_destaque, Notícias

Avanços no manejo clínico da coinfecção por doença de Chagas e HIV no Brasil

Epidemia do vírus do HIV promoveu maior vigilância epidemiológica, incluindo o rastreamento sorológico de indivíduos sob risco de infecção, favorecendo o diagnóstico de outros agravos, como a doença de Chagas

03/01/2024

O aumento de pessoas que vivem com HIV/AIDS na região amazônica tem sobrecarregado o sistema de saúde local, afetado também por outras doenças endêmicas, como a doença de Chagas, cuja maior incidência se dá pela transmissão oral

Desde a revisão da definição de caso de AIDS pelo Ministério da Saúde em 1992, a relação entre infecções endêmicas e a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) tem sido um tema crucial para a saúde pública. O reconhecimento de enfermidades como doença de Chagas, leishmaniose visceral e paracoccidioidomicose pode traduzir  comportamento oportunista em indivíduos com HIV; o que incentivou o desenvolvimento de protocolos clínicos específicos e medidas de vigilância epidemiológica. O Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), em São Luiz, no Maranhão, em 2000, foi um marco, oferecendo recomendações sobre o manejo clínico da coinfecção por Trypanosoma cruzi e HIV. Essas recomendações incluíram a reativação da doença de Chagas como condição definidora de AIDS e a criação de um grupo de trabalho para estabelecer critérios específicos para reativação.

Em 2004, a reativação da doença de Chagas foi oficialmente reconhecida como condição definidora da AIDS para notificação compulsória, tendo um impacto significativo no cenário internacional. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) endossaram essa inclusão, destacando a importância dos coortes nacionais para avaliar possíveis condições adicionais definidoras da AIDS. Essa abordagem progressiva continuou com o Consenso Brasileiro da doença de Chagas em 2005, impulsionando a elaboração de um manual para diagnóstico, tratamento e acompanhamento da coinfecção T. cruzi/HIV. A criação da Rede Brasileira de Atenção e Estudos em Coinfecção T. cruzi/HIV foi um passo essencial nessa direção, expandindo-se internacionalmente.

O Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para a doença de Chagas foi atualizado em 2018, durante o Encontro Anual de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas, demonstrando uma visão mais ampla que inclui outras condições de imunossupressão, não se limitando apenas à coinfecção T. cruzi/HIV. A vigilância epidemiológica da doença de Chagas no Brasil foi expandida em 2020, incorporando a fase crônica como evento de interesse. Isso resultou em maior potencial de identificação da incidência da doença em todos os estágios e apresentações clínicas. Esses avanços ao longo das décadas foram cruciais para ampliar o acesso ao tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) e entender as mudanças epidemiológicas na doença de Chagas, impactando diretamente a população brasileira.

A doença de Chagas continua a desafiar a saúde pública no Brasil, afetando especialmente homens em áreas historicamente endêmicas. A interrupção da transmissão do T. cruzi pelo principal vetor domiciliado foi um marco, mas persistem desafios, incluindo a presença de triatomíneos capazes de colonização, bolsões remanescentes de vetores e a vulnerabilidade dos esforços de vigilância. A reativação da doença de Chagas em pacientes com imunossupressão, como os infectados por HIV/AIDS ou em tratamentos imunossupressores, é um ponto de atenção. O diagnóstico precoce e os tratamentos específicos são cruciais para reduzir a morbidade e a mortalidade nesses casos.

Apesar dos avanços, ainda há desafios na identificação e tratamento da coinfecção T. cruzi/HIV. Não há relatos detalhados sobre esses casos nos bancos de dados oficiais, o que indica a necessidade de uma abordagem mais abrangente na notificação e vigilância desses pacientes. Os esforços conjuntos em epidemiologia, diagnóstico e tratamento da doença de Chagas e HIV têm sido essenciais para compreender melhor essa complexa relação, ampliando a conscientização e melhorando os cuidados oferecidos aos pacientes coinfectados.

Em dezembro de 2023, publicou-se o “Relatório Técnico. Recomendações para Diagnóstico, Tratamento e Acompanhamento da Coinfecção Trypanosoma cruzi-HIV e outras condições de imunossupressão – 2023”, uma atualização do documento anterior publicado em 2006 pelo Ministério da Saúde do Brasil: “Recomendações para Diagnóstico, Tratamento e Acompanhamento da Coinfecção Trypanosoma cruzi/Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV)”, tendo em vista as mudanças ocorridas nas duas doenças, principalmente epidemiológicas, diagnósticas e tratamento.

De acordo com o Dr. Eros Antonio de Almeida, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/São Paulo), coordenador da Rede, a iniciativa de realizar a atualização do Manual se deu pela Rede Internacional de Atenção e Estudos em Coinfecção T. cruzi/HIV e outras condições de imunossupressão. Ele explica que a Rede assumiu a responsabilidade para esta tarefa em 2017 e que o documento foi finalizado em 2023 após inúmeras reuniões em congressos da SBMT e online. “Coincidentemente, a Rede foi criada no mesmo mês da publicação do documento em 2006”, lembra o Dr. Almeida.

A partir deste mês, a Dra. Tycha Bianca Sabaini Pavan, da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/BA), assume a coordenação da Rede. Ela afirma que um dos principais objetivos em sua gestão será consolidar novas parcerias, principalmente com profissionais e serviços de saúde de diversas áreas, para a implementação de atenção integral à saúde no manejo da coinfecção T. cruzi/HIV.

Confira o artigo “Guidelines for Trypanosoma cruzi-HIV Co-infection and other Immunosuppressive Conditions: Diagnosis, Treatment, Monitoring, and Implementation from the International Network of Care and Studies – 2023”, publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (RSBMT): https://doi.org/10.1590/0037-8682-0549-2023

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**