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Favelas: uma epidemia vivenciada por quem enfrenta desigualdades no dia a dia

Estudo “Um País Chamado Favela: 2023” aponta que as favelas brasileiras concentram 17,9 milhões de pessoas

10/05/2023

Um dos principais contribuintes para a má saúde dos moradores de favelas é a qualidade inadequada da moradia, marcada pela falta de saneamento básico e água potável, aglomeração, poluição intradomiciliar, construções precárias com riscos de inundações

O mundo em desenvolvimento está cada vez mais urbano e isso tem sido o precursor indesejado de novos problemas, como o surgimento de favelas urbanas. De acordo com o UN-HABITAT, somente a Ásia acomoda 60% das favelas do mundo – e muito mais pessoas vivem em condições semelhantes em áreas que são oficialmente consideradas como não favelas. No Brasil, segundo o “Data Favela 2023”, estudo mais completo do País sobre o tema, realizado em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-SP), a estimativa é de que uma população de 17,9 milhões resida em favelas, ou seja, em termos de comparação, se fosse um estado, seria o terceiro maior território em número de habitantes, atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais.

O médico sanitarista Dr. Valcler Rangel Fernandes explica que a urbanização é um processo histórico irreversível com consequências importantes para a vida no planeta e a humanidade deve enfrentar os riscos e impactos sobre a saúde e o ambiente, de forma integrada e com utilização de estratégias de planejamento urbano, ao mesmo tempo em que ações voltadas para os territórios, em especial, aqueles que apresentam maiores vulnerabilidades, tanto no campo quanto nas cidades, sejam desenvolvidas. “Não há possibilidade de enfrentar a pobreza sem tratarmos das condições que geram vulnerabilidades das populações em uma sociedade capitalista que produz desigualdade em dimensões exponenciais”, ressalta.

Ainda segundo ele, se a urbanização revela de forma flagrante a dimensão da pobreza expressa na fome, na fragilidade das habitações, na geração de postos de trabalho precário, nas condições ambientais e de saneamento, na insegurança pública, é geradora de oportunidades, espaços de convivência, inovação social e crescimento da organização da sociedade civil, entre outros ganhos. “A formulação e execução de políticas públicas de combate à pobreza deve levar em conta essas características, em especial a participação dos atores sociais que vivem nos territórios e que sofrem com a pobreza, pois esse enfrentamento passa necessariamente pela questão democrática e pela caracterização singular de cada território em que se desenvolvem estratégias de redução das desigualdades e erradicação da pobreza”, acrescenta o Dr. Fernandes.

Favelas escondem desafios únicos à saúde

O pesquisador destaca a importância de se ter desenhos de estudos que localizem os problemas de saúde nesses territórios e análise de dados desagregados para as populações que vivem em favelas, de modo que se obtenha perfis de adoecimento mais caracterizados. Para o Dr. Fernandes, é fundamental que as definições utilizadas para favelas ou aglomerados subnormais e outras definições para territórios semelhantes caracterizados pela vulnerabilidade sejam tratadas com rigor, de forma que as análises produzam informações adequadas para a formulação de políticas apropriadas. Os perfis epidemiológicos podem estar associados a diversos determinantes que se apresentam de forma diferenciada em cada território, desde a insuficiência de saneamento básico, a característica das moradias, a qualidade do ar, o acesso a serviços de saúde, a disponibilidade de transportes públicos, a comunicação comunitária, a existência e o porte de políticas locais de assistência social e as características da política de segurança pública, entre outras tantas questões que incidem diretamente no modo de adoecer e morrer nessas comunidades.

“Devemos entender o racismo como um determinante central no processo saúde/doença. Sabemos que a expectativa de vida é menor nesses territórios, tanto pela maior ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis como doenças cardiovasculares, câncer, doenças endócrinas e neurológicas, quanto pela alta mortalidade por causa externas, dentre elas os homicídios”, assinala. Além disso, a saúde das crianças que vivem nas favelas e são especialmente vulneráveis é outro desafio. A combinação recorrente de desnutrição e diarreia leva ao crescimento atrofiado e provoca efeitos em longo prazo sobre o desenvolvimento cognitivo. Diarreia, pneumonia e tuberculose estão entre as maiores causas de morte de crianças com menos de 5 anos. Outra dificuldade enfrentada é a disseminação veloz de infecções sexualmente transmissíveis (IST). A aglomeração característica típica contribui para isso. A incidência de Aids, por exemplo, é superior nesses locais.

A poluição intradomiciliar é outro dilema. A fumaça produzida pela queima da madeira durante o preparo dos alimentos é extremamente prejudicial à saúde e o uso diário da lenha pode causar doenças ou agravar a situação de quem já convive com problemas respiratórios. Para se ter uma ideia, em 1991, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já alertava que a queima de madeira e carvão nas casas matava cerca de 2 milhões por ano, naquele período, sendo que a situação era mais comum nos países menos desenvolvidos (América Latina e África). Segundo a organização, a fumaça produzida por essas formas de cozimento primitivas é a grande causadora de doenças em casas sem ventilação. As maiores vítimas são as mulheres e as crianças, que ficam mais tempo neste ambiente. Diariamente, e durante horas, elas respiram uma quantidade de fumaça equivalente a fumar dois maços de cigarro por dia”, revelou a OMS na época.

Acidentes de motos também representam uma triste realidade das favelas. As motocicletas são consideradas por especialistas como uma das mais sérias epidemias urbanas desta década, e o seu impacto se reflete em todos os territórios urbanos, formais e informais. O Brasil está entre os países com maior número de acidentes envolvendo motocicletas, especialmente nas regiões mais pobres – Norte e Nordeste. Entre 1996 e 2006, de todas as fatalidades em decorrência de acidentes viários, as com motocicletas aumentaram em 900%, passando de 2,1 para 19,4%.

A violência urbana tem se constituído como um dos mais graves problemas na vida da população brasileira e gera grandes impactos no setor de segurança pública e saúde, bem como na forma de construção das sociabilidades e uso dos espaços públicos, sendo mais dramáticos, os casos vividos pelas populações mais pobres, principalmente as residentes nas favelas. O País detém lugar de destaque no mundo quando se considera o número de anos de vida perdidos em decorrência da violência. Questionado se o tráfico de drogas se tornou um dos principais obstáculos para o sucesso do serviço público de saúde nas favelas, o Dr. Fernandes reconhece que essa razão é apresentada muitas vezes como um argumento que mascara a ausência de prioridade definida pelos governos para o desenvolvimento de políticas de saúde pública. “Certamente a insegurança é um fator limitante para qualquer atividade no território, porém, a articulação de estratégias comunitárias, com fortalecimento dos dispositivos participativos geram possibilidades de atuação que reduzem os obstáculos na execução das ações de saúde nos territórios, inclusive onde há presença de grupos armados que atuam na criminalidade. Há experiências que demonstram essas possibilidades, mas todas passam pela articulação de políticas intersetoriais e com participação social”, aponta.

De acordo com o médico sanitarista, algumas medidas essenciais para a mudança de panorama nas favelas, podem ser adotadas, entre elas a decisão do Estado em atuar de forma integrada, sem o destaque que hoje é dado para a entrada nas favelas somente com os aparatos de segurança pública, que tratam desses territórios como lugares onde se trava uma guerra. “A ideia de Guerra às Drogas já foi abolida em todos os lugares do mundo que aplicaram esse receituário e fracassaram depois de muitos anos de execução. O Brasil está demorando a aprender e buscar outras alternativas”, observa. Além disso, para o médico é necessário valorizar os moradores de favelas e as organizações existentes nesses territórios no processo de diagnóstico dos problemas, planejamento e gestão das iniciativas. Para ele, o processo de comunicação junto à população deve passar por uma revisão radical, principalmente junto aos extratos mais jovens, mas garantindo a preservação dos conhecimentos dos mais velhos.

Outras medidas elencadas pelo Dr. Fernandes incluem a elaboração de diagnósticos mais precisos voltados para a caracterização de problemas e que orientem as políticas, sua execução, monitoramento e avaliação; o uso intensivo de tecnologias e de estratégias de formação de pessoas para o desenvolvimento territorial; a priorização da proteção dos espações de educação e de saúde nesses territórios, como grandes locus de formulação e de convivência para a formulação de propostas voltadas para a melhoria da qualidade de vida da população; a definitiva mudança do olhar sobre esses territórios como bairros das cidades, onde haja exercício de cidadania plena; e a alocação de recursos correspondente as necessidades das populações residentes, de modo que possa haver inversão de prioridades nas diversas políticas culturais, de urbanização, transporte etc.

Por fim, o Dr. Fernandes enfatiza que o caminho a seguir está em colocar as favelas dentro das prioridades governamentais e dos entes da federação, parlamento e judiciário. “Creio que haja necessidade de maior envolvimento das instituições de pesquisa e universidades, especialmente as públicas em um grande debate de superação dos obstáculos colocados para o desenvolvimento de políticas públicas nas favelas”, conclui. Na Índia, a questão da pobreza urbana foi reconhecida há mais de duas décadas e os relatórios propuseram soluções que incluem maior equidade na prestação de serviços básicos, subsídios direcionados para os setores vulneráveis da população e assistência especial do governo para fortalecer as bases econômicas de pequenas e médias cidades.

Uma prévia dos dados do Censo Demográfico 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em março, apontou que o Brasil tem 11.403 favelas, onde vivem cerca de 16 milhões de pessoas, em um total de 6,6 milhões de domicílios. Os dados representam um aumento de aproximadamente 40% de brasileiros morando em favelas nos últimos 12 anos. O Censo Demográfico de 2010 contabilizou 11.426 milhões de habitantes naquele ano. A favela mais populosa do País atualmente é a Sol Nascente, em Brasília, com 87.184 moradores. A Rocinha, localizada no Rio de Janeiro, que liderava o ranking em 2010, ficou na segunda posição, com 67.199 moradores. Em terceiro lugar está a Cidade de Deus/Alfredo Nascimento, em Manaus, com 55.361 pessoas, seguida por Rio das Pedras, também no Rio de Janeiro, com uma população estimada em 54.793. Os dados referentes a 2022 são preliminares e estão sujeitos a revisões até a divulgação dos resultados definitivos do Censo Demográfico, que ainda está em campo.

Desigualdade sanitária e social é um dos destaques do estudo do Instituto Trata Brasil

De um lado, cidades em que quase todos os moradores têm acesso à água potável e a coleta de esgoto, além de altos níveis de investimento em obras de saneamento. Do outro, municípios em que apenas três a cada dez moradores têm acesso à coleta de esgoto. O “Ranking do Saneamento 2023” faz uma análise dos indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), ano de 2021, publicado pelo Ministério das Cidades. O relatório também traz uma análise das cidades que mais ganharam e mais perderam posições entre o ranking publicado em 2022.

A comparação das melhores e das piores cidades deixa clara a desigualdade.

  1. Acesso a água potável: enquanto 99,7% da população das 20 melhores cidades têm acesso às redes de água potável, nos 20 piores municípios, o número é de 79,6% da população;
  2. Acesso a coleta de esgoto: 97,7% da população nos 20 melhores municípios têm acesso aos serviços, enquanto somente 29,2% da população nos 20 piores municípios são atendidos;
  3. Tratamento de esgoto: enquanto o primeiro grupo tem, em média, 80,1% de cobertura de tratamento de esgoto, o grupo dos piores trata apenas 18,2% do esgoto produzido.

130 mil internações por doenças associadas à falta de saneamento em 2021

Dados do DataSUS 2021, presentes no Painel Saneamento Brasil, plataforma do Instituto Trata Brasil, mostram que houve quase 130 mil hospitalizações em decorrência de doenças de veiculação hídrica. A incidência foi de 6,04 casos por 10 mil habitantes, o que gerou gastos ao País de cerca de R$ 55 milhões. o Nordeste apresentou maior número de internações por doenças associadas à falta de saneamento, ou seja, mais de 59 mil hospitalizações.

De acordo com o documento, no Brasil, aproximadamente 35 milhões de habitantes não têm acesso à água potável e quase 100 milhões sofrem com a ausência de coleta de esgoto – enquanto apenas 51,2% dos esgotos do País são tratados, isto é, em termos de comparação, são mais de 5.522 piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento, despejadas na natureza diariamente.

O saneamento básico resulta em uma carga pesada de poluição, em grande parte devido ao mau gerenciamento de excrementos humanos, resíduos sólidos, águas pluviais. Os excrementos humanos são predominantemente eliminados em latrinas e, em grande parte, através da defecação a céu aberto. Essas condições sanitárias mal administradas têm impactos adversos na saúde pública. A ausência de acesso ao saneamento básico é uma questão muito extensa, que inclui esgoto a céu aberto, falta de acesso à água potável, ausência de coleta de lixo, questões básicas para a dignidade humana. A pobreza também amplia ainda mais o risco de contrair doenças como esquistossomose e outras parasitoses intestinais, assim como a leptospirose, tema que será abordado em uma entrevista na newsletter da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT).