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Brasil instala Comitê Interministerial para eliminação da tuberculose

Coordenado pelo Ministério da Saúde, grupo reúne outras oito pastas com objetivo de eliminar, até 2030, doenças que acometem populações de maior vulnerabilidade social

10/07/2023

Além da tuberculose o plano de eliminação até 2030 contempla HIV, hepatites virais, tracoma, oncocercose, esquistossomose, filariose, geohelmintíases e doença de Chagas

De forma inédita, o governo federal instalou, no dia 06 de junho, o Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente (Cieds). Entre os objetivos  deste Comitê está o desenvolvimento de ações articuladas para alcançar inclusão social e cuidado integral às pessoas com tuberculose e outras doenças determinadas socialmente. Caberá ao Ministério da Saúde coordenar as ações do órgão que vai funcionar até janeiro de 2030. Os outros oito ministérios que fazem parte são: Ciência, Tecnologia e Inovação; Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; Direitos Humanos e da Cidadania; Educação; Igualdade Racial; Integração e Desenvolvimento Regional; Justiça e Segurança Pública; e Povos Indígenas.

Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2017 e 2021 as doenças determinadas socialmente foram responsáveis pela morte de mais de 59 mil pessoas no Brasil. As populações consideradas mais vulneráveis são as pessoas em situação de rua, que apresentam um risco de adoecimento pela tuberculose  56 vezes maior que a população geral; a população privada de liberdade (PPL), que representa aproximadamente 0,3% da população brasileira, e contribuiu com 9,9% dos casos novos de tuberculose notificados no País em 2021 (8.637 novas ocorrências), e as pessoas que vivem com HIV. Estima-se que, atualmente, um milhão de pessoas vivam com HIV no Brasil, sendo que, destas, 900 mil conhecem seu diagnóstico. Nesse cenário, a meta é ter 95% das pessoas vivendo com HIV diagnosticadas; 95% dessas pessoas em tratamento e, das que estão em tratamento, ter 95% com carga viral indetectável. A tuberculose é uma das condições de maior impacto na mortalidade desse público.

Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou o Dr. Draurio Barreira, diretor do Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde (Dathi/SVSA). Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: Quais as razões ou justificativas para a criação do Comitê Interministerial de eliminação da tuberculose e quais os principais objetivos e metas estabelecidos?

Dr. Draurio Barreira: A tuberculose é uma das doenças mais antigas do mundo, com registro de ocorrência de casos no antigo Egito, em sarcófagos, com datação de 3 mil anos antes de Cristo, sendo, portanto, uma doença milenar que até hoje, 2023, ainda é a doença infecciosa que mais mata no mundo. Isso ocorre não por ausência de ferramentas para o controle, pois temos boas condições de diagnóstico, tratamento, métodos de prevenção e até uma vacina, a BCG, que não é 100% efetiva porque funciona mais para prevenir casos entre crianças pequenas, já que não confere imunidade com o passar do tempo. Ou seja, está demonstrado, historicamente, que por meio de ações puramente biomédicas, jamais vamos eliminar a tuberculose. Não a eliminamos nos últimos 3 mil anos, e não será agora, fazendo as mesmas coisas, que vamos ter resultados diferentes. Medicamentos para tuberculose já existem há 70 anos; o diagnóstico é possível desde a descoberta do  bacilo de Koch, há mais de cem anos. O que precisa ser feito para efetivamente eliminar a tuberculose é termos um enfrentamento dos determinantes sociais da doença e não uma abordagem puramente biológica, ou seja, são as questões ligadas à pobreza, à exclusão social, à desigualdade, à falta de acesso a todos os bens que protegeriam contra a doença, como habitação, alimentação, trabalho, etc. Sem um enfrentamento de todos os fatores que determinam a doença, não vamos conseguir um resultado diferente do que conseguimos até agora e essa é a razão pela qual o Comitê foi criado com a participação de nove ministérios, com a possibilidade de, posteriormente, outros ainda entrarem, a exemplo do Ministério do Meio Ambiente, com o qual entendemos ser importante trabalharmos também. Eventualmente vamos ter de trabalhar com algumas organizações, algumas secretarias que não foram previstas no primeiro Decreto Presidencial, mas que tenham contribuições para o enfrentamento desses determinantes.

O objetivo do comitê, que o próprio nome já define, é eliminar a tuberculose como problema de saúde pública. Não só a tuberculose, mas todas as doenças infecciosas determinadas socialmente, como hanseníase, esquistossomose, oncocercose, tracoma, leishmaniose, transmissão vertical do HIV, hepatite B, sífilis, doença de Chagas e também o HIV como problema de saúde pública. Precisamos deixar claro que estamos falando de eliminação como problema de saúde pública e não de erradicação, que significa acabar definitivamente com uma doença, e isso só é possível por meio de uma vacina altamente eficaz, com eficácia próxima de 100% somada a cobertura vacinal de 100% das pessoas. Sem esses dois fatores, não se erradica nenhuma doença e os exemplos são muito claros. Na história da humanidade, só conseguimos erradicar a varíola e estamos próximos da erradicação da poliomelite. Mas ainda não conseguimos, estamos na fase de eliminação com problema de saúde pública É isso que queremos para a tuberculose e para todas as outras doenças que o Comitê Interministerial se propõe a eliminar.

As metas são operacionais. No caso da tuberculose, precisamos chegar ao indicador de incidência menor que 10 casos por 100.000 pessoas da população até o ano de 2030. Hoje temos praticamente 38 casos por 100.000. O mesmo se aplica para o HIV e para a hanseníase. Já as outras doenças, as metas são mais ousadas porque elas estão muito mais próximas de eliminação. Por exemplo, a filariose linfática só existe hoje no Brasil em quatro municípios da região metropolitana de Recife. Então devemos eliminar essa doença de forma a não termos mais praticamente nenhum caso no País. Mas, para a tuberculose, temos a meta operacional de 10 casos de tuberculose por ano para cada 100.000 habitantes.

SBMT: Quais os desafios políticos, econômicos e sociais que podem ser abordados pelo Comitê para alcançar a eliminação da tuberculose?

Dr. Draurio Barreira: Acredito que o principal foi o convencimento por parte do governo, do Presidente Lula, de colocar a eliminação da tuberculose não como um programa do Ministério da Saúde, um programa da saúde exclusivamente, mas um programa de governo, uma meta do governo Lula. Por isso, a edição de um Decreto Presidencial constituindo o Comitê Interministerial. Este foi o passo mais difícil, eu diria, do ponto de vista político, porque já vínhamos tentando isso há mais de 10 anos. Eu trabalhei como coordenador do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT), na época ele tinha esse nome, e a meta, inclusive, era controle, não eliminação, por isso o nome do programa se referir ao controle e não à eliminação. Então, desde aquela época, 2008 quando entrei, até 2015 quando saí, buscávamos convencer o governo a criar um Comitê Interministerial, e só agora, nesta nova gestão do presidente Lula, o desafio foi superado. As questões outras são muito relacionadas ao financiamento e esperamos contar com um financiamento que dê meios para que essas ações interministeriais sejam efetivadas. Ou seja, precisamos elaborar planos de trabalho com cada um dos ministérios envolvidos, com as suas áreas de contribuição na eliminação da doença e, com isso, ter suporte financeiro para conduzir as ações pactuadas.

SBMT: Quais estratégias e ações específicas serão implementadas pelo Comitê para melhorar a prevenção, o diagnóstico precoce, o tratamento e o apoio aos pacientes com tuberculose?

Dr. Draurio Barreira: Este, realmente, é o cerne da questão. Conforme explicitei na resposta à pergunta anterior, vamos discutir com cada um dos ministérios sobre como podem contribuir para resolvermos cada uma dessas questões. Vou dar alguns exemplos: no Ministério da Ciência e Tecnologia precisamos discutir quais as melhores ferramentas de diagnóstico, ou seja, testes rápidos moleculares, à semelhança do que  temos para Covid, por exemplo. Esses testes devem ser baratos, acessíveis, para que possamos expandir substancialmente a detecção dos casos de tuberculose de forma ágil, efetiva e barata. Em relação à prevenção, temos a vacina BCG, que, como dito anteriormente, tem eficácia restrita a um período da vida, a infância. Ou seja, precisamos de melhores vacinas. Mas a criação, o desenvolvimento de uma vacina, não é uma tarefa simples, algo que um país isoladamente faça, mas podemos e devemos contribuir com a coordenação global para o desenvolvimento de uma nova vacina. Outro exemplo de prevenção são os tratamentos encurtados, hoje disponíveis para prevenir a tuberculose, chamado de 3HP ou 1HP, que consiste no tratamento de 3 meses com uma dose semanal dos medicamentos rifapentina e isoniazida, em dose única semanal, por 3 meses, ou seja, 12 tomadas dessas drogas, para prevenção da tuberculose, contra o tratamento existente hoje, de 6 meses com isoniazida, todos os dias. Isso significa que passa de 180 tomadas para 12 tomadas, ou 1HP, que é a tomada das mesmas drogas, rifapentina e isoniazida, durante 30 dias corridos, o 1 se refere a um mês, enquanto o 3HP se refere a 3 meses, embora sejam apenas 12 doses, uma por semana.

Em relação ao tratamento está demonstrado que não conseguimos ter um tratamento com eficácia de 100%, porque há muito abandono. Aqueles acometidos pela tuberculose geralmente são extremamente vulneráveis, como a população em situação de rua, a população indígena e a população privada de liberdade (PPL), então precisamos promover formas de apoio social para que essas pessoas tenham continuidade no tratamento. Ou seja, não é só questão de dar o remédio, mas garantir a adesão ao longo dos 6 meses de tratamento. Neste sentido, precisamos da ação de outros ministérios. Já falei do Ministério da Tecnologia; mas, pensando em termos de tratamento, talvez o ministério mais importante nesse processo seja o do Desenvolvimento Social, por meio de incentivos para adesão ao tratamento ou, por exemplo, o Ministério da Justiça para o tratamento dentro dos presídios, o Ministério dos Povos Indígenas para o alcance e a manutenção do tratamento entre a população indígena e por aí vai. São muitos exemplos que nos sinalizam para a possibilidade de  atuarmos com diferentes ministérios para melhorar o diagnóstico, a prevenção e o tratamento tuberculose.

SBMT: Como o Comitê pretende coordenar as atividades de diferentes setores para atingir e cumprir o compromisso de eliminação da tuberculose até 2030?

Dr. Draurio Barreira: Vamos detalhar um pouco melhor o que adiantei acima. Precisamos elaborar oito planos de trabalho, ou seja, o Ministério da Saúde trabalhando com outros oito ministérios, definindo as ações específicas de cada um deles para contribuir para a eliminação da tuberculose. Dentre os exemplos citados, podemos acrescentar: trabalhar com o Ministério da Justiça para que tenhamos acesso à população privada liberdade e consigamos detectar, tratar e prevenir os casos de tuberculose no sistema prisional. Trabalhar com a população em situação de rua, junto ao Ministério do Desenvolvimento Social, promovendo formas de apoio social, incentivos, bolsa família, abrigo, moradia, tanto para os pacientes quanto para as famílias afetadas pela tuberculose. Trabalhar com o Ministério dos Povos Indígenas para atuar em meio à população indígena. Enfim, para cada segmento mais vulnerável afetado pela tuberculose, trabalharemos com aqueles atores que possam contribuir de forma a reduzir, e em última análise, eliminar a doença até o ano de 2030.

SBMT: Quais mecanismos de monitoramento e avaliação devem ser adotados pelo Comitê para acompanhar o progresso e os resultados na eliminação da TB?

Dr. Draurio Barreira: No processo de elaboração dos planos de trabalho haverá uma equipe de monitoramento e avaliação que estará trabalhando junto, pari passu, à elaboração do plano de trabalho com os mecanismos para o monitoramento e avaliação dessas ações. Então, o plano de monitoramento e avaliação será elaborado ao mesmo tempo que cada um dos oito planos de trabalho.

SBMT: Quais estratégias de mobilização de recursos implementadas pelo Comitê para garantir financiamento adequado e sustentável às ações de eliminação da doença?

Dr. Draurio Barreira: Neste primeiro ano, de 2023, que é o ano de elaboração dos planos, de mobilização dos outros ministérios e de articulação do trabalho a ser realizado até 2030, já contamos com orçamento amplamente suficiente, em função do fato de que o Ministério da Saúde teve uma sobra inesperada de recursos devido ao fato de que a compra da vacina para Covid 19 não será realizada nos quantitativos previstos quando da elaboração do orçamento do ano passado. Ou seja, havia um orçamento para compra da vacina para Covid, mas como a pandemia arrefeceu no mundo inteiro e no Brasil, não houve necessidade de efetuarmos a compra planejada no ano passado. Com isso, houve uma sobra de recurso que garante a execução do Comitê ao longo de 2023. Para os anos seguintes, de 2024 até 2030, vamos em busca de fontes suplementares e temos várias alternativas que serão discutidas ao longo desse ano. Uma delas, por exemplo, é um empréstimo do Banco Mundial que está alinhado com essa agenda de eliminação de doenças negligenciadas, são 14 doenças no total, e já conversamos com os técnicos do Banco Mundial em Brasília e eles estão alinhados com a ideia de prover um financiamento para o Comitê. Isso exige, obviamente, a participação dos ministérios, inclusive da Fazenda, autorizando a condução de uma Carta Consulta para obtenção do empréstimo e vários outros passos, mas as conversas já começaram e existem algumas alternativas. Há ainda a possibilidade de trabalhar com o Banco do BRICS e também com recursos da Caixa Econômica Federal (CEF), especialmente com a utilização de recursos advindos dos impostos dos prêmios de todas as loterias federais que são drenados para a saúde e para educação. Quer dizer que podemos definir como prioridade de financiamento deste programa, que é uma prioridade de governo e não apenas do Ministério da Saúde, seria uma fonte alternativa de recursos, os prêmios não reclamados das pessoas que ganham loteria e não buscam nos primeiros três meses após a premiação, esse recurso também pode ser encaminhado para a saúde e, com isso, é possível financiar o Comitê. Enfim, são várias ideias que serão debatidas coletivamente. As propostas que temos hoje foram desenvolvidas durante a elaboração do Comitê pelo Ministério da Saúde, mas agora precisa e deverá ser debatida com os demais atores do Comitê.

SBMT: Como o Comitê pretende envolver a sociedade civil, organizações não governamentais e outros atores relevantes no planejamento e implementação das ações de eliminação da tuberculose?

Dr. Draurio Barreira: Isso é muito claro para todos nós, pois antes de propor à Ministra a criação deste Comitê, já vínhamos discutindo com a sociedade civil e as organizações de pessoas afetadas pela tuberculose, além do setor acadêmico e outros setores da comunidade para que tivéssemos o apoio, o respaldo e a contribuição dos envolvidos na luta contra tuberculose. Ou seja, o Plano, na sua gênese, já compreende a contribuição de todos esses setores. No lançamento do Comitê, tivemos a participação de nove ministérios, seis redes de pessoas afetadas por diferentes doenças e várias sociedades de categorias profissionais (Pneumologia, Infectologia, Medicina Tropical, Enfermagem, etc.). Desde o início estamos preocupados com a participação ampla da sociedade civil; até pelo aprendizado que tivemos com a resposta nacional ao HIV, entendemos que não há possibilidade de um programa ser bem-sucedido sem a efetiva participação do ativismo e do movimento social relacionado ao problema que queremos enfrentar, no caso, o movimento social da tuberculose e das demais doenças no plano de eliminação.

SBMT: Quais planos foram pensados para promover a conscientização pública e a participação ativa da sociedade na luta contra a tuberculose?

Dr. Draurio Barreira: Isso também foi discutido antes mesmo da elaboração do Decreto Presidencial, na medida que essa nova gestão do Ministério da Saúde já vem debatendo a necessidade das campanhas informativas, publicitárias, não serem pontuais e referentes apenas a um determinado momento do ano. Por exemplo, fazer uma campanha contra a tuberculose não apenas no Dia Mundial de Luta Contra a Tuberculose, 24 de março, mas sim o longo de todo o ano e focando naquelas populações mais afetadas. Tanto que a campanha que fizemos recentemente não teve tanta visibilidade de forma geral, mas teve muito mais visibilidade para as populações afetadas. Ou seja, tivemos atuação muito grande nas comunidades dos grandes centros urbanos, nas favelas, nas comunidades mais pobres, nos presídios, nos abrigos de população em situação de rua e entre os profissionais de saúde que atuam com determinadas populações, como a população indígena. Estamos fazendo um trabalho de conscientização focado nas populações mais vulneráveis e com os profissionais que precisam saber da relevância do problema. Nesse momento, ainda trabalhamos na perspectiva da saúde, mas a partir da criação do Comitê, a ideia é extrapolar e passar a trabalhar não só com os profissionais de saúde na conscientização da necessidade de eliminar a doença, mas com todos os parceiros engajados no Comitê.