecem vacinas.

A expectativa é que a vacina esteja totalmente disponível já para os países africanos e para o Brasil, entre 2 a 3 anos, no máximo. Esse ano terminamos a última rodada de testes, que estão sendo feitos a partir de um banco de células, sementes, que foi produzida em GMP, nos Estados Unidos, que é um banco de células master, de células-mãe, para a produção dos lotes vacinais daqui para o futuro, em larga escala. Com isso, devemos alcançar o final dessa demonstração de segurança e imunogenicidade para poder entrar em larga escala nos países africanos e no Brasil. Essa é a primeira vez neste teste em vamos usar uma amostra desse banco. Estamos fazendo uma pequena variação no esquema vacinal, aonde a terceira dose vai ser dada com intervalo de tempo maior do que no protocolo anterior.

SBMT: A vacina Sm14 está sendo desenvolvida para induzir imunidade de quanto tempo?

Dra. Miriam Tendler: Em animais havíamos feito em camundongos e a proteção medida por títulos de anticorpos dura pelo tempo de vida de camundongos, como eles têm um tempo de vida muito curto relativamente ao homem, isso é um fator relativo, mas considerando o modelo em si, é pelo tempo de vida e os títulos não caem. No coelho, que tem um tempo de vida maior, testamos até 19 meses depois da vacinação. Os títulos de anticorpos não caem. Mas mais importante do que tudo, e confirmando esses dados em animais, fizemos na Fase II A, em adultos, como os títulos permaneceram altos até seis meses de conclusão do protocolo, que era o protocolo original, foi pedido uma licença específica ao Ministério da saúde, no Senegal, e fizemos uma avaliação em tempo estendido, e avaliamos a imunidade induzida por até um ano depois da vacinação e os títulos permaneceram elevados, confirmando o que já tínhamos visto.

E o que a gente sabe que acontece com vacina recombinante: um ano de duração da imunidade foi o máximo que testamos. Isso é muito bom, é um indicativo, a curva não vai caindo, então a tendência é de manter e é isso que sabemos que acontece com vacinas recombinantes humanas em geral. Acredito que no uso em larga escala não se vai precisar de muitos reforços. Talvez um reforço com 5 anos, como foi originalmente previsto, para a Hepatite B, mas essa resposta só teremos depois do uso em larga escala no campo. É assim que funciona para qualquer vacina.