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Sem autonomia em biotecnologia, Brasil vira refém para aquisição de vacinas

País não tem parque de tecnologia que possa suprir a carência que possui

09/03/2021
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Temos total dependência de importação, mesmo que as empresas estejam em solo brasileiro, elas precisam utilizar produtos ativos que são importados

Em meio à pandemia do novo coronavírus a biotecnologia se mostrou como ferramenta essencial para enfrentar a COVID-19. Graças a ela e aos esforços dos pesquisadores foram necessários apenas 42 dias para que uma vacina baseada em biotecnologia moderna chegasse à primeira fase clínica. Com o auxílio dessa tecnologia, não apenas a vacina mRNA-1273 foi desenvolvida, mas também outras que utilizam DNA ou proteína recombinante. O potencial de aplicação da biotecnologia na área da saúde é muito amplo e, além de ajudar a detectar doenças em pessoas, animais e plantações, seus avanços têm contribuído para o desenvolvimento de formulações mais seguras e eficazes.

No Brasil, desde a década de 1970, houve grande investimento na formação de pesquisadores qualificados na área de biotecnologia. Entretanto, somente em 2005, foi regulamentada a Lei de Inovação Tecnológica, que estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, visando ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento industrial do País.

Contudo, o Brasil entrou atrasado na corrida pelo domínio do conhecimento dos processos biotecnológicos e sua aplicação na produção industrial. O diretor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o pesquisador especialista em saúde pública na área de biotecnologia, Dr. Rodrigo Stabeli, lembra que a carência da tecnologia para essa área no Brasil é estrutural. “O advento de tecnologias para produção de medicamentos, principalmente os bioinsumos, faz com tenhamos total dependência de importação. Mesmo que as empresas estejam em solo brasileiro, elas precisam utilizar produtos ativos que são importados, porque não temos um parque de tecnologia que possa suprir a carência tecnológica que o Brasil possui, e isso é estrutural”, ressalta. Para melhor entender o gap ao comparamos o Brasil a outros países que investiram nessa tecnologia, o pesquisador cita o primeiro centro de prototipagem para bioinsumos que foi inaugurado América Latina há apenas três anos. Para ele, a biotecnologia não recebeu o mesmo incentivo que o desenvolvimento científico teve quando da criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por exemplo. O Dr. Stabeli esclarece que houve investimento na ciência e na tecnologia, mas investimento em tecnologia industrial é insipiente.

Investimentos em biotecnologia podem melhorar a ciência no Brasil. A Dra. Luciana Cezar de Cerqueira, que tem ampla experiência na área de biotecnologia molecular, com ênfase no desenvolvimento de vacinas, explica que a ciência envolve a pesquisa básica e a pesquisa aplicada, este último contém a biotecnologia, que ajuda a traduzir o conhecimento para produtos de interesse da população. Para a pesquisadora, a aquisição da competência em biotecnologia é um processo contínuo pela dinâmica da área, então o investimento precisa ser contínuo. “Não se pode adquirir esta competência de uma hora para outra, se ela não está estabelecida o investimento não resolve”, acrescenta.

A professora do Departamento de Biologia Celular e Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Lucymara Fassarella, que também é coordenadora-geral da Rede Nordeste de Biotecnologia (Renorbio), atenta que o Brasil conta uma base acadêmica forte, excelentes pesquisadores, programas de pós-graduação bem estabelecidos, ou seja, em termos de recursos humanos o País tem uma massa crítica razoável. “Temos boa produção científica, somos o principal produtor de conhecimento científico na América Latina, embora ainda estejamos distantes de países como Estados Unidos, alguns países da Europa ou asiáticos, mas vejo que a maior deficiência se dá entre a academia e o setor privado”, frisa.

Na avaliação da coordenadora-geral da Renorbio, faltam instrumentos de interlocução, estratégias de aproximação, para que as demandas do setor privado cheguem às universidades de forma que ele também possa participar do desenvolvimento de novos produtos e insumos. “Mas também falta uma visão do setor privado quanto a importância do investimento em pesquisa, que começa pela pesquisa básica. A iniciativa privada aporta poucos recursos ainda para o desenvolvimento base das pesquisas”, lamenta a Dra. Fassarella. A professora recorda a diferença de investimento em Ciência e Tecnologia praticada no Brasil ao mencionar que estamos muito aquém, em termos de Produto Interno Bruto (PIB), de países como Coreia, China, Estados Unidos. “Isso sem dúvida é uma das principais razões de não sermos tão competitivos. O investimento é fundamental e temos vivido um período de diminuição de investimentos, o que isso é extremamente prejudicial para as instituições de Pesquisas brasileiras. Muitos pesquisadores estão sem recursos para trabalhar devido ao contingenciamento que tem ocorrido”, conclui.

Brasil sem autonomia

As empresas que mais cresceram nos últimos dez anos foram as que investiram em tecnologia do DNA recombinante e bioinsumos para produção de anticorpos. Infelizmente não tivemos esse investimento no Brasil. De acordo com o Dr. Stabeli, temos ótimos cientistas que conseguem fazer manipulações na bancada, mas não temos equipamentos suficientes para transformar em produção, o que se reflete também nas vacinas. E neste ponto o pesquisador é categórico ao afirmar que recursos em vacinas são investimentos e não gastos. Um país que pensa na tecnologia em saúde é um país que busca o bem-estar social dos seus cidadãos e isso é investimento, não é gasto. Para ele, uma indústria brasileira forte, com tecnologia suficiente na saúde, vai trazer também o enriquecimento do país. “Se quisermos ter uma nação soberana e desenvolvida, precisamos investir em tecnologias que façam com que as nossas pesquisas saiam da bancada e cheguem até o setor industrial”, enfatiza.

A Dra. Fassarella admite os gargalos existentes no desenvolvimento de medicamentos, de pesquisas para novas drogas e a grande dependência de insumos que muitas vezes são importados. Segundo ela, esse problema não se restringe somente à produção de vacina, mas para todos que trabalham com biologia molecular ou biotecnologia. A professora reforça que a falta de produção de insumos no Brasil faz com que as pesquisas fiquem dependentes de outros centros produtores de reagentes para biologia molecular. “Temos institutos como o Butantã e a Fiocruz com uma larga tradição na produção de vacinas, ou seja, capacidade técnica e de produção existe no País”, diz.

Para se ter uma ideia, o Brasil é tão dependente da produção tecnológica de vacinas ou de anticorpos monoclonais que precisa muitas vezes comprar água em nível injetável. Noventa por cento do que é usado da tecnologia em medicina, hoje é importada, ou seja, é um déficit na balança comercial de 20 bilhões de dólares. Para o Dr. Stabeli, falta olhar a saúde como um complexo econômico e industrial. O complexo econômico industrial da saúde é uma das indústrias mais rentáveis do mundo. “Rentável no sentido de desenvolvimento de uma nação”, acrescenta. E a pandemia mostrou essa importância para o mundo. Países que possuem tecnologias conseguiram dar uma resposta tanto no envase quanto na produção de vacinas e estão reduzindo o número de internações e mortes por COVID-19. Isso mostra o quão importante é termos tecnologia de saúde à disposição.

A Dra. Cerqueira Leite, que já foi vice-diretora da Fundação Butantã, diretora do Centro de Biotecnologia e diretora do laboratório de desenvolvimento de vacinas do Instituto, reconhece que o Brasil possui alta competência estabelecida em ciência básica e algumas fases do desenvolvimento de vacinas, como a fase de ensaios clínicos e de produção de alguns imunobiológicos. Entretanto, existe um gap nas fases de desenvolvimento envolvendo a biotecnologia, onde a competência para realizar as pesquisas necessárias ao escalonamento dos processos e obtenção de produtos com o controle de qualidade necessário para iniciar os ensaios clínicos é ainda incipiente. Ainda de acordo com a Dra. Cerqueira Leite, a biotecnologia no Brasil é restrita e certamente não suficiente para dar conta da pesquisa básica e aplicada realizada. “Muitas invenções se perdem porque não tem como seguir para as próximas etapas. O Brasil tem alguma competência em biotecnologia, mas o investimento necessário nesta área é maior do que nas áreas básicas. As fases de pouco investimento significam a perda da competência estabelecida e do investimento anterior”, destaca ao dizer que o processo de desenvolvimento de tecnologia envolve um sem número de competências, algumas das quais estão faltando no Brasil.

O Brasil atualmente não tem uma política clara em setores estratégicos. No passado o Plano Nacional de Autossuficiência em Imunobiológicos impulsionou toda a área de biotecnologia e produção de medicamentos, incluindo a área de desenvolvimento de vacinas. “Mas atualmente todo o investimento na área de pesquisa e desenvolvimento foi reduzido. Isso vai na contramão da maioria dos países, que já perceberam que sem um setor de inovação forte não se sustenta uma economia, aponta a pesquisadora. Os países que estão conseguindo produzir as vacinas, inclusive dos países em desenvolvimento do BRICS, China, India e Russia, são aqueles que tem uma política de investimento nestes setores estratégicos, inclusive na Biotecnologia.

Biotecnologia em Saúde

Com inauguração prevista para 2023, o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) será o maior centro de fabricação de produtos biológicos da América Latina e um dos mais modernos do mundo. O local terá capacidade de produção de 120 milhões de frascos de vacinas e biofármacos por ano. Ele será responsável por toda produção de vacinas da Fiocruz, inclusive de COVID-19. As vacinas contra meningite, hepatite e tríplice bacteriana, que atualmente são importadas, também serão produzidas no complexo.

Atualmente o Brasil possui 574 empresas de biotecnologia, entre startups e maduras, nacionais e multinacionais, de acordo com o Mapa Biotec, divulgado pela plataforma aberta Profissão Biotec. Os dados revelam a desproporcional concentração de centros de pesquisa, base para a implantação das empresas de biotecnologia, em relação as regiões: São 381 no Sudeste; 113 no Sul; 45 no Centro-Oeste; 27 no Nordeste; 8 no Norte. As empresas estabelecidas vão desde a área ambiental à bioenergia, de insumos à saúde animal, além dos amplos setores da agricultura e indústria de alimentos. O setor de atuação “Saúde Humana e Bem Estar”, por exemplo, inclui empresas que desenvolvem tecnologias, produzem e comercializam medicamentos biológicos, kits de diagnósticos, proteínas recombinantes, próteses, dispositivos e equipamentos médicos especializados, terapias celulares, curativos e peles artificiais e/ou vacinas para tratar humanos. Laboratórios de análise que tenham técnicas moleculares são contemplados, além de empresas com Pesquisa e Desenvolvimento na área, como identificação de novas moléculas e fármacos, validação de novos medicamentos (ensaios pré-clínicos e clínicos). São contempladas também as empresas da área cosmética ou higiene pessoal que obtém/modificam moléculas potenciais provenientes de bioprocessos através da utilização de microrganismos vivos ou parte deles e que possuem centros de pesquisa na área de Biotecnologia.

A biotecnologia está extremamente presente no desenvolvimento tanto de instrumentos para diagnóstico, prognóstico e muitas vezes até tratamento de doenças. É uma técnica revolucionária, uma ferramenta poderosa que possibilitou descobertas tecnológicas em várias áreas industriais e em setores da ciência com melhorias e inovações. Um dos impactos causados pela revolução biotecnológica moderna representou uma mudança significativa na forma como as vacinas modernas são desenvolvidas. Além disso, as pesquisas do uso da biotecnologia em diversas áreas, desde a produção de vacinas até medicamentos com menos efeitos colaterais podem proporcionar uma medicina mais personalizada e uma atuação mais eficaz na prevenção de doenças.

A pandemia de COVID-19 que levou a corrida das indústrias farmacêuticas para novas descobertas, pesquisas clínicas, medicamentos e serviços, evidenciou que o Brasil precisa expandir o setor de biotecnologia, pois sem autonomia, virou refém de outros países. Sem investimento na ciência e na tecnologia não vamos reduzir a desigualdade. Ela só vai diminuir quando entendermos que os pilares para o desenvolvimento de uma nação se baseiam na educação, na ciência e na tecnologia. O país que não investir neles está fadado a ser colonizado por aqueles que possuem a tecnologia. É o que vemos no Brasil até hoje: antes trocávamos nossas frutas, nosso ouro, por espelho. Hoje trocamos nossa soja por vacinas. E isso sai muito caro para a nação brasileira.