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Apesar de estar em constante ascensão, Chagas congênita continua negligenciada

A transmissão de mãe para filho atualmente ocorre em 5% no Cone Sul e 1,5% no Brasil Central

13/09/2018
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No Brasil, apenas dois estados realizam a triagem de todas as gestantes pelo programa do teste da mamãe, coordenado pela APAE e pelas respectivas Secretarias de Saúde

Para a infectologista e pesquisadora em Saúde Pública, Dra. Ana Yecê das Neves Pinto, a doença de Chagas congênita é negligenciada porque o diagnóstico durante a gravidez não é realizado e, consequentemente, a criança nascida de mãe infectada raramente é rastreada, mesmo nas áreas clássicas de ocorrência da doença em fase crônica. Ainda segunda ela, isso também acontece em virtude do decréscimo das ações de prevenção das políticas públicas sobre o tema, já que há uma falsa sensação de controle com eliminação da transmissão de Trypanosoma cruzi pelo vetor Triatoma infestans. “Na região Amazônica, por exemplo, onde há transmissão em focos ativos de alta morbidade de fase aguda, a triagem pré-natal não é aplicada com obrigatoriedade e isso implica em risco potencial de gestantes com altas parasitemias de transmitirem a doença a seus conceptos”, aponta.

Na Argentina, o estudo para detectar a doença na mãe grávida é obrigatório, mas devido à falta de monitoramento estima-se que após o parto apenas uma em cada três crianças que se infectaram com T. cruzi desta maneira seja reconhecido. Já no Brasil, apenas dois estados, Mato Grosso do Sul e Goiás, realizam a triagem de todas as gestantes pelo programa do teste da mamãe, coordenado pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e pelas respectivas Secretarias de Saúde. De acordo com o pesquisador e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista no tema, Dr. Alejandro Luquetti, com o procedimento já foi possível detectar mais de 3 mil gestantes infectadas. “A experiência no estado de Goiás, com a Secretaria de Saúde e a APAE, tem sido excelente, com cobertura de mais de 90% das gestantes do estado, desde 2005. Sabemos precisamente onde se encontram as mães infectadas”, comemora ao lamentar que nem todas consultam ou levam seus filhos para afastar a possibilidade de transmissão vertical (mãe para filho).

A transmissão da doença de Chagas de mãe para filho é hoje uma das principais vias de infecção nos países que controlaram a transmissão de vetores, por meio de vigilância, melhorando os padrões de moradia e aplicando a triagem de candidatos à doação de sangue em hemocentros (bancos de sangue), como Argentina, Brasil, Chile, Honduras, Paraguai, Nicarágua e Uruguai. Entretanto, a doença de Chagas congênita representa um dos eixos nos quais esforços adicionais devem ser concentrados. Dr. Luquetti assinala que os principais mecanismos de transmissão, em ordem de importância, são vetorial (incluindo a oral – inseto e/ou suas fezes na alimentação), transfusional e congênito. “Uma vez controlados os dois primeiros, como acontece em alguns destes países citados, resta o vertical como mais importante”, esclarece.

O impacto da transmissão vertical

De acordo com a Dra. Ana Yecê, desconsiderando o binômio mãe-filho e considerando apenas a criança, o impacto da transmissão da doença de Chagas em relação a outras importantes infecções congênitas é um pouco maior que o da citomegalovirose e da toxoplasmose, porém, é menor quando comparado ao herpesvírus, sífilis congênita, rubéola e zika vírus. Entretanto, considerando o binômio mãe-filho, a complexidade da doença de Chagas é maior, uma vez que nas mães, a citomegalovirose, a toxoplasmose, o herpesvirus, a rubéola e até mesmo o zika vírus constituem-se agravos de baixa morbidade e na grande maioria das vezes, assintomáticas. Para a doença de Chagas, entretanto, tanto para mãe quanto para o concepto, significa possibilidade de doença grave, com especial ênfase à fase aguda, somado ao fato de que a única droga utilizada para o tratamento tem potencial tóxico considerável e eficácia discutível para as fases crônicas. “Conclusivamente, do ponto de vista mãe-filho, a doença de Chagas, comparada as outras infecções de potencial transmissão vertical, se constitui a de maior impacto na saúde de populações expostas”, explica.

O tamanho do problema no Brasil

Na opinião da Dra. Ana Yecê, a dificuldade de se estabelecer o tamanho do problema se dá por falhas de triagem (rastreamento) pré-natal nas regiões onde predomina a doença em fase crônica, bem como a inexistência deste procedimento nas regiões onde predomina a doença em fase aguda, na transmissão de maior morbidade, como ocorre na Amazônia. Além disso, ela cita a falta de clareza nas indicações feitas por especialistas quanto à orientação diagnóstica da transmissão vertical e consequente postergação do início do tratamento. “Por exemplo, a presença de anticorpos passivos na criança pode induzir a erros diagnósticos durante os primeiros meses de vida. Isso protela o início do tratamento de uma criança que seja assintomática, considerando que não há como diferenciarmos o que são anticorpos recebidos da mãe e anticorpos próprios da criança”, reconhece.

A especialista é categórica ao enfatizar que políticas públicas que permitam o amplo e irrestrito acesso ao diagnóstico pré-natal de quaisquer infecções de potencial transmissão vertical incluindo a doença de Chagas, precisam ser implementadas rapidamente. “Da mesma forma, o estímulo ao rastreamento de infecções silenciosas para mulheres em idade fértil, pode ser coadunado estrategicamente aos programas de hemovigilância no País”, destaca.

O Dr. Luquetti lembra que como não existe medida para evitar a transmissão vertical, uma vez que não se conhecem os fatores que a favorecem, a única medida efetiva é o tratamento etiológico das meninas ou jovens infectadas, difícil de implementar. Ainda de acordo com ele, a transmissão do mal de Chagas de mãe para filho sempre existiu, mas agora é mais evidente pelo diagnóstico precoce da mãe infectada.

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) recomenda a triagem universal de Chagas para gestantes, pesquisa do parasito para os recém-nascidos ou estudo sorológico após os sete meses de idade que se positivo é indicação formal de tratamento etiológico, com cura em todos os casos. Também aconselha tratar as mães após o parto e diagnosticar e tratar os outros filhos de mulheres que tiveram resultados positivos.

De acordo com o II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, na América Latina foram estimados mais de 15 mil casos de doença de Chagas congênita por ano, com análises mais recentes indicando estimativa de 8.668 crianças infectadas por transmissão vertical. Ainda segundo o documento, no Brasil, a doença de Chagas congênita é considerada aguda e, portanto, de notificação compulsória. Entretanto, não se estabeleceu no País a vigilância específica em gestantes ou crianças expostas/infectadas. Por outro lado, reconhece-se que o tratamento anti-T. cruzi em mulheres infectadas em idade fértil, que não estão grávidas, pode representar uma estratégia efetiva para reduzir a transmissão vertical a futuras gestações. A transmissão vertical pode ser repetida a cada gravidez, durante todo o período fértil da vida de uma mulher.

Formas de prevenção

-Em áreas onde há consumo alimentar de produtos potencialmente envolvidos em transmissões: lavagem, higienização e obediência aos bons processos de manipulação alimentar de alimentos ingeridos “in natura”;

– uso de preservativos como prevenção global;

– Hemovigilância eficaz em candidatos à doação de sangue, tecidos e órgãos.

Importância do pré-natal

Essencialmente, o rastreamento de mães infectadas e que desconheçam condições mórbidas para todas as infecções com potencial de transmissão vertical. Consequentemente, conhecido o status materno, pode-se adequar acompanhamento pré-natal, objetivando detectar precocemente situações de risco ao concepto que será, portanto, devidamente acompanhado com oportunidade de diagnóstico precoce e prevenção de complicações.

“A excelente tolerância de lactentes às drogas utilizadas para o tratamento e a oportunidade de diagnóstico precoce em fase similar à fase aguda tornam as chances de cura, altíssimas nestes bebês”, complementa a Dra. Ana Yecê.

Evidências Internacionais

Estima-se no Brasil que 3 milhões de pessoas estarão infectadas em 2020, aproximadamente 950 mil com a forma cardíaca crônica e 410 mil com a forma digestiva, segundo análise publicada no II Consenso Brasileiro de Doenças de Chagas de 2015. Estes números reforçam a carga da doença no País e os desafios para o alcance do controle. As experiências a partir do Estado de Goiás têm demonstrado claramente que a doença de Chagas é um evento relativamente comum entre as mulheres testadas após 2003. Nesta mesma linha, as evidências latino-americanas, em particular a Argentina, reforçam esta modalidade de transmissão como um problema de saúde pública e o impacto populacional do seu controle. De fato, o tratamento de crianças com benznidazol é altamente eficaz na eliminação da infecção por T. cruzi.

De acordo com o professor do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), Dr. Alberto Novaes Ramos Jr, também especialista no tema, partindo da premissa de que a infecção congênita poderia sustentar a transmissão da doença de Chagas indefinidamente, reconhece-se a sua importância mesmo considerando-se cenários em países onde não há transmissão vetorial. “Apesar de existirem poucos estudos sobre o custo econômico da doença de Chagas e de intervenções para reduzir a morbimortalidade, sobretudo relativos a avaliações econômicas dos programas de rastreamento materno, já há indicativos importantes que justificariam a intervenção. De fato, a triagem de gestantes já se mostrou custo-efetiva também em outros países com menor carga de doença, como Espanha e Estados Unidos da América. Na Espanha, foram estimados os custos de um programa de rastreamento sistemático para mulheres latino-americanas. Eles utilizaram duas perspectivas analíticas: uma para os custos das mães e outra para os custos das crianças. No estudo espanhol, verificou-se de forma contundente que um programa de triagem de fato foi custo-efetivo em uma ampla variação de custos de triagem segundo diferentes probabilidades de prevalência materna e transmissão materno-infantil”, acrescenta. Outro estudo mais recente publicado em junho de 2018 avaliou os custos relacionados à triagem materna e testagem das crianças expostas, bem como ao tratamento da doença de Chagas nos Estados Unidos [Stillwaggon E, Perez-Zetune V, Bialek SR, Montgomery SP. Congenital Chagas Disease in the United States: Cost Savings through Maternal Screening. Am J Trop Med Hyg. 2018 Jun;98(6):1733-1742.http://www.ajtmh.org/content/journals/10.4269/ajtmh.17-0818]. “O modelo analítico de decisão utilizado neste estudo buscou reconhecer a opção de menor custo, comparando os custos de testes e tratamento, conforme necessário, para mães e bebês com os custos sociais na vida destas pessoas sem acesso a testes e a consequente morbidade e mortalidade em virtude da falta de tratamento ou de tratamento tardio”, explica.

O estudo revelou que adoção de triagem materna, teste infantil e tratamento da doença de Chagas nos Estados Unidos representaram, em conjunto, uma economia de custos para todas as taxas de transmissão congênita superiores a 0,001% e para todos os níveis de prevalência materna acima de 0,06%, em comparação com a ausência de um programa de triagem. Os métodos diagnósticos recentemente aprovados possibilitam que a triagem universal reduza os custos em cenários com prevalência materna tão baixa quanto 0,008%. O valor relativo à economia social ao longo da vida devido à triagem e ao tratamento foi de aproximadamente US$ 634 milhões economizados para cada coorte de ano de nascimento. Os autores concluíram que os benefícios da triagem universal para T. cruzi como parte de testes pré-natais de rotina superam em muito os custos das ações do programa de atenção para todos os nascimentos nos EUA.

O Brasil está em fase de implantação da vigilância epidemiológica por meio da notificação dos casos crônicos da doença, além dos casos agudos já estabelecidos, o que seria oportuno, portanto, a adoção destas modalidades de triagem sorológica para a integração destas pessoas diagnosticadas ao Sistema Único de Saúde (SUS).

“Ressaltamos que a doença de Chagas é uma das doenças mais negligenciadas historicamente, com restrição de acesso a diagnóstico a milhões de pessoas, restrição esta que se amplia quando consideramos acesso ao tratamento (menos de 20% das pessoas que necessitam têm de fato acesso). Sua elevada carga de doença no Brasil (a maior entre as doenças negligenciadas) [Martins-Melo FR, Carneiro M, Ramos AN Jr, Heukelbach J, Ribeiro ALP, Werneck GL. The burden of Neglected Tropical Diseases in Brazil, 1990-2016: A subnational analysis from the Global Burden of Disease Study 2016. PLoS Negl Trop Dis. 2018 Jun 4;12(6):e0006559. – http://journals.plos.org/plosntds/article?id=10.1371/journal.pntd.0006559] reforça a necessária resposta brasileira ao problema”, finaliza o Dr. Novaes.

Do ponto de vista das Américas, desde 2010, os Estados Membros da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) se comprometeram com a eliminação da transmissão de mãe para filho (EMTCT) da infecção pelo HIV e sífilis na Região, e as metas foram estabelecidas para 2015 na Resolução CD50.R12. Esses compromissos foram renovados e ampliados em 2016 por meio do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do HIV e Infecções Sexualmente Transmissíveis (2016-2021), contribuindo para o fim da aids e das infecções sexualmente transmissíveis (IST) como problema de saúde pública nas Américas na Resolução CD55.R5. O plano de ação amplia a iniciativa EMTCT (agora chamada “EMTCT Plus”), alavancando a plataforma de saúde materno-infantil (MCH) para incluir a eliminação de outras doenças transmissíveis evitáveis nas Américas, como hepatite B e doença de Chagas (esta última em países endêmicos principalmente). O objetivo da iniciativa EMTCT Plus é alcançar e manter a eliminação da transmissão materno-infantil do HIV, sífilis, doença de Chagas e hepatite B perinatal (VHB) como uma ameaça à saúde pública. Abrange os princípios e linhas de ação da Estratégia de Acesso Universal à Saúde e Cobertura Universal de Saúde, com base nas lições aprendidas da Estratégia e Plano de Ação da OPAS para o EMTCT de HIV e Sífilis Congênita. [EMTCT Plus. Framework for elimination of mother-to-child transmission of HIV, Syphilis, Hepatitis B, and Chagas. PAHO, PAHO/CHA/17-009, 2017 http://iris.paho.org/xmlui/handle/123456789/34306]