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A Nova Medicina TropicalA Nova Medicina Tropical

19/08/2011

A criação do conceito de doenças dos trópicos para designar as doenças que ocorriam nas colônias advém de Patrick Manson e da Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, no finalzinho do século XIX. O nosso campo de interesse conhecido como Medicina Tropical nasceu assim, do seio do Império Britânico, e daí se espalhou para outros impérios coloniais e para as próprias nações tropicais, colônias ou satélites econômicas e culturais das metrópoles.

O conceito moderno, a despeito dos esforços de definição de Manson e dos intelectuais que estudam o tema, continua vago e elusivo. Esta imprecisão fica muito clara na definição da Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Tropical_medicine): o ramo da medicina que lida com problemas que ocorrem unicamente, ou são mais disseminados, ou têm sido mais difíceis de serem controlados nas regiões tropicais. Neste convés estão várias doenças que foram transmitidas, mas não mais são, em regiões tão “subtropicais” quanto Londres (com cólera) e Nova Iorque (com malária) e, obviamente, doenças que hoje são, mas não mais serão transmitidas por lá no futuro, embora continuem a ser exclusivamente nas regiões tropicais propriamente ditas, como hoje o é a malária, deixa de ser a dengue e talvez venha a ser o HIV/AIDS e não é o calazar.

Este jogo de palavras representa bem a Medicina Tropical –  um verdadeiro Gato Cheshire. É, sem ser, e não é, sendo, e aqui e ali aparecendo, desaparecendo e então reaparecendo, para a cada hora ser chamada de emergente e de reemergente, de negligenciada ou simplesmente de geográfica, e, de forma quase pornográfica,  de medicina do Terceiro Mundo, para assumir a cumplicidade explícita com suas origens coloniais.

Claro que nós consentimos e, portanto, não é este um caso de processo. Nós também a chamamos de Medicina Tropical, como declara o nome de nossa Sociedade, embora confusos no entendimento do significado e ávidos por repetir o que se diz por lá. É hora, pois, de nós, tropicais, darmos o significado que precisamos, pois todo o significado é dado por seres pensantes, ativos ou passivos, pela ciência ou religião, pela mídia e pelo capital e, agora, pelas fontes virtuais de informação.

O que é, então, para nós, Medicina Tropical?

Começando pela negativa. Não somente doenças negligenciadas, pois, embora a maior parte o seja, o HIV/AIDS não é; não são as emergentes, como certas epidemias de febres hemorrágicas e a H1N1 não são tropicais; nem reemergentes como é o calazar, pois a esquistossomose e a doença de Chagas são tropicais e não reemergem. Não são geográficas posto que, subentendida a restrição a espaços geográficos, muitas o são, mas outras não são tropicais como a doença de Lyme e a tularemia. E não são infecciosas, para a surpresa de muitos, pois a definição e a percepção “doenças tropicais” não está ligada à etiologia, mas sim ao espaço, como o são a anemia falciforme e a desnutrição. Mas, são doenças tropicais de fato, entre os Trópicos de Câncer e Capricórnio? Muitas na realidade não são, como a peste, a difteria e a dengue. Nenhum ponto de corte, afinal. Nenhum corte epistemológico. Nenhuma fronteira, nem geográfica, nem conceitual.

Ainda resta a lógica indutiva do que é, e não do que não é, para se entender melhor o conceito de Medicina Tropical. Voltemos assim, ao princípio, a Manson, aos colonizadores. Obviamente que o protótipo é a malária: escassa na metrópole, devastadora nas colônias, rural, paisagística, ecológica, delimitada, tratável, controlável. Ela e as similares, febre amarela, esquistossomose, doença do sono. Tragédia dos indígenas, embora limitantes da invasão colonial. Paradigmas ecológicos: trópico, rural, silvestre. Este é o conceito, embora não restritivo. Evidentemente, a idéia é figurativa e ultrapassa os limites dos conceitos, mais conduz a novos insights. Afinal, entre Patrick Manson e seu Império, a partilha do mundo, as Grandes Guerras, a liberdade da África e a globalização, muito se passou.

Agora, o mundo não é mais rural e não é mais tão estático. Em um dos mais impressionantes movimentos da humanidade, as pessoas abandonaram maciçamente o campo e mudaram-se para os espectros do que se chama de cidades nos trópicos. Enquanto o campo, esvaziado, se transforma em espaço econômico plenamente inserido na economia capitalista global, com plantações e pastos transformando ou destruindo as florestas e os ecossistemas das doenças, os produtores de subsistência fazem a sua diáspora rumo ao inferno das cidades. O outro ecossistema, o outro lado. Não mais a jungle, não mais os pântanos, não mais os reservatórios silvestres, os macacos, as raposas, os tatus. Vivem agora no horror das favelas, em uma estrutura social destruída e refazendo-se no meio de uma cultura de corrupção inabalável que lança os sempre pobres na nova fome, na fome com esperança, na fome do emprego mas que na sua escassez se transforma na luta pela sobrevivência a qualquer custo, exatamente onde espreitam o crime e a violência. Os esgotos transbordando nas ruas imundas, as montanhas de lixo, o espaço mínimo, a superpopulação, o super-contato, a nova fauna, os novos mangues. Tuberculose, dengue, calazar e leptospirose em surtos letais agora cortejam a dama, a AIDS, a nova rainha da Medicina Tropical.

É neste espaço que surgem as novas doenças tropicais. Menos infecciosas, e mais explosivas. Em um espaço onde confluem os bens e a sedutora onda tecnológica em velocidade vertiginosa, onde as regras e as leis não se impõem, onde a infra-estrutura não se refaz e o estado não existe, onde os vestígios da base social são substituídos pela vertigem do consumo, onde os cavalos motorizados, ensandecidos, geram a brutal onda de morte e de lesões permanentes como um tsunami espraiando-se por todo o Trópico, por todas as suas cidades.

Este é o Novo Mundo. O Novo Mundo tropical, muito pior, muito mais devastador do que Aldous Huxley jamais imaginou. Este é o espaço das novas doenças tropicais e é para este mundo que a Nova Medicina Tropical deve se voltar. Não mais apenas para as românticas doenças dos confins rurais, mas para o centro do palco, as desordenadas cidades dos trópicos. É este o nosso desafio. Devemos ceder algo em nossa cultura de micróbios, acabar a exclusividade da luta anti-microbiana, e voltar a atenção para a psicopatologia do sexo, para a arquitetura do abjeto, para o trajeto das balas e para os jovens galopando motocicletas.

A criação do conceito de doenças dos trópicos para designar as doenças que ocorriam nas colônias advém de Patrick Manson e da Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, no finalzinho do século XIX. O nosso campo de interesse conhecido como Medicina Tropical nasceu assim, do seio do Império Britânico, e daí se espalhou para outros impérios coloniais e para as próprias nações tropicais, colônias ou satélites econômicas e culturais das metrópoles.

O conceito moderno, a despeito dos esforços de definição de Manson e dos intelectuais que estudam o tema, continua vago e elusivo. Esta imprecisão fica muito clara na definição da Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Tropical_medicine): o ramo da medicina que lida com problemas que ocorrem unicamente, ou são mais disseminados, ou têm sido mais difíceis de serem controlados nas regiões tropicais. Neste convés estão várias doenças que foram transmitidas, mas não mais são, em regiões tão “subtropicais” quanto Londres (com cólera) e Nova Iorque (com malária) e, obviamente, doenças que hoje são, mas não mais serão transmitidas por lá no futuro, embora continuem a ser exclusivamente nas regiões tropicais propriamente ditas, como hoje o é a malária, deixa de ser a dengue e talvez venha a ser o HIV/AIDS e não é o calazar.

Este jogo de palavras representa bem a Medicina Tropical –  um verdadeiro Gato Cheshire. É, sem ser, e não é, sendo, e aqui e ali aparecendo, desaparecendo e então reaparecendo, para a cada hora ser chamada de emergente e de reemergente, de negligenciada ou simplesmente de geográfica, e, de forma quase pornográfica,  de medicina do Terceiro Mundo, para assumir a cumplicidade explícita com suas origens coloniais.

Claro que nós consentimos e, portanto, não é este um caso de processo. Nós também a chamamos de Medicina Tropical, como declara o nome de nossa Sociedade, embora confusos no entendimento do significado e ávidos por repetir o que se diz por lá. É hora, pois, de nós, tropicais, darmos o significado que precisamos, pois todo o significado é dado por seres pensantes, ativos ou passivos, pela ciência ou religião, pela mídia e pelo capital e, agora, pelas fontes virtuais de informação.

O que é, então, para nós, Medicina Tropical?

Começando pela negativa. Não somente doenças negligenciadas, pois, embora a maior parte o seja, o HIV/AIDS não é; não são as emergentes, como certas epidemias de febres hemorrágicas e a H1N1 não são tropicais; nem reemergentes como é o calazar, pois a esquistossomose e a doença de Chagas são tropicais e não reemergem. Não são geográficas posto que, subentendida a restrição a espaços geográficos, muitas o são, mas outras não são tropicais como a doença de Lyme e a tularemia. E não são infecciosas, para a surpresa de muitos, pois a definição e a percepção “doenças tropicais” não está ligada à etiologia, mas sim ao espaço, como o são a anemia falciforme e a desnutrição. Mas, são doenças tropicais de fato, entre os Trópicos de Câncer e Capricórnio? Muitas na realidade não são, como a peste, a difteria e a dengue. Nenhum ponto de corte, afinal. Nenhum corte epistemológico. Nenhuma fronteira, nem geográfica, nem conceitual.

Ainda resta a lógica indutiva do que é, e não do que não é, para se entender melhor o conceito de Medicina Tropical. Voltemos assim, ao princípio, a Manson, aos colonizadores. Obviamente que o protótipo é a malária: escassa na metrópole, devastadora nas colônias, rural, paisagística, ecológica, delimitada, tratável, controlável. Ela e as similares, febre amarela, esquistossomose, doença do sono. Tragédia dos indígenas, embora limitantes da invasão colonial. Paradigmas ecológicos: trópico, rural, silvestre. Este é o conceito, embora não restritivo. Evidentemente, a idéia é figurativa e ultrapassa os limites dos conceitos, mais conduz a novos insights. Afinal, entre Patrick Manson e seu Império, a partilha do mundo, as Grandes Guerras, a liberdade da África e a globalização, muito se passou.

Agora, o mundo não é mais rural e não é mais tão estático. Em um dos mais impressionantes movimentos da humanidade, as pessoas abandonaram maciçamente o campo e mudaram-se para os espectros do que se chama de cidades nos trópicos. Enquanto o campo, esvaziado, se transforma em espaço econômico plenamente inserido na economia capitalista global, com plantações e pastos transformando ou destruindo as florestas e os ecossistemas das doenças, os produtores de subsistência fazem a sua diáspora rumo ao inferno das cidades. O outro ecossistema, o outro lado. Não mais a jungle, não mais os pântanos, não mais os reservatórios silvestres, os macacos, as raposas, os tatus. Vivem agora no horror das favelas, em uma estrutura social destruída e refazendo-se no meio de uma cultura de corrupção inabalável que lança os sempre pobres na nova fome, na fome com esperança, na fome do emprego mas que na sua escassez se transforma na luta pela sobrevivência a qualquer custo, exatamente onde espreitam o crime e a violência. Os esgotos transbordando nas ruas imundas, as montanhas de lixo, o espaço mínimo, a superpopulação, o super-contato, a nova fauna, os novos mangues. Tuberculose, dengue, calazar e leptospirose em surtos letais agora cortejam a dama, a AIDS, a nova rainha da Medicina Tropical.

É neste espaço que surgem as novas doenças tropicais. Menos infecciosas, e mais explosivas. Em um espaço onde confluem os bens e a sedutora onda tecnológica em velocidade vertiginosa, onde as regras e as leis não se impõem, onde a infra-estrutura não se refaz e o estado não existe, onde os vestígios da base social são substituídos pela vertigem do consumo, onde os cavalos motorizados, ensandecidos, geram a brutal onda de morte e de lesões permanentes como um tsunami espraiando-se por todo o Trópico, por todas as suas cidades.

Este é o Novo Mundo. O Novo Mundo tropical, muito pior, muito mais devastador do que Aldous Huxley jamais imaginou. Este é o espaço das novas doenças tropicais e é para este mundo que a Nova Medicina Tropical deve se voltar. Não mais apenas para as românticas doenças dos confins rurais, mas para o centro do palco, as desordenadas cidades dos trópicos. É este o nosso desafio. Devemos ceder algo em nossa cultura de micróbios, acabar a exclusividade da luta anti-microbiana, e voltar a atenção para a psicopatologia do sexo, para a arquitetura do abjeto, para o trajeto das balas e para os jovens galopando motocicletas.