
Modelos matemáticos serão estratégicos no combate ao coronavírus
Apesar de não estarem livres de erros, modelos matemáticos são um dos parâmetros utilizados para entender a evolução da pandemia
11/06/2020
No arsenal ao qual cientistas recorrem com o intuito de combater epidemias, os modelos matemáticos estão entre os itens estratégicos
Inúmeros modelos matemáticos estão sendo produzidos para prever o futuro da COVID-19 em todo o mundo. Mais do que estimar como será a disseminação da doença, o número de infectados e o percentual de mortes e hospitalizações, essas ferramentas permitem simular inúmeros cenários e, assim, testar a eficácia de intervenções que podem ser adotadas pelas autoridades de saúde para reduzir o contágio, como o fechamento de escolas, o cancelamento de eventos públicos e a restrição de viagens. Apesar de não estarem livres de erros, os modelos matemáticos se consolidam como métodos eficientes na projeção e no entendimento da pandemia.
Aprimorados ao longo de 250 anos, os modelos matemáticos de doenças infecciosas, apesar das incertezas, orientam as ações de combate à COVID-19. Um exemplo de sua importância na condução de medidas contra a pandemia foi a mudança de estratégia do Reino Unido após as projeções feitas pelo Imperial College, que construiu um modelo matemático para estimar a evolução e os impactos da COVID-19 em quase 200 países. O Dr. Neil Ferguson, chefe do programa de modelos matemáticos do Imperial College, reconheceu que podemos viver em um mundo muito diferente do que conhecemos durante um ano ou mais. Em relatório publicado no dia 8 de maio, especialistas da instituição afirmaram que o surto de COVID-19 no Brasil ainda está no começo, e a doença está fora de controle nas terras brasileiras. Os especialistas da Imperial College levaram em conta o problema da subnotificação para realizar seus cálculos, chegando em dados muito maiores de contágio do que aqueles notificados pelas autoridades.
O professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) Dr. Jefferson Cruz dos Santos Leite, doutor em matemática aplicada com ênfase em modelos matemáticos em epidemiologia, complementa que desde sempre e principalmente nos dias de hoje, fazer pesquisa científica e aplicá-la à realidade sem pensar nos números, dados, estatísticas e equações é muito improvável. Segundo ele, modelos matemáticos são uma ferramenta muito importante para orientar pesquisadores das mais diversas áreas permitindo a projeção e análise de diferentes cenários, contribuindo com elementos para a tomada de decisões sobre como equacionar problemas em saúde pública. “Os modelos aplicados a epidemias possibilitam, por exemplo, prever a velocidade de propagação de doenças por um território ou como podem afetar determinadas populações. É o caso do espalhamento da pandemia de COVID-19 pelo Brasil, que integram estudos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho da Universidade Federal do Piauí em parceria com vários colaboradores de outras universidades federais”, assinala. Para ele, mais do que estimar como será a disseminação da doença, o número de infectados e a proporção de mortes e hospitalizações, essas ferramentas permitem simular inúmeros cenários e, assim, testar a eficácia de intervenções que podem ser adotadas pelas autoridades de saúde para reduzir o contágio.
Outro exemplo é o estudo feito em Singapura a partir de modelos matemáticos complexos. A Universidade de Tecnologia e Design do país desenvolveu, em abril, um modelo que havia previsto o fim da epidemia no Brasil entre junho e agosto. Porém, de acordo com a última atualização feita pelo grupo de pesquisadores, que levou em consideração o avanço da COVID-19 e o aumento no número de óbitos, o vírus deve continuar sendo um problema até o dia 11 de novembro. A pesquisa diz ainda que o Brasil está vivendo o pico da doença e que ele deve durar até o fim de julho. A expectativa global também mudou: a ferramenta havia previsto o fim da pandemia no mundo até o dia 1 de dezembro. Agora, passou para 05 de janeiro de 2021. Segundo os pesquisadores de Singapura, a Espanha deve ser afetada pela doença até 15 de agosto, enquanto a data para o Reino Unido é 30 de setembro e Itália, 23 de outubro.
Os modelos matemáticos podem ser ferramentas úteis, mas não devem ser superestimados, principalmente para projeções de longo prazo ou características sutis, como data exata ou número de infecções. O Dr. Samir Bhatt, professor titular de Geoestatística, no Departamento de Epidemiologia em Doenças Infecciosas, do Imperial College London, reconhece que previsões de longo prazo realmente não são possíveis. “O futuro é incerto e ninguém deve interpretar previsões de dois meses para frente como se fossem a verdade. O que se faz é prover meios de ver o que poderia acontecer. Cientistas precisam ser transparentes com o que essas previsões significam e como devem ser interpretadas. Se o cenário apresentado não acontecer, tudo bem, isso por si nos dá muita informação em nosso entendimento. Dessa forma, ninguém deve considerar os modelos como Oráculos de Delfos, mas da mesma forma não são inúteis, são ótimos para preencher nosso conhecimento quando há falhas de informações”, explica.
Diferente de pandemias enfrentadas anteriormente pela humanidade, a da COVID-19ocorre num mundo baseado e relativamente organizado em dados. Neste cenário, as ciências exatas se mostram fundamentais para combater a doença por meio de modelos matemáticos. Estes modelos usam dados para prever a propagação do vírus e que podem ajudar autoridades a definir suas ações. “Como um experimento planejado nós compreendemos o processo de infecção da COVID-19 perfeitamente, como sabíamos exatamente quem iria infectar e etc e simulamos no futuro. Deixando de lado os argumentos contra o demônio de Laplace, mesmo que esse modelo fosse perfeito, se o governo de repente lançar ou retirar uma política, a previsão não seria errada, apesar de ser uma perfeita representação da realidade neste momento”, acrescenta o Dr. Bhatt. Para ele, o segredo é comunicação, ou seja, dizer às pessoas quais modelos podem ou não significar o que dizem.
Embora úteis, modelos matemáticos apresentam limitações
Os modelos matemáticos, apesar de úteis, também apresentam limitações. Para o professor Bhatt, todos os modelos são errados, mas alguns são úteis e outros são muito técnicos. “O modelo é apenas aquilo, ele jamais será a realidade. Então cabe ao pesquisador explicá-los para diferentes públicos, do leitor leigo ao matemático. É muito difícil saber se você está realmente se adequando ao sinal dos dados ou apenas ao ruído”, diz. Ainda segundo ele, esse é um assunto que existe em todos os campos da estatística e do aprendizado de máquinas. Cabe ao pesquisador garantir que seu modelo não está sobre ajustado.
O professor Leite lembra que modelo matemático consiste em um conjunto de equações que representam de forma quantitativa as hipóteses que foram usadas na construção do modelo, as quais se apoiam sobre o sistema real. Tais equações são resolvidas em função de alguns valores conhecidos ou previstos pelo modelo real e podem ser testadas através da comparação com os dados conhecidos ou previstos com as medidas realizadas no mundo real. As equações matemáticas de um modelo interpretam as hipóteses de um ponto de vista quantitativo, dando-nos a condição de deduzir consequências e mostrar onde estão os detalhes que devem ser aceitos ou recusados. “Quando falamos de modelos que simulam a realidade estamos tentando interpretar fenômenos que dependem também do comportamento humano, como no caso da COVID-19 e, dessa forma, qualquer alteração deste comportamento vai causar mudanças no modelo. E, de fato, esse é o maior problema. Por exemplo, fazemos previsões da propagação do vírus com vários níveis de isolamento social e esses níveis são muito variáveis e difíceis de prever porque cada pessoa tem um jeito de lidar com essas situações”, assinala.
Em relação às particularidades regionais, o professor Leite ressalta que quando olhamos para elas, percebemos que muitos dos problemas de falta de dados ou subnotificações podem ser minimizados se for observado um comportamento mais homogêneo dos dados e das pessoas. “A generalização dos modelos é um aspecto muito perigoso no momento da previsão e análise dos dados. O cálculo do número de reprodução da doença[1] (R0), por exemplo, é mais fácil de ser estimado em uma cidade do que em um país, uma vez que para R? diferentes, vai existir diferentes predições do modelo e isso pode ser bastante sensível. Os períodos podem ser diferentes, os impactos podem ser bem diferentes”, constata.
Modelo epidemiológico alternativo
Várias ressalvas devem ser levadas em consideração no uso dos modelos matemáticos, mas será que existe um modelo epidemiológico alternativo que possa ser mais apropriado? O professor de Geoestatística no Imperial College London enfatiza que como tudo na ciência, todos contruímos uns nos outros, e quanto mais modelos, mais abordagens diferentes, melhor para construir e embasar evidências para uma conclusão. “Contudo, um grande embargo é que nem todos os modelos são feitos iguais, e esses modelos precisam da diligência devida e devem ser vistos com a expertise da epidemiologia de doenças infecciosas, pois a regressão linear com pouco aprofundamento não deve ser considerada uma alternativa”, justifica o Dr. Bhatt.
Para o professor Leite, o modelo mais apropriado é aquele que melhor retrata os fatos anteriores e que melhor se adapta aos dados o da COVID-19, tenho a impressão que não existe um modelo universal, depende de cada região e medidas de prevenção dos governantes. Os modelos que incluem subjetividades em alguns parâmetros, como a lógica fuzzy, por exemplo, podem ser mais precisos em algumas situações. Mas sempre cabe ao pesquisador encontrar o melhor modelo de acordo com os dados disponíveis”, observa.
Questionado se a contribuição dos modelos matemáticos ainda é qualitativa, testando qual a melhor combinação dessas estratégias, o professor no Imperial College London acredita que a resposta seja um pouco de cada. “Modelos qualitativos nos permitem ter uma ideia sobre situações específicas, mas são predominantemente quantitativas. Nós usamos modelos para testar hipóteses enquanto estimando significância estatística. Aqui é onde a incerteza é chave: precisamos considerar quantas fontes forem possíveis e fatorá-las em nossas tomadas de decisão”, detalha o professor Bhatt.
Para o professor Leite, o método quantitativo é conclusivo, e tem como objetivo quantificar um problema e entender a dimensão dele. Em suma, esse tipo de pesquisa fornece informações numéricas sobre o comportamento do objeto estudado. Já a pesquisa qualitativa tem como foco entender o comportamento do objeto estudado, ao invés de mensurar e medir. “Acredito que a junção dos dois é o ideal”, destaca ao frisar que, com o desenvolvimento de novas ferramentas matemáticas e também da área de saúde, os modelos matemáticos começaram a ser muito mais que uma análise quantitativa dos dados. “Começamos a ver uma interdisciplinaridade muito grande de áreas que nos levam a transformar os modelos em ferramentas tanto qualitativas como quantitativas. As variáveis hoje podem ser vistas de várias maneiras e terem várias interpretações, cabe aos especialistas interpretá-las da melhor maneira possível”, completa. Para ele, a matemática é muito precisa, se os parâmetros estimados e as ferramentas forem usados de forma correta, certamente, haverá um cenário definido de forma acertada. “Mas cabe aos especialistas interpretarem se estes são plausíveis e como deveremos agir para evitarmos ou passarmos por eles”, reforça.
Modelagem matemática diante da epidemia que avança rapidamente
A modelagem matemática é uma ferramenta que agrega todas as ciências necessárias para a descrição e previsão do problema estudado. Todas as ferramentas de combate à propagação de doenças e desenvolvimento de medicações, por exemplo, são desenvolvidas levando em consideração modelos matemáticos para validarem o experimento. O Dr. Leite recorda que a matemática sempre foi necessária, mas, sem sombra de dúvidas, essa pandemia foi um estopim que causou toda a exposição da necessidade de modelos matemáticos para resolução de problemas, tanto do cotidiano como os mais complexos. “A ciência sempre deveria ser o pilar de governos minimamente preocupados com o desenvolvimento social e econômico de seu país ou estado”, atenta o professor.
Vários estudos usando modelos matemáticos surgiram em todo o mundo, mas será que algum deles consegue responder a pergunta do momento: quando a pandemia vai acabar? Para o professor Bhatt, do Imperial College, a resposta é não! Segundo ele, nada pode responder a essa pergunta. “Mesmo as suposições de imunização de massa estão questionadas, dado que a reinfecção pode ser possível. O modelo pode dar uma indicação, mas quase certamente estará errado, assim como qualquer outra projeção de longo prazo”, frisa. Em sua opinião, essa questão é bem maior do que parece – qual país, em que circunstâncias, quantos deixaremos morrer, qual será o efeito na dinâmica global – e, quando alguém pensa melhor sobre isso parece cada vez mais que será impossível responder sem pedir por muitas questões difíceis de responder. “Dessa forma, eu não acho que a modelagem irá nos dizer quando será o fim, mas pode nos ajudar a entender como será o fim”, conclui o Dr. Bhatt.
Por fim, o professor Leite pondera que a vacina pode demorar cerca de um ano e meio para chegar ao mercado e, dessa forma, temos de estar preparados com o novo normal até que uma vacina ou tratamento eficaz apareça. Ele adverte que as previsões de pico são apenas um primeiro momento de atenção, uma vez que enquanto não houver vacina teremos muitas pessoas doentes e vários picos, menores logicamente, devem surgir. “Reitero a preocupação de todos com o futuro do mundo como ele é hoje e que devemos ter a consciência de que nunca será como antes. Temos de nos adaptar e aprender com esse novo mundo que está por vir. Nossas relações em termos de comportamento social vão mudar e, talvez, seja uma grande oportunidade de sermos mais humanos. O desenvolvimento de uma sociedade só é feito se estivermos focados nas pessoas”, encerra.
Saiba mais:
A mathematical model for the spatiotemporal epidemic spreading of COVID19
High Contagiousness and Rapid Spread of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2
[1] Número de reprodução básica de uma doença transmissível é o número de casos secundários a um caso índice onde todos os componentes da população são suscetíveis.