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Pesquisa brasileira traz informações inéditas a respeito do diagnóstico diferencial entre esporotricose e leishmaniose

Artigo apresenta diferenças dermatoscópicas entre lesões de esporotricose e leishmaniose

08/08/2023

As duas primeiras imagens demonstram como as duas doenças podem ser parecidas. A terceira imagem trata-se de esporotricose simulando leishmaniose. E a útlima, leishmaniose com aspecto esporotricóide

Leishmaniose e esporotricose são doenças que, embora distintas em suas causas e sintomas, podem ser confundidas com frequência devido a algumas semelhanças clínicas. Ambas são infecções que afetam seres humanos e animais, e suas manifestações podem variar de acordo com a região geográfica e o sistema imunológico do paciente. Elas podem causar lesões cutâneas como, úlceras, nódulos, placas ou lesões verrucosas. O diagnóstico correto pode ser difícil sem a realização de exames laboratoriais específicos. Aspectos evolutivos e história epidemiológica podem contribuir para o diagnóstico adequado bem como a apresentação dos aspectos cicatriciais.

Na histopatologia também pode haver confusão. Ambas são doenças granulomatosas em que a presença dos agentes etiológicos (amastigotas ou estruturas fúngicas) muitas vezes podem não ser observados, e quando presentes podem ser confundidos.

Para diferenciar as duas doenças, que se confundem no ponto de vista clínico e histopatológico, o Dr. Marcelo Rosandiski Lyra orientou uma tese de mestrado que procurou estabelecer critérios que ajudassem o médico dermatologista ou infectologista, ou outro profissional que domine a técnica da dermatoscopia, a diferenciar a esporotricose e a leishmaniose. O artigo intitulado “Description of the dermatoscopic features observed in sporotrichosis and American cutaneous leishmaniasis in a reference center in Rio de Janeiro, Brazil“, aceito e em processo de impressão, vai ser publicado no próximo número dos Anais Brasileiros de Dermatologia.

Para saber mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) entrevistou o Dr. Marcelo Rosandiski Lyra, dermatologista do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), que trabalha no laboratório de leishmaniose no Rio de Janeiro, onde os casos de esporotricose são muito frequentes e segundo ele, tem recebido pacientes com diagnóstico com suspeita clínica de leishmaniose quando se trata de esporotricose.

Confira a entrevista na íntegra.

SBMT: Por que a diferenciação entre as duas doenças, esporotricose e leishmaniose, é um tema importante? As duas são doenças frequentes na assistência em dermatologia e em infectologia?

Dr. Marcelo Rosandiski Lyra: O médico de um modo geral associa a esporotricose a forma de linfangite nodular ascendente; entretanto em cerca de 30% dos casos de esporotricose as lesões são únicas (forma fixa), por outro lado a leishmaniose habitualmente é relacionada a presença da úlcera, mas pode haver grande variedade de apresentações quanto ao número e morfologia das lesões. A diferenciação das duas doenças é muito importante porque uma pode imitar a outra, por exemplo, algumas lesões de esporotricose vão ter aspecto ulcerado semelhante à leishmaniose. A característica mais comum da esporotricose é apresentar várias lesões gomosas que seguem o trajeto linfático. Entretanto, eventualmente, pacientes com leishmaniose também podem simular o aspecto esporotricóide, com nódulos surgindo a partir da lesão ulcerada ou verrucosa primária. Ou seja, uma doença pode ter uma apresentação dermatológica muito semelhante à outra.

Além disso, ambas as doenças coexistem em determinadas regiões, como por exemplo, aqui no Rio de Janeiro, assim como em outras regiões do Brasil. Por isso, é fundamental o médico saber diferenciá-las. No Rio de Janeiro a é especialmente importante porque o número de casos de esporotricose aumentou exponencialmente nos últimos anos e não é incomum eu receber pacientes no ambulatório de leishmaniose com essa suspeita diagnóstica, mas que, na verdade, trata-se de casos de esporotricose.

SBMT: Em que a dermatoscopia acrescenta ao exame clínico tradicional?

Dr. Marcelo Rosandiski Lyra: A dermatoscopia é um exame de imagem complementar ao exame clínico que, através de um aparelho manual, permite amplificar estruturas morfológicas presentes nas camadas da pele não visíveis ao olho nu. Não se trata de uma lente de aumento, pois o exame permite enxergar além da superfície da pele. Esse método atualmente tem sido muito utilizado por dermatologistas, mas qualquer médico com treinamento é capaz de reconhecer e fazer bom uso da dermatoscopia. O reconhecimento dessas estruturas que encontramos na pele possibilita ao médico detectar padrões que possam ajudar no diagnóstico diferencial entre doenças clinicamente semelhantes, neste caso, esporotricose e leishmaniose.

SBMT: Os achados relatados no seu estudo contribuíram para a diferenciação clínica entre as duas doenças?

Dr. Marcelo Rosandiski Lyra: Creio que os achados do estudo trouxeram luz a um assunto pouco estudado. Quase todos os trabalhos que utilizaram dermatoscopia para avaliar a leishmaniose eram de pacientes oriundos do Velho Mundo. E vale lembrar que a doença que temos no Brasil, na América Latina, a Leishmaniose Tegumentar Americana, é diferente daquela observada nos países do Velho Mundo, como Europa, África e Ásia. Já em relação à esporotricose, os relatos ainda eram mais raros. Na época do estudo, não chegamos a ver quatro publicações com relatos de casos de dermatoscopia e esporotricose. Nesta tese de mestrado, foram avaliadas 74 lesões de leishmaniose e 24 lesões de esporotricose, em três momentos distintos, antes, durante e após o tratamento. Descrevemos os achados dermatoscópicos nesses três momentos, o que permitiu observar algumas estruturas dermatoscópicas, até então, não descritas para essas duas doenças. Mas talvez a contribuição mais relevante não seja o achado de uma única estrutura isoladamente, mas sim o reconhecimento de um padrão global dermatoscópico, ou seja, um padrão de como essas estruturas se organizam na esporotricose e na leishmaniose. E como esse padrão tende a se modificar evolutivamente assumindo características peculiares a cada uma dessas doenças. Essa talvez tenha sido a maior contribuição do estudo.

O reconhecimento dos padrões de organização dessas estruturas dermatoscópicas na leishmaniose e na esporotricose pode ajudar o médico a diferenciar as duas doenças, que são muito parecidas do ponto de vista clínico. Isso é importante porque nem sempre o médico que vai tratar o paciente com esporotricose ou leishmaniose está em um grande centro onde tem a possibilidade de fazer biópsia de pele, cultura de fungos, cultura para leishmania, ou tem acesso ao método molecular. Ou seja, mesmo estando em um lugar muito afastado, com auxílio de um aparelho manual, a correta interpretação dos achados dermatoscópicos pode ajudar na tomada de decisão com relação ao diagnóstico de forma mais acertiva. Deixo claro que os achados não são patognomônicos, o exame dermatoscópico é um método complementar diagnóstico e deve ser interpretado junto com a clínica, mas certamente contribui na tomada de decisão entre o diagnóstico de uma ou outra doença.

SBMT: A demora no diagnóstico ou um diagnóstico inicialmente equivocado traz quais riscos aos pacientes?

Dr. Marcelo Rosandiski Lyra: É claro que quando se retarda o diagnóstico de uma doença que é tratável, isso possibilita que ela evolua e naturalmente traga complicações que não iriam ocorrer se o paciente fosse tratado com mais agilidade. A dermatoscopia contribui para um correto diagnóstico em lugares onde há recursos limitados, pouco acesso a exames de laboratório e, dessa forma, ela pode contribuir na tomada de decisão de um correto diagnóstico.

SBMT: Os tratamentos hoje existentes para ambas as doenças são satisfatórios? Considerando possibilidade de cura, comodidade de uso das medicações, entre outros fatores?

Dr. Marcelo Rosandiski Lyra: Os tratamentos disponíveis para a leishmaniose estão longe de serem ideais. Os medicamentos utilizados hoje são intramusculares ou intravenosos e são extremamente tóxicos, são hepatotóxicos, nefrotóxicos, cardiotóxicos. Por exemplo, o antimoniato de meglumina, que é a pedra angular do tratamento da leishmaniose, começou a ser utilizado em 1912, ou seja, estamos falando de um fármaco utilizado há mais de 100 anos. A evolução em termos de tratamento para leishmaniose ainda é muito lenta. Recentemente surgiram novas alternativas, temos a miltefosina, não cardiotóxico e que por ser de uso oral é uma opção interessante, mas que também tem seus pontos negativos, além do alto custo é um fármaco teratogênico, ou seja, pode levar a malformação fetal. Outra abordagem é utilizar os mesmos remédios de forma mais racional, como por exemplo, a modalidade de tratamento intralesional com o antimoniato de meglumina, que se mostrou mais barata, eficaz e menos tóxica que os tratamentos convencionais.

Com relação à esporotricose, o itraconazol é o medicamento de primeira escolha, relativamente barato e bem tolerado. Outra alternativa, como a terbinafina, segue a mesma linha, não é um tratamento tão caro e sendo igualmente bem tolerado pelo paciente. Também temos a solução saturada de iodeto de potássio como alternativa. De um modo geral, diria que a esporotricose tem um tratamento mais seguro em termos de toxicidade do que a leishmaniose, mas cabe ressaltar que esses antifúngicos que são utilizados para tratar a esporotricose não foram desenvolvidos com esta finalidade, e sim para tratar outras doenças fúngicas e. naturalmente, a esporotricose acabou “pegando carona” no desenvolvimento desses fármacos.

SBMT: Podemos dizer que as duas doenças se encaixam no rol das doenças infecciosas negligenciadas?

Dr. Marcelo Rosandiski Lyra: Não há dúvida que a leishmaniose é uma doença negligenciada, que acomete pessoas pobres, de países em desenvolvimento, não despertando grande interesse em investimentos por parte da indústria farmacêutica em busca de novos medicamentos. Ou seja, a leishmaniose não dá retorno financeiro aos laboratórios. Já a esporotricose é um pouco diferente: embora a maior parte da população que tenha esporotricose ainda seja de pessoas pobres, ela tem relação com determinadas atividades e profissões, a exemplo de médicos veterinários, que entram em contato gatos, os maiores transmissores da doença, e pessoas que trabalham em ambiente florestal ou rural. Aqui no Rio de Janeiro a doença acomete principalmente as pessoas que possuem ou cuidam de gatos. Por isso, ela não é uma doença exclusivamente limitada àquela população de renda menos favorecida.

SBMT: Gostaria de acrescentar algo?

Dr. Marcelo Rosandiski Lyra: Gostaria de agradecer a oportunidade de divulgar o trabalho e lembrar que ele não é definitivo no que diz respeito ao esclarecimento, a distinção entre a esporotricose e a leishmaniose, mas a dermatoscopia é mais uma ferramenta que o médico pode fazer uso para ajudá-lo no diagnóstico entre essas duas doenças que podem ser tão semelhantes. A dermatoscopia hoje é praticamente realizada somente por dermatologistas, mas qualquer médico que tenha interesse no assunto pode aprender a dominar a técnica, precisando apenas de um treinamento no qual vai aprender a reconhecer, identificar e classificar as estruturas.

Saiba mais:

Sporotrichoid leishmaniasis: a cross-sectional clinical, epidemiological and laboratory study in Rio de Janeiro State, Brazil

An additional tool for clinical diagnosis 

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**