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Cólera: retorno de uma pandemia esquecida?

A taxa média de mortalidade de casos de cólera em 2022 está quase três vezes maior que a dos últimos cinco anos

08/12/2022
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Ressurgimento do cólera no Haiti é um lembrete da rapidez com que as doenças se espalham, ressaltou a diretora da OPAS, Carissa F. Etienne

Pesquisadores mostraram em um estudo publicado na revista científica Nature, como o O139 Vibrio cholerae, em vez de causar a oitava pandemia como previsto, desapareceu depois que de repente se tornou suscetível a antibióticos. No estudo intitulado “Vibrio cholerae O139 genomes provide a clue to why it may have failed to usher in the eighth cholera pandemic”, os pesquisadores examinaram 330 amostras colhidas entre 1992 e 2015 e observaram que ao longo do tempo houve mudanças significativas em seu genoma e essas mudanças causaram o “declínio inesperado” da variante.

O Dr. Ankur Mutreja, um dos autores do estudo, explica que o Cólera O139 se espalhou em três ondas sobrepostas e que resistência antimicrobiana (RAM) foi crucial para o sucesso precoce e posterior fracasso da linhagem do cólera O139. Ainda segundo o pesquisador, sempre existe a possibilidade de surgir uma nova variante do antígeno O, a qual levaria à oitava pandemia. No entanto, como a sétima pandemia ainda está ativa e circulando globalmente com sucesso, uma variante completamente nova e distinta da sétima linhagem não deve aparecer em curto prazo. “Para evitar a oitava pandemia, precisamos implementar esforços constantes de vigilância para monitorar a mudança evolutiva da população de V. cholerae em todo o mundo, especialmente em áreas endêmicas”, ressalta.

As bactérias do cólera não são monitoradas regularmente porque o cólera geralmente é fácil de tratar e evitar quando existem sistemas adequados de Água, Saneamento e Higiene (WASH, na sigla em inglês). Neste sentido, o Dr. Mutreja atenta para a importância de realizar estudos sobre a circulação e sobrevivência do V. cholerae. “com esta análise é possível acompanhar as mudanças em seu genoma e planejar alterações nas vacinas e nas respostas de saúde pública em acordo. Além disso, cepas mais recentes podem precisar de uma adaptação dos meios diagnósticos também”, complementa. Ou seja, a vigilância contínua das variantes em circulação é nossa melhor chance de prevenir surtos em massa. O monitoramento contínuo desse organismo potencialmente patogênico é necessário em cada nível, incluindo sua diversidade genética e apresentação de doenças na população humana.

Mundo registra “surtos mais fatais” de cólera

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2022 os casos de cólera aumentaram, especialmente em regiões que sofrem com a pobreza. Após anos com números decrescentes, desde 2021 o mundo registra “surtos mais fatais” da doença, em 27 países, registrados desde janeiro. De acordo com o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, a taxa média de mortalidade neste ano está quase três vezes maior que a dos últimos cinco anos. As razões do avanço, segundo o líder da OMS, estão ligadas a fatores climáticos, como enchentes, ciclones e secas, além de conflitos e deslocamentos forçados, que ao limitar o acesso à água potável em campos de refugiados, criam o ambiente ideal para a propagação da doença.

O Haiti está à beira de uma catástrofe na área de saúde. Desde a notificação dos dois primeiros casos confirmados da doença na região de Porto Príncipe, em 2 de outubro, o Ministério de Saúde Pública e População (MSPP) relatou mais de 9 mil casos suspeitos em oito áreas do país, até o dia 13 de novembro. A população enfrenta diariamente uma situação sanitária e humanitária deplorável. O acesso à água potável e aos cuidados de saúde são dificultados pela explosão da violência e escassez de combustível. A falta de água potável e as precárias condições sanitárias potencializam o rápido aumento no número de casos. Sem registro de cólera há mais de três anos, o país estava prestes a ser declarado livre da doença. A diretora da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Carissa F. Etienne, ressaltou que o ressurgimento do cólera no Haiti é um lembrete da rapidez com que as doenças se espalham.

A Síria registra desde setembro o primeiro grande surto da doença em 15 anos. Inicialmente ligado à água contaminada próximo ao rio Eufrates e à grave escassez de água na região norte, o surto se espalhou por todo o país, e mais de 13 mil casos suspeitos foram relatados, incluindo 60 mortes. Esta é a primeira vez que a doença é confirmada na região nordeste desde 2007. Após 11 anos de guerra, o país possui o maior número de deslocados internos do mundo, com 6,9 milhões de pessoas nessa situação, sendo a maioria  mulheres e crianças.

O Líbano também confirmou surto. O primeiro registro foi na província de Akkar, no norte do país. A maioria dos casos está entre refugiados sírios asilados no país. Cerca de 2 milhões de sírios se refugiaram no Líbano e muitos vivem em condições precárias. O cólera foi detectado no Líbano no início de outubro e atualmente há mais de 2 mil casos suspeitos, em um momento que o país vive uma crise econômica sem precedentes e luta com infraestruturas antigas e precárias. Este é o maior surto local em mais de três décadas.

A Nigéria passa por um grave surto de cólera desde janeiro, que já afetou mais de 18 mil pessoas, em 31 estados. Quase 500 pessoas morreram em decorrência da doença no país, que agora enfrenta uma das piores inundações que já enfrentou em uma década. Mais de 3,2 milhões de pessoas foram afetadas. O Nordeste do país registrou, até 3 de novembro, 14 mil casos de cólera e 443 mortes. Borno tem 81% dos casos relatados, seguido por Yobe e Adamawa. A contaminação das fontes de água aumentou o risco de propagação de cólera e outras doenças, como malária e febre tifóide.

O Malawi também tem lutado contra um surto devastador que já afetou todos os 28 distritos do país, que já enfrenta uma crise de fome cada vez maior. Relatórios do governo divulgados em novembro indicam que houve um aumento de 33,5% nos casos de cólera relatados em outubro, em comparação com setembro. Com a estação chuvosa prestes a começar, há temores de que possa haver um aumento nos casos. Malawi continua sendo uma das nações mais pobres do mundo. Cerca de 5.4 milhões de pessoas lutam contra a fome no país. A combinação cólera e fome gera um ciclo perigoso que representa um grande risco à nação.

Avanço do cólera provoca racionamento de vacinas

Diferente de outras doenças que ameaçam a saúde pública, o cólera pode ser enfrentado com intervenções simples, que incluem a prevenção por meio de vacinas. Apesar de evitável, o Dr. Mutreja enfatiza que a situação atual se deve principalmente ao déficit no fornecimento de vacinas. “Os estoques são limitados em quantidade e os fabricantes não veem isso como um negócio sustentável”, lamenta o professor do Instituto de Imunologia Terapêutica e Doenças Infecciosas de Cambridge. Infelizmente, o avanço da doença levou entidades a racionar o imunizante. A decisão foi tomada pelo Grupo de Coordenação Internacional (ICG, na sigla em inglês), que administra suprimentos emergenciais de vacinas. Com a suspensão temporária do regime-padrão de aplicação de duas doses, cada pessoa passa a receber uma dose única. Embora as pessoas vacinadas provavelmente fiquem protegidas por menos tempo, a alternativa de racionar as doses é preferível a ter de escolher a quais países enviar as vacinas e a quais não. Fazem parte do ICG, Médicos Sem Fronteiras (MSF), OMS e os Comitês Internacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

As vacinas orais contra o cólera tornaram-se recentemente disponíveis para  uso. Existem quatro variantes de vacinas orais em uso. Uma vacina monovalente viva atenuada de dose única de V. cholerae CVD 103-HgR liofilizada está disponível nos Estados Unidos para adultos entre 19 e 64 anos que viajam para áreas infectadas por cólera. Ela protege contra doenças causadas por V. cholerae O1. Além desta, há três vacinas orais de células inteiras mortas disponíveis para uso em crianças e adultos em todo o mundo, exceto nos Estados Unidos. São elas: vacina monovalente – contra diarreia e cólera dos viajantes (Dukoral®). Ela contém apenas as bactérias O1 e El Tor V. cholera mais uma pequena quantidade de toxina de cólera não tóxica da subunidade b. A Dukoral, no Brasil, é produzida pela Sanofi Pasteur®. As outras duas vacinas bivalentes (ShanChol® e Euvichol®) contêm sorogrupos O1 e O139 de V. cholerae. As três vacinas fornecem 60 a 85% de proteção por até 5 anos e exigem duas doses. As doses de reforço são recomendadas após dois anos para pessoas em risco permanente de cólera.

Embora raramente usadas, as vacinas injetáveis são efetivas para pessoas que vivem em lugares onde o cólera é comum. Elas oferecem algum grau de proteção por até dois anos após uma única dose e por três anos com reforço anual. Elas reduzem o risco de morte por cólera em 50% no primeiro ano após vacinação.

Mesmo com vacinas, doença representa grande ameaça à humanidade

A doença é causada pelo V. cholerae toxigênico, um bacilo Gram-negativo do Grupo O1 ou O139, móvel por flagelação polar e pertencente à família Vibrionaceae. Somente cepas toxigênicas de ambos os grupos causam epidemias de proporções e são notificadas para a OMS como “cólera”. O V. cholerae O1 tem dois biótipos, o Clássico e o El Tor, ambos são indistinguíveis bioquimicamente e dependendo da constituição antigênica podem ser divididos em três sorotipos: Inaba, Ogawa e Hikojima.

O cólera ocasionou seis pandemias entre 1817 e 1923, causadas pelo sorotipo clássico O1. A atual, a sétima, causada pelo biótipo El Tor, começou na Indonésia, em 1961, disseminou-se por outros países na Ásia, Oriente Médio, África (onde teve 70% de todas as notificações), Europa e, em 1991, América do Sul, via cidades litorâneas do Peru, atingindo o Brasil, pela região do Alto Solimões, no Amazonas. Em 1992, um novo sorogrupo enterotoxígeno, O139, surgiu na Índia e rapidamente atingiu o Paquistão, Bangladesh e China. Em 2010, uma epidemia pelo biótipo El Tor invadiu o Haiti depois de um terremoto que praticamente destruiu boa parte do país.

O cólera, cuja disseminação é facilitada pela ausência de saneamento básico e água potável, é facilmente tratável. Entre as medidas adaptáveis para tratamento, listadas pela OMS, está a reidratação oral dos pacientes e a distribuição de antibióticos para casos mais graves. Entretanto, se o paciente não tiver acesso ao tratamento, a doença pode matar em poucas horas.

O Dr. Mutreja lembra que qualquer país pode estar em risco de cólera introduzida por portadores, inclusive o Brasil. Ele cita o exemplo do Haiti, onde o cólera esteve ausente por anos e agora está fora de controle, mais uma vez, após o país quase se tornar livre do cólera. “Quando os sistemas de higiene e saneamento estão comprometidos, esses portadores podem disseminar cólera no ambiente, às vezes contaminando o abastecimento de água, levando a surtos da doença. Questionado sobre o que aprendemos com as experiências de surtos de cólera enfrentados anteriormente, por exemplo, pelo Haiti, países da Costa Oeste Africana, Subcontinente Indiano, entre outros, o Dr. Mutreja diz que a vigilância consistente e vacinação preventiva de populações em risco são fundamentais, e que os esforços de WASH devem continuar em paralelo como solução de longo prazo. Todos os anos são registrados entre 1,4 e 4,3 milhões de casos e 28 mil a 142 mil mortes no mundo. O Brasil já foi campeão mundial em cólera, registrando em 1993 o maior número de casos.