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Estudo sobre mortes por doenças tropicais mostra o impacto da doença de Chagas, esquistossomose, leishmaniose e hanseníase no Brasil nos últimos 12 anos

Pesquisador alerta também que a rede de atenção à saúde do País não deve menosprezar os óbitos relacionados à hanseníase

12/02/2016
Dr.

Brasil é o principal responsável pela elevada carga de morbimortalidade relacionada às DTNs na América Latina, com uma complexa associação de diferentes determinantes sociais

Uma pesquisa sobre as mortes por doenças tropicais negligenciadas no País, entre os anos 2000 e 2011, revelou que 76.847 pessoas vieram a óbito devido a males como a doença de Chagas (que vitimou 58.928 brasileiros), esquistossomose (6.319 mortes) e leishmanioses (3.466 mortes). O impacto destas três doenças no Brasil nos últimos 12 anos é reforçado quando se verifica que o número de mortes por dengue foi inferior. Um dado adicional que também chamou atenção refere-se à hanseníase, que registrou quase 3 mil mortes no período, um número inferior, mas bastante próximo ao verificado para dengue (diferença de 220 óbitos). Isso porque a hanseníase geralmente é vista como uma doença com padrões clínico-epidemiológicos de baixa letalidade.

De acordo com um dos autores do trabalho, o doutor Alberto Novaes Ramos Jr., os registros alertam que a rede de atenção à saúde do País não devem menosprezar as mortes relacionadas por estas doenças, incluindo ahanseníase. “Precisamos cuidar ainda mais, cada vez melhor, das pessoas que desenvolvem a doença, enfrentando aspectos não apenas físicos, mas também aqueles relacionados ao estigma e ao preconceito”, disse.

O artigo foi publicado no mês de fevereiro no Bulletin of the World Health Organization.

Veja, abaixo, a entrevista exclusiva do doutor Alberto à Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) sobre o tema.

SBMT: Nos 12 anos pesquisados, foram registradas mais de 76 mil mortes por doenças tropicais. O número é considerado alarmante, mesmo com a melhora no conhecimento sobre essas enfermidades?

Doutor Alberto Novaes: A pesquisa que gerou este dado integrou uma análise de base populacional (quase 12.500.000 de óbitos gerais analisados) para reconhecimento da carga de mortalidade relativa a doenças tropicais negligenciadas (DTNs) no Brasil. Para tanto, foram utilizados dados oficiais de mortalidade provenientes do Sistema de Informações sobre Mortalidade, Ministério da Saúde.

É fundamental entender que este conjunto de doenças é causado por agentes infecciosos e parasitários que afetam predominantemente populações com alta vulnerabilidade individual, programática (relação com redes de atenção à saúde) e social. Na realidade, compõem um grupo de doenças intrinsecamente associado à condição de pobreza, seja como causa ou como consequência, com elevado caráter de negligência das populações acometidas. Ressalta-se que o Brasil é o principal responsável pela elevada carga de morbimortalidade relacionada às DTNs na América Latina, com uma complexa associação de diferentes determinantes sociais.

O artigo Mortality from neglected tropical diseases in Brazil, 2000–2011, oriundo desta pesquisa, foi conduzido na Universidade Federal do Ceará e compôs parte da tese de doutoramento de Francisco Rogerlândio Martins-Melo, com orientação dos professores Jorg Heukelbach (orientador principal) e Alberto Novaes Ramos Jr. (coorientador), tendo a colaboração do professor Carlos Henrique Alencar. Ao analisar ao longo de 12 anos somente causas básicas de morte com menção de quaisquer das DTNs consideradas, identificamos aproximadamente 76.900 mortes. A doença de Chagas neste período foi responsável por 76.7% (58.928) destas mortes analisadas.

Neste estudo, as DTNs que se comportam predominantemente como condição crônica apresentaram a maior carga de mortalidade, sendo a doença de Chagas aquela com o maior número de mortes, seguida por esquistossomose e leishmaniose, enquanto a hanseníase também apresentou uma carga de doença considerável, a despeito das clássicas sinalizações ao contrário. Dengue foge a este padrão de cronicidade e foi incluída por ser considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma DTN, ficando na quarta posição em número de óbitos, abaixo da hanseníase, mas com pequena diferença. Reforça-se, portanto, a importância das DTNs no Brasil como problema de saúde pública, a despeito dos avanços alcançados nas últimas décadas.Ampliam-se no século XXI os desafios ao se considerar o processo de transição em saúde pelo qual o Brasil vem passando em termos demográficos, com o envelhecimento populacional, bem como em termos epidemiológicos, com maior inserção de doenças crônicas não transmissíveis, incluindo condições nutricionais, de saúde mental e de agravos associados a mortes violentas. Todo este processo em um cenário predominantemente urbano.

Ademais, há a necessidade de se enfrentar as grandes falhas da ciência, de mercado e de saúde pública relativas a estas doenças, por exemplo, em termos de métodos diagnósticos e opções de tratamento para casos humanos, identificação de portadores, estratégias de reabilitação, bem como de iniciativas para desenvolvimento inclusivo com vistas a superar o ciclo de pobreza. Insere-se também o desenvolvimento de estratégias para controle efetivo de vetores e reservatórios e de vigilância ambiental.

SBMT: O número de mortes por hanseníase foi considerado surpreendente. O dado deve levantar o alerta do sistema de saúde do País?

Doutor Alberto Novaes: Realmente surpreendente, quase 3.000 mortes colocando a hanseníase como causa básica, abaixo de dengue, mas com uma diferença de pouco mais de 200 óbitos. A hanseníase é classicamente tipificada como doença com alta capacidade de morbidade pelo dano dermato-neurológico, mas não associada a níveis significativos de mortalidade. O Brasil é o segundo país no mundo em termos de detecção de casos novos, aproximadamente 30.000 anualmente, o que amplia os desafios para o seu controle. Muitos destes casos infelizmente ainda são diagnosticados tardiamente, já com a presença de incapacidades e deficiências.

Nosso grupo publicou recentemente o artigo Leprosy-related mortality in Brazil: a neglected condition of a neglected diseaseaprofundando as análises, trabalho este fruto do doutorado de Francisco Rogerlândio Martins-Melo e do trabalho de mestrado da professora Adriana Valéria Assunção Ramos.

Por meio desta análise, identificamos aproximadamente 7.730 mortes incluindo, além da causa básica, as causas associadas. Traduz, portanto, um acréscimo de quase 4.730 óbitos tendo esta doença como causa associada, ampliando-se a sensibilidade do sistema de vigilância. Identificou-se ainda que os eventos de óbito se associavam em grande parte a complicações relacionadas com a hanseníase, como episódios reacionais graves, efeitos adversos aos medicamentos utilizados na poliquimioterapia e infecções bacterianas secundárias graves.

Portanto, alerta-se a rede de atenção à saúde do País que as mortes relacionadas à hanseníase não devem ser menosprezadas. Precisamos cuidar ainda mais, cada vez melhor, das pessoas que desenvolvem a doença, enfrentando aspectos não apenas físicos, mas também aqueles relacionados ao estigma e ao preconceito.

SBMT: Os dados de morte por DTNs podem estar subestimados? É possível que o total de óbitos seja muito maior? Há um cálculo de um valor mais próximo da realidade?

Doutor Alberto Novaes: Estão de fato subestimados. Análises paralelas realizadas pelo nosso grupo no mesmo período de 12 anos, com base em análises não somente de causas básicas (utilizadas tradicionalmente pela OMS e pelo Ministério da Saúde do Brasil nas análises), mas também de causas associadas indicadas nas declarações de óbito,evidenciaram que o número de óbitos por DTNs eleva-se para quase 101.080, uma diferença de 23.967 mortes em relação ao identificado neste artigo.

Reconhece-se ainda que há um considerável subregistro de DTNs como causa de morte também em virtude das diferenças de desempenho da rede de atenção e vigilância nas diferentes regiões do País, em geral com piores padrões nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A vulnerabilidade das pessoas atingidas por estas doenças, para além do verificado do ponto de vista individual e social, insere também questões como dificuldade de acesso à rede de atenção à saúde, em especial aquela que é composta por maior densidade tecnológica. Ou seja, certamente o problema é maior do que o que tem sido verificado nas últimas décadas.

Outros estudos publicados que foram conduzidos pelo nosso grupo (indicados abaixo, ao final do texto) sinalizaram este mesmo padrão de subdimensionamento para outras DTNs, quando analisadas de forma mais detalhada e isoladamente, o que certamente reforça o alerta para maior enfrentamento destas doenças na rede de atenção à saúde como problemas concretos de saúde pública. Por exemplo, doença de Chagas: 58.928 óbitos como causa básica e 72.586 como causa básica e associada (diferença de 13.658 mortes); esquistossomose: 6.319 óbitos como causa básica e 8.756 como causa básica e associada (diferença de 2.437 mortes); leishmaniose visceral (especificamente): 2.727 óbitos como causa básica e 3.322 como causa básica e associada (diferença de 595 mortes) e neurocisticercose: 1.130 óbitos como causa básica e 1.829 como causa básica e associada (diferença de 699 mortes).

SBMT: Quais devem ser as principais medidas de controle para conter os avanços das mortes por DTNs no Brasil?

Doutor Alberto Novaes: Em linhas gerais, para as pessoas já atingidas pelas quatro DTNs a que me referi, identificadas neste estudo, há uma clara necessidade de integrar a atenção e o cuidado a estas condições na rede de atenção à saúde no País, desde a atenção básica à saúde (atenção primária à saúde) até a atenção de maior densidade tecnológica. Estas pessoas, suas famílias e comunidades precisam ser melhor cuidadas, de forma longitudinal, na perspectiva da integralidade, desde o seu território.

Como condições crônicas em grande parte, precisam ser detectadas precocemente para tratamento oportuno, o que demanda o desenvolvimento de métodos diagnósticos mais simples, com acurácia adequada, e passíveis de utilização no campo. Deve-se monitorar a existência de comorbidades, como doenças crônicas não transmissíveis (hipertensão arterial sistêmica e diabetes melito, por exemplo) associadas ao processo de envelhecimento humano e de condições associadas à imunodeficiência, adquiridas, como a infecção por HIV/aids, ou induzidas, como as resultantes de tratamentos com quimioterápicos ou corticosteroides, dentre outros. A presença de comorbidades ou de coinfecções podem agravar a evolução destas doenças, agregando maior morbimortalidade. Acresce-se o enfretamento das graves complicações clínicas e psicológicas, incluindo também o estigma e a exclusão social associados a algumas destas DTNs. Para aquelas pessoas em fases mais avançadas ou complicadas da doença, há uma clara necessidade de ações de reabilitação por meio de diferentes estratégias, incluindo clínicas, fisioterápicas, cirúrgicas, psicológicas e sociais. É fundamental que estas ações busquem alcançar as pessoas, famílias e comunidades atingidas para o enfrentamento concreto dos impactos gerados por estas doenças. Inserem-se, portanto: 1- Inclusão de pessoas na sociedade em geral, 2- Empoderamento destas pessoas de forma a estimular a participação plena na sociedade e a possibilidade de definirem seus próprios objetivos de vida e 3- Sustentabilidade dos programas de enfrentamento às diferentes dimensões (para além do setor saúde) destas doenças com vistas a garantir condições básicas de vida e a trabalhar com as pessoas atingidas por DTNs e a sociedade em geral no sentido de quebrar as barreiras existentes.

Para as pessoas não infectadas, mas que vivem em contextos de endemicidade na atualidade ou (viviam) no passado, é fundamental o desenvolvimento de ações com vistas a prevenir a ocorrência de infecção. Inserem-se, neste sentido, ações de promoção à saúde como: educação em saúde e ambiental, vigilância ambiental, vigilância sanitária, políticas sociais visando desenvolvimento inclusivo, saneamento básico, segurança hídrica, dentre outras. É preciso enfrentar o estado de grandes desigualdades sociais ainda vigentes no país, com vistas ao desenvolvimento humano inclusivo. Ademais, ações de proteção específica devem ser pesquisadas, entre outras possibilidades, o desenvolvimento de vacinas.

A depender da DTN, em relação a parasitos, vetores e hospedeiros intermediários, é fundamental fortalecer as ações de vigilância e controle no País, em uma perspectiva municipal e integrada nos diferentes cenários regionais. O fortalecimento da rede de laboratórios no País para estudos, identificação, classificação, monitoramento e avaliação deve ser sustentado. Inserem-se ainda questões como a busca de novos inseticidas e moluscicidas com maior segurança para a população humana, que sejam ambientalmente justificáveis, além do monitoramento/avaliação sistemático de diferentes padrões de resistência aos produtos utilizados ao longo do tempo pelas equipes de controle de endemias.

Todas estas ações demandam organização e fortalecimento da rede de atenção e vigilância no Sistema Único de Saúde (SUS), não apenas com a estrutura e os insumos necessários, mas, sobretudo, com profissionais qualificados para desenvolver estas ações, tanto de nível superior quanto técnico. Infelizmente muitos profissionais da saúde, incluindo os médicos, não reconhecem estas doenças como problema de saúde pública ou não sabem manejá-las ou controlá-las adequadamente. É notória, nos cursos de profissões em saúde pelo País, incluindo a medicina, a redução do espaço que estas doenças têm nos currículos. Torna-se necessário, portanto, empreender as reformas no ensino indicadas pelas atuais Diretrizes Curriculares, que no caso do curso médico, foram atualizadas em 2014. Da mesma forma, as diretrizes para educação permanente em saúde voltadas para as DTNs de uma forma mais geral, envolvendo não apenas agentes de endemias, mas também os agentes comunitários de saúde.

Por fim, tendo em vista as lacunas de evidências consistentes, outros estudos desenvolvidos por nosso grupo nos últimos 5 anos procuraram fortalecer e dar visibilidade à carga das DTNs no Brasil, seja por meio de estimativas de prevalência, como no caso da doença de Chagas, seja por meio da identificação de padrões e tendências espaço-temporais. Reforçou-se ao longo destas publicações a necessidade de fortalecer os componentes de epidemiologia e vigilância em saúde, gestão, educação permanente, atenção integral, informação e comunicação, bem como de pesquisas de natureza operacional ou não.

Demonstrou-se a sobreposição geográfica de áreas de alto risco para óbitos relacionados às DTNs ressaltando a necessidade de implementação de medidas integradas de controle nas áreas com maior morbidade e mortalidade. Reconheceu-se ainda a partir desta série de análises que a distribuição espacial da mortalidade relacionada às NTDs nos municípios brasileiros está fortemente correlacionada com indicadores socioeconômicos, demográficos e ambientais/climáticos, além de ter variações geográficas significativas importantes, e pode ser utilizada como indicador para controle e vigilância das DTNs. Para tanto, foram utilizados dados oriundos de diferentes bases (IBGE, IPEA, INPE, PNUD, MDS, SISAM e DATASUS).

Artigos indicados pelo doutor Alberto:

Neurocysticercosis-related mortality in Brazil, 2000-2011: Epidemiology of a neglected neurologic cause of death

Leprosy-related mortality in Brazil: a neglected condition of a neglected disease

Spatiotemporal Patterns of Schistosomiasis-Related Deaths, Brazil, 2000–2011

Prevalence of Chagas disease in Brazil: a systematic review and meta-analysis

Epidemiological patterns of mortality due to visceral leishmaniasis and HIV/AIDS co-infection in Brazil, 2000-2011

Mortality and case fatality due to visceral leishmaniasis in Brazil: a nationwide analysis of epidemiology, trends and spatial patterns

Trends in schistosomiasis-related mortality in Brazil, 2000–2011

Prevalence of Chagas disease in pregnant women and congenital transmission of Trypanosoma cruzi in Brazil: a systematic review and meta-analysis

Mortality due to Chagas disease in Brazil from 1979 to 2009: trends and regional differences

Multiple causes of death related to Chagas disease in Brazil, 1999 to 2007” 

Mortality Related to Chagas Disease and HIV/AIDS Coinfection in Brazil

Mortality of Chagas disease in Brazil: spatial patterns and definition of high-risk areas

Epidemiology of mortality related to Chagas disease in Brazil, 1999-2007