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Revolução da inteligência artificial: uso na saúde traz novas possibilidades

Com o desenvolvimento das tecnologias que utilizam IA, criou-se a ideia de que elas são capazes de resolver qualquer problema, entretanto, há desafios e limitações

10/05/2023

Foto: iStoc. Na área da saúde, a ferramenta contribui com atendimentos e diagnósticos mais rápidos e precisos, reduzindo custos e melhorando a experiência de pacientes e profissionais de saúde

Tão utilizada em tarefas do dia a dia, como reconhecimento facial, aplicativos de rotas de trânsito, análise de comportamento do consumidor, a inteligência artificial (IA) tem estado cada vez mais presente na área da saúde. O seu uso na promoção da saúde pode ser definido como toda e qualquer inovação tecnológica através de métodos e dispositivos que serão utilizados em todos os segmentos de cuidados com o paciente, desde tratar doenças a melhorar a reabilitação do indivíduo ou da comunidade. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ela é uma grande promessa para melhorar a prestação de serviços de saúde em todo o mundo, que pode ser utilizada para melhorar a velocidade e a precisão do diagnóstico e da triagem de doenças, auxiliar no atendimento clínico e fortalecer a pesquisa em saúde, bem como o desenvolvimento de medicamentos. Ainda de acordo com a organização, a IA também pode apoiar diversas ações de saúde pública, como vigilância de doenças e gestão de sistemas.

De acordo com a Dra. Rosália Morais Torres, médica, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenadora do Centro de Tecnologia em Saúde (CETES) da Faculdade de Medicina da UFMG, a IA pode desempenhar um papel crucial no enfrentamento dos desafios das doenças tropicais, que prevalecem em regiões com recursos e infraestrutura limitados. Dentre as muitas maneiras pelas quais a IA pode contribuir nessa área, ela cita a possibilidade de detecção precoce de surtos de doenças tropicais mediante utilização de algoritmos que podem analisar grandes conjuntos de dados de pacientes associando-os a fatores ambientais. “Isso pode ajudar as autoridades de saúde a tomar medidas para evitar a propagação de doenças”, completa.

Ainda segundo a médica, a IA pode contribuir também para detecção de enfermidades, já que as ferramentas de diagnóstico de doenças tropicais como dengue e malária, dentre outras, podem ser mais rápidos e muito precisos, o que pode ajudar os profissionais de saúde a tomarem decisões oportunas e eficazes em relação ao tratamento. “A IA pode ser de grande valia em estudos epidemiológicos, ao ajudar a identificar os fatores de risco associados a doenças tropicais tendo em vista à sua capacidade de analisar grandes conjuntos de dados obtidos a partir de prontuários dos pacientes e de dados ambientais e geográficos”, destaca a Dra. Torres. Essas informações epidemiológicas, de acordo com ela, podem ser usadas para desenvolver estratégias eficazes de prevenção e nortear políticas públicas de saúde.

Outro aspecto relevante da IA mencionado pela coordenadora do CETES é a possibilidade de agilização dos processos para descoberta de novos medicamentos para tratar doenças tropicais, levando em consideração à capacidade de analisar grandes quantidades de dados e selecionar, com rapidez, potenciais candidatos a medicamentos. “É interessante falarmos também sobre o papel que a IA pode ter em relação ao desenvolvimento de vacinas para doenças tropicais negligenciadas identificando possíveis antígenos e prevendo sua eficácia. Em resumo, a IA tem o potencial de transformar o diagnóstico, o tratamento e a prevenção de doenças tropicais, ajudando a melhorar os resultados de saúde pública em regiões onde essas doenças são prevalentes”, ressalta.

Aplicações da IA na promoção da saúde e os desafios éticos

A IA pode capacitar as pessoas a ter maior controle de seus próprios cuidados, permitir que países com poucos recursos e comunidades rurais, onde os pacientes frequentemente têm acesso restrito a profissionais de saúde ou profissionais médicos, preencham as lacunas no acesso a estes serviços. Embora, as novas tecnologias que usam IA sejam muito promissoras para melhorar o diagnóstico, o tratamento, a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos, assim como para apoiar os governos que executam funções de saúde pública, incluindo vigilância e resposta a surtos, elas devem colocar a ética e o bem-estar humano como ponto focal, assim como a implantação e o uso.

A Dra. Torres reconhece que embora a IA tenha o potencial de transformar a assistência à saúde, há desafios em seu uso que devem ser cuidadosamente considerados e abordados para garantir que seja utilizada de forma ética e responsável. Para ela, a IA precisa ser treinada e alimentada com grande número de dados, e enfatiza que os algoritmos podem ser tendenciosos se forem treinados em dados que não representativos de uma determinada população ou obtidos sem transparência ou preconceituosamente, o que pode acarretar imprecisões em relação ao diagnóstico e ao tratamento médico, por exemplo. “Um aspecto extremamente relevante é a questão que envolve a privacidade e segurança de dados, pois os algoritmos de IA exigem acesso a grandes quantidades de informações do paciente e é preciso desenvolver políticas e práticas para proteção desses dados”, atenta. Ainda segundo a Dra. Torres, há, sobretudo, preocupações sobre a responsabilidade legal se algo der errado, não estando claro ainda quem seria responsável por erros cometidos por um algoritmo de IA, principalmente se não houver supervisão humana. “Finalmente, devemos lembrar que o desenvolvimento e a implementação da tecnologia de IA tem custo elevado, podendo levar a uma lacuna cada vez maior na qualidade da assistência à saúde entre países desenvolvidos e em desenvolvimento”, complementa.

Descobertas alarmantes

Pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, publicaram em abril a nova edição do relatório “Artificial intelligence index report 2023”, seu estudo anual de tendências em IA que traz algumas descobertas interessantes. Por exemplo, o número de incidentes relacionados ao uso indevido de IA está aumentando rapidamente. De acordo com o banco de dados Algorithmic and Automation Incidents and Controversies (AIAAIC), que rastreia incidentes relacionados ao uso indevido ético de IA, o número de incidentes e controvérsias de IA aumentou 26 vezes desde 2012. Esse crescimento é evidência tanto do maior uso de tecnologias de IA quanto da conscientização sobre as possibilidades de uso indevido. O Repositório de Incidentes e Controvérsias de IA, Algorítmica e Automação é um conjunto de dados público, aberto e independente de incidentes e controvérsias recentes conduzidos por ou relacionados a IA, algoritmos e automação.

O que a OMS diz sobre o uso da IA na saúde

Os benefícios da IA na saúde não anulam a alta complexidade da tecnologia que opera com base em dados pessoais dos pacientes e da saúde pública para gerar soluções que, de fato, sejam inteligentes. Considerando isso, é fundamental que as instituições estejam comprometidas com o bom uso da IA em nível global. Para limitar os riscos e maximizar as oportunidades intrínsecas ao uso da IA para a saúde e pensando no potencial elevado do uso dessa tecnologia na medicina, a OMS divulgou diretrizes quanto ao uso ético dessa tecnologia. Esses princípios devem guiar o seu trabalho para apoiar os esforços e garantir que todo o potencial da IA para atenção à saúde e saúde pública seja usado para o benefício de todos. Assim, a organização destacou seis pontos:

  • O controle de sistemas de saúde e a tomada de decisões devem ser tomadas por humanos, e não inteiramente por inteligência artificial;
  • Desenvolvedores responsáveis pela tecnologia implantada devem monitorar e garantir o pleno funcionamento de todas as ferramentas, além de atender todas as normas de segurança;
  • Desenvolvedores também são responsáveis por publicar os dados e informações quanto ao desenvolvimento dos produtos e como devem ser manuseados, garantindo a transparência em todas as etapas;
  • Sistemas de saúde que adotam a IA devem garantir o treinamento e capacitação dos profissionais responsáveis pelas ferramentas;
  • As tecnologias utilizadas devem respeitar e serem treinadas com uma base de dados com diversas nacionalidades, gêneros e raças, com o objetivo de promover a diversidade e evitar algoritmos “viciados”;
  • As ferramentas de IA devem ser continuamente avaliadas com base em sua performance, para que caso haja algum tipo de problema, seja rapidamente identificado e devidamente corrigido.

Promoção da saúde X confiança da comunidade médica

Na opinião da Dra. Torres, a IA ainda precisa ser vista como uma tecnologia segura para conquistar a confiança da comunidade médica, já que a qualidade das informações que alimenta os algoritmos médicos é definidora da qualidade e segurança dos resultados e sua eficiência ainda precisa ser validada. “Por outro lado, a comunidade médica precisa conhecer melhor a IA e aprender a utilizar o seu potencial dentro da medicina”, assinala. Ainda segundo a coordenadora do CETES da UFMG, é importante entender que a IA tem o potencial de mudar a forma como o trabalho médico é realizado, mas não é, necessariamente, um risco para o trabalho médico. “A tecnologia de IA pode automatizar certas tarefas levando a uma melhoria na eficiência e precisão no diagnóstico e tratamento. Por exemplo, pode analisar imagens de raios-x ou exames de ressonância magnética, detectando padrões ou anomalias eventualmente mais difíceis de serem avaliadas por humanos. Pode, ainda, ser utilizada para analisar grandes quantidades de dados de pacientes e identificar tendências e padrões relevantes para o diagnóstico ou tratamento médico”, detalha.

No entanto, a médica é categórica ao afirmar que, embora a IA possa automatizar algumas tarefas atualmente realizadas por profissionais médicos, é muito improvável que substitua o trabalho humano, pois os profissionais médicos desempenham um papel fundamental na interpretação dos resultados gerados pelos algoritmos de IA e trazem habilidades e conhecimentos únicos ao cuidado dos pacientes. “Podemos dizer que ela tem potencial para mudar a natureza do trabalho médico, deslocando o foco dos profissionais para tarefas de nível mais elevado, como tomada de decisão e coordenação do cuidado”, menciona ao frisar que isso pode levar a novas oportunidades para os profissionais médicos utilizarem sua experiência e expertise de maneiras novas e inovadoras. “Devemos sempre lembrar que a atividade médica é, em sua essência, o humano cuidando do humano e, nisso, ele jamais poderá ser substituído!”, exclama.

Questionada sobre a inteligência artificial ser mais efetiva, ou seja, se uma prescrição médica receitada com o auxílio de IA pode sugerir um tratamento mais adequado, a Dra. Torres esclarece que por enquanto não há evidências concretas de que uma prescrição orientada por IA seja mais efetiva, mas há tendência exponencial de que se alimentada com dados de qualidade e com o desenvolvimento do aprendizado de máquina, pode vir a ser, a médio prazo, um grande coadjuvante na prática médica, aumentando a efetividade do diagnóstico e contribuindo para melhor escolha do tratamento. “Ela deve ser alimentada com dados e quanto melhor a qualidade e quantidade desses dados, melhor será o resultado obtido através dos algoritmos de IA”, conclui.

Primeiro relatório global sobre IA na saúde

Em 2021, a OMS publicou o primeiro relatório global sobre inteligência artificial na saúde e listou seis princípios orientadores para sua concepção e uso. O documento intitulado “Ethics and governance of artificial intelligence for health” foi o resultado de dois anos de consultas realizadas por um painel de especialistas internacionais de diversas áreas, como direito, tecnologia digital e outras, indicados pela organização. O documento identificou os maiores desafios e possíveis dilemas éticos no manejo da inteligência artificial da saúde e forneceu uma valiosa guia para os países sobre como maximizar os benefícios da IA, minimizando seus riscos e evitando suas armadilhas.

O relatório advertiu como superestimar os benefícios da IA para a saúde, especialmente quando isso se dá às custas de investimentos e estratégias essenciais para alcançar a cobertura universal de saúde. Segundo o documento, as oportunidades estão ligadas a desafios e riscos, incluindo coleta e uso antiético de dados de saúde; preconceitos codificados em algoritmos e riscos da IA para a segurança do paciente, cibersegurança e meio ambiente. Também enfatizou que os sistemas capacitados principalmente em dados coletados de indivíduos em países de alta renda podem não funcionar bem para indivíduos em ambientes de baixa e média renda.

OMS publica relatório sobre efeitos da IA no financiamento da saúde

Mesmo com abundância de publicações sobre a aplicação de inteligência artificial para diferentes áreas da saúde em geral, o tema no financiamento da saúde tem recebido menos atenção. Recentemente a OMS publicou o relatório “The implications of artificial intelligence and machine learning in health financing for achieving universal health coverage – Findings from a rapid literature review” sobre como a IA e o aprendizado de máquina, machine learning (ML), podem contribuir especificamente em aspectos de financiamento da saúde. De acordo com o documento, não existem muitas evidências sobre os efeitos dessas tecnologias no financiamento da saúde, além dos seus riscos e desafios. Para chegar aos resultados, o levantamento se baseou na revisão de 38 estudos sobre implicações da inteligência artificial e machine learning no financiamento da saúde, realizados entre 2000 e 2021, publicados em plataformas como Google Scholar e PubMed. A maioria dos estudos revisados analisava a aplicação das tecnologias para a área de saúde suplementar.

O relatório abordou temas como previsão de gastos, gestão de riscos, detecção de fraudes e identificação de oportunidades para políticas direcionadas e, apesar de não trazer questões inéditas, evidenciou o potencial impacto positivo, principalmente no sentido de velocidade e precisão de análise de dados em comparação com métodos estatísticos tradicionais, além de poder ser mais facilmente aplicado a grandes volumes de dados. Embora os pesquisadores tenham reforçado as limitações no estudo, a conclusão foi de que o uso da IA e do ML pode ajudar nos objetivos de melhoria da cobertura universal de saúde.

Na área de previsão de gastos com saúde, os artigos revisados indicaram que a utilização de ML pode tornar a alocação de recursos mais eficiente e equitativa, além de possibilitar o aprimoramento do ajuste de risco e o gerenciamento da população, com o intuito de atender às necessidades de grupos específicos. Contudo, se não forem bem utilizadas, essas informações traduzidas pelo ML podem causar o efeito oposto: exclusão de grupos mais necessitados e aumento de suas contribuições para as operadoras.

Investimentos em IA

De acordo com pesquisas da consultoria Accenture a estimativa é que, nos próximos anos, o valor do mercado mundial de IA aplicada à assistência médica ultrapasse a marca dos US$ 7 bilhões. Esse mercado bilionário começou a décadas, mas uma das aplicações mais inovadoras aconteceu em 2011 quando a International Business Machines Corporation (IBM) lançou um supercomputador para processar dados de saúde tornando-se um banco de dados de referência na área de oncologia. Seguindo o mesmo caminho, o Google lançou o supercomputador Deep Mind, reunindo dados milhares de pacientes para aumentar o conhecimento sobre diversas patologias, incluindo seus sintomas e evolução. Essas aplicações mais voltadas a centros de pesquisa foram a base para uma nova fase da inteligência artificial na Medicina, viabilizando sua popularização.

O grande investidor em pesquisa em IA na saúde no mundo é a multinacional de tecnologia Alphabet, do grupo Google. O Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e as universidades Stanford e Harvard, nos Estados Unidos, e as de Oxford e Cambridge, no Reino Unido, também se destacam. No Brasil, Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) estão entre as que mais se dedicam a esse campo de pesquisa.

O relatório “Artificial intelligence index report 2022”, aponta que o setor privado no mundo inteiro investiu mais de US$11 bilhões em pesquisa e inovação com IA para a área da saúde no ano de 2021. Nos últimos cinco anos, os recursos somaram US$ 28,9 bilhões, o que posicionou o segmento como o maior receptor de investimentos privados em IA, superando atividades tradicionais no uso de tecnologias da informação, como o setor financeiro e o varejo. A visão computacional, segmentando imagens de órgãos, lesões ou tumores, foi uma das aplicações que despertaram mais interesse na comunidade médica. Os números reforçam a importância da IA no desenvolvimento tecnológico e nos avanços promovidos na saúde.

A Inteligência Artificial está evoluindo em um ritmo frenético. Há alguns anos, criações como o ChatGPT da OpenAI ou o Google Bard limitavam-se apenas a discussões rebuscadas em mesas redondas de tecnologia. No entanto, nos últimos meses, muita coisa mudou. O desenvolvimento de tecnologias de IA têm ocorrido a uma velocidade de tirar o fôlego, deixando o mundo ao mesmo tempo maravilhado e com apreensões. Com a IA cada vez mais impactando nossas vidas, fica evidente a necessidade de observar as discussões atuais sobre regulação.

Por fim, uma reflexão: em se tratando de Brasil, um País cuja desigualdade social e o acesso à internet ainda são obstáculos, já que 28,2 milhões de brasileiros ainda permaneciam sem conexão à rede em casa em 2021, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o equivalente a 15,3% da população, a IA é a solução ou o problema? Para a Dra. Torres, certamente faz parte das soluções, à medida que a IA for incorporada às políticas públicas de saúde, ajudando a melhorar e agilizar o diagnóstico, o tratamento e a prevenção de doenças. A nível individual, o acesso à internet é importante para a implementação da telemedicina e, neste aspecto, ainda temos um caminho a percorrer”, finaliza.