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Perigoso ato de caçar e consumir carne de tatu

No Brasil, a caça a tatus é uma atividade de risco para infecções, mas o perigo está também na manipulação e no consumo da carne

14/04/2022
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O ciclo de infecção entre tatus e homem pode ocorrer pelo contato com sangue, por aerossol ou a partir de solo contaminado

Em 2017, o caso de três pessoas de uma mesma família residente em Serra Talhada, Sertão do Pajeú (PE), diagnosticadas com coccidioidomicose acendeu um alerta para essa doença emergente. Foi a primeira vez em que a enfermidade foi notificada no estado. A doença havia sido diagnosticada principalmente no Piauí e no Ceará, com poucos casos no Maranhão e raros na Bahia. No Piauí, a letalidade da doença foi de aproximadamente 8%. A maior dificuldade em diagnosticar a infecção consiste em não considerá-la, uma vez que a coccidioidomicose pode ser facilmente confundida com outras doenças. Muitos casos podem ser erroneamente diagnosticados como pneumonia inespecífica (os casos mais agudos) ou tuberculose (casos com sintomatologia mais arrastada) e outros são certamente subdiagnosticados, já que a doença é pouco conhecida pelos médicos e bioquímicos do Brasil e do Nordeste.

Mas afinal, o que as micoses sistêmicas, como a coccidioidomicose e a paracoccidioidomicose tem a ver com o tatu? A Dra. Lisandra Damasceno, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que a coccidioidomicose, causada pelo Coccidioides spp., acomete pessoas que frequentemente realizam a caça do tatu, pois, os artroconídios, estruturas filamentosas do fungo, encontradas no solo podem ser inalados durante essa prática. O indivíduo ao remover o solo para encontrar o animal, dispersa partículas de poeira juntamente com o fungo, e fica exposto à inalação dessas partículas, levando a contaminação, destaca.

No Brasil, em mais de 90% dos casos, a doença tem sido diagnosticada em indivíduos que realizaram caçadas a tatus (Dasypus sp) com exposição à poeira do habitat desses animais (tocas). Cães participantes das caçadas também adoecem com frequência. O pulmão é a porta de entrada do fungo e nos casos com sintomatologia mais expressiva, febre, tosse mais habitualmente seca e dor torácica são as manifestações mais comuns. Hipersensibilidade como artralgias e lesões cutâneas do tipo eritema nodoso ou multiformes também são frequentes. O fungo pode disseminar para praticamente qualquer órgão, especialmente pele, ossos, articulações e meninges.

“Já a paracoccidioidomicose, causada pelo Paracoccidioides spp., também acomete pessoas que manuseiam o solo, porém este fungo tem sido mais frequentemente observado nas regiões Sul e Sudeste, e em cidades do Norte. No Nordeste poucos casos têm sido observados, principalmente em regiões serranas”, ressalta a Dra. Damasceno. Ainda segundo ela, também nesta micose, o tatu abriga o fungo (reservatório), mas não transmite o fungo, através da ingestão da carne para o ser humano. “Este fungo quando inalado pode causar doença pulmonar principalmente em adultos. Agricultores e plantadores de café ou cana-de açúcar são os indivíduos mais susceptíveis a adoecer por Paracoccidioidomicose”, acrescenta a Dra. Damasceno.

O diagnóstico destas duas micoses é realizado através da identificação e isolamento do fungo em secreções respiratórias, ou através de sorologia,  exame que detecta anticorpos no sangue dos indivíduos que tiveram contato com o fungo. A Dra. Damasceno é categórica ao afirmar que até o momento, não há nenhum estudo que comprove que a ingestão da carne de tatu leva ao adoecimento de indivíduos por doenças causadas por fungos. “Não há transmissão de micoses pulmonares de animais para o homem”, enfatiza.

Risco no consumo e na manipulação da carne

No Brasil, alguns cardápios regionais incluem carnes que vão além das tradicionais vaca, frango e porco. Em muitas regiões, principalmente rurais e no interior, é comum o consumo de carne de animais selvagens, sendo o tatu uma das espécies mais procuradas. Estudos apontam que grande parte das doenças infecciosas emergentes é representada por patógenos causadores de zoonoses e, destes, 71,8% têm origem em animais silvestres. O perigo para a população é que o tatu é um reservatório para vários microrganismos, como bactérias, fungos e protozoários.

Em 2018, um estudo publicado na revista PLOS Neglected Tropical Diseases intitulado Evidence of zoonotic leprosy in Pará, Brazilian Amazon, and risks associated with human contact or consumption of armadillos”   alertava que mais da metade dos tatus selvagens que habitam a Amazônia brasileira testados eram portadores da bactéria que causa a hanseníase,  Mycobacterium leprae. De acordo com os cientistas John Spencer, Colorado State University (EUA), e Moises Silva, Universidade Federal do Pará (UFPA), com quem a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) conversou há época, as pessoas no Brasil, particularmente nas áreas rurais, caçam e matam tatus como fonte alimentar. Na pequena cidade de Belterra, no oeste do Pará, a pesquisa com 146 moradores mostrou que cerca de 65% da população tinha algum contato com tatus, por meio da caça, manipulação para preparo e posterior ingestão da carne. O pesquisador revelou que inicialmente havia dúvidas se a exposição a tatus poderia afetar as pessoas que vivem em uma área hiperendêmica, como o estado do Pará, já que existe tanta exposição ao M. Leprae entre humanos, e mais de 60% da população apresentava níveis elevados de anticorpos contra o antígeno PGL-I do M. Leprae. “Mas quando vimos um título de anticorpos muito maior no grupo que comia tatus, a maioria, e que houve quase duas vezes mais risco de ter a doença devido a esse comportamento, isso foi uma forte evidência de que a hanseníase pode ser uma doença zoonótica espalhada por tatus para os seres humanos, assim como no sul dos Estados Unidos”, acrescentou. Relembre a entrevista  realizada em 2018.

De acordo com a Dra. Damasceno, este foi o único estudo que constatou a bactéria que causa hanseníase presente em vísceras como o fígado e baço, dentre os animais capturados em nessa região do Pará. “Posteriormente, os pesquisadores avaliaram alguns moradores da mesma região e constataram uma frequência alta de pessoas que tinham anticorpos no sangue para a mesma bactéria, sugerindo uma possível transmissão zoonótica, principalmente durante a caça, o manuseio e preparo (limpeza da carne) do animal para o consumo”, destaca. Os autores também destacaram que a transmissão da bactéria pela ingestão da carne quando cozida é improvável, uma vez que o cozimento seria um fator que levaria a morte da bactéria”, assinala. Entretanto, a professora atenta que naquela região há consumo de ceviche, um prato feito com a carne crua de tatu (com vísceras como o fígado que têm alta carga de bactérias da hanseníase), o que poderia estar relacionado ao maior número de pessoas com anticorpos para a bactéria.

A infecção pelo Trypanosoma cruzi é outro problema para quem consome ou manipula carne de animais silvestres. O Dr. André Roque, do Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), esclarece que o T. cruzi é um parasito multi-hospedeiro capaz de infectar centenas de espécies de mamíferos, incluindo o homem. “A doença nesses animais é chamada de Tripanossomíase Americana, enquanto no homem é conhecida por doença de Chagas. Uma vez estando no hospedeiro, o T. cruzi se apresenta de duas formas: amastigota, forma intracelular presente nos tecidos e que pode estar em qualquer célula nucleada, por exemplo, na musculatura; e a tripomastigota sanguícola. A primeira forma, não apresenta um cisto ou qualquer outra forma de resistência, ou seja, através de qualquer processo de cozimento, por mais simples que seja, é possível a sua eliminação”, detalha o professor.

Mas o grande perigo, de acordo com o pesquisador, se dá na manipulação do animal devido à tripomastigota sanguícola, quando a pessoa está com sangue fresco nas mãos e há o contato com mucosas oral, nasal ou ocular, ou ainda com algum ferimento que possa ter nas mãos. “Além disso, a falta de cuidados com os utensílios também é um problema, já que a pessoa pode utilizar a mesma faca que cortou a caça em um legume ou outro alimento que vai ser consumido cru”, alerta o professor. Há risco ainda quando a higienização não é realizada de forma adequada, por exemplo, ao se colocar alimentos que podem ser ingeridos crus no local onde a carne foi cortada. “É assim que se transporta a forma infectante tripomastigota sanguícola. Esse é um importante ponto para transmissão, onde está o risco de contaminação”, frisa o Dr. Roque.

Considerando que o consumo de carne de caça é um hábito comum das populações rurais do Brasil, a transmissão do parasito por essa via é uma possibilidade que precisa ser considerada. A quem consome carne de caça, fica o alerta para que sigam medidas de higiene e cuidado durante a manipulação da carne. O Dr. Roque recorda ainda que os tatus também são hospedeiros de espécies de Leishmania, causadores das Leishmanioses. A transmissão ocorre quando o flebotomíneo (mosquito palha) se alimenta de um animal infectado e posteriormente, pica o homem em uma nova alimentação sanguínea.

Por fim, a Dra. Damasceno lembra que a caça de animal silvestre é crime ambiental, e o consumo da carne destes animais não é apropriada, pois devido à variedade de microrganismos que o tatu abriga, infecções de transmissão oral podem ocorrer, principalmente as gastroenterites agudas causadas por bactérias.