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Surto Doméstico de Esporotricose: Rumo a uma Abordagem de Saúde Única

Os esforços conjuntos de profissionais como veterinários e médicos são essenciais para o diagnóstico precoce e vigilância, o que contribui para a rápida identificação e controle de surtos de esporotricose zoonótica

14/06/2022
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Além disso, estratégias públicas para educar a população sobre a posse responsável de felinos e aspectos da transmissão de esporotricose zoonótica são essenciais para limitar a disseminação dessa doença emergente e reemergente

Andrade EHP et al. – Surto doméstico de esporotricose

Elisa Helena Paz Andrade[1], Camila Valgas Bastos[2], Afonso Vieira da Silva[3], Simone Magela Moreira[4], Taiza Gonçalves de Araújo Costa[5], Lauranne Alves Salvato[2], Salene Angelini Colombo[2], Camila Stefanie Fonseca de Oliveira[2], Danielle Ferreira de Magalhães Soares[2], Kelly Moura Keller[2] and Maria Isabel de Azevedo[2]

[1]. Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Tecnologia e Inspeção de Produtos de Origem Animal, Belo Horizonte, MG, Brasil.

[2]. Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Medicina Veterinária Preventiva, Belo Horizonte, MG, Brasil.

[3]. Centro Animal Céu Azul, Belo Horizonte, MG, Brasil.

[4]. Instituto Federal de Minas Gerais, Departamento de Ciências Agrárias, Bambuí, MG, Brasil.

[5]. Prefeitura Municipal de Contagem, Contagem, MG, Brasil.

Autor correspondente: Elisa Helena Paz Andrade. e-mail: elisahpandrade@yahoo.com.br

Contribuição dos autores

Todos os autores contribuíram para a concepção deste estudo. EHPA, CVB: Obtenção e interpretação dos dados, Elaboração do artigo; AVS: Análise e interpretação dos dados; SMM: Interpretação dos dados, Elaboração do artigo; TGAC: Obtenção dos dados; LAS, SAC, KMK: Análise e interpretação dos dados; CSFO, DFMS: Revisão crítica do manuscrito; MIA: Obtenção, análise e interpretação dos dados, Elaboração do artigo; Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito.

Conflito de interesses

Não temos conflito de interesses a declarar.

Resumo

Embora a esporotricose exija uma abordagem ampla para o controle, poucos relatos descreveram a relação entre o caso índice e os contatos secundários. No presente trabalho, relatamos um surto envolvendo uma mulher, um cão e dois gatos convivendo no mesmo ambiente doméstico, incluindo os aspectos e resultados clínicos e epidemiológicos, e discutimos a importância de uma abordagem de Saúde Única para enfrentar essa doença negligenciada. Os esforços conjuntos de profissionais como veterinários e médicos são essenciais para o diagnóstico precoce e vigilância, o que contribui para a rápida identificação e controle de surtos de esporotricose zoonótica

Palavras-chave: rastreamento de contatos. gato. epidemiologia.

Introdução

A esporotricose é uma micose subcutânea negligenciada causada por patógenos do gênero Sporothrix, que infectam humanos e animais. A infecção tem distribuição global, com diversas áreas no mundo, principalmente no Brasil1.

Um aumento no número de casos humanos é geralmente precedido por um aumento no número de gatos, o que representa um grave problema de saúde pública1. Além disso, em gatos, as lesões cutâneas contêm alta carga fúngica, resultando em alto potencial de transmissão zoonótica, o que demonstra a importância dessa espécie animal na cadeia epidemiológica da esporotricose2.

A abordagem Saúde Única [One Health] endossada pela Organização Mundial da Saúde para Saúde Animal e vários órgãos em níveis internacional e nacional constituem um modelo transdisciplinar de saúde humana, animal e ambiental3. Portanto, combinar a disseminação da esporotricose transmitida por gatos com uma abordagem de Saúde Única exigirá esforços multissetoriais, incluindo veterinários, médicos, epidemiologistas, microbiologistas, cientistas ambientais e muitos outros parceiros4

A exposição a indivíduos infectados é o fator de risco mais importante para doenças transmissíveis. Portanto, estudos sobre familiares e contatos próximos de indivíduos infectados por esporotricose são importantes fontes de informação. Além disso, em estudos domiciliares, apenas indivíduos que foram expostos são incluídos, permitindo uma melhor compreensão dos fatores de risco em nível individual e quantificação das probabilidades de transmissão5. Assim, o presente estudo teve como objetivo relatar uma série de quatro casos de esporotricose na mesma residência e abordar os aspectos de Uma Saúde para lidar com a doença.

RELATO DE CASO

Uma mulher saudável de 37 anos de idade de Minas Gerais, Brasil, relatou ter sido arranhada na mão direita por um gato em setembro de 2019. O animal era do sexo masculino, sem raça definida, castrado cirurgicamente, e havia voltado para casa com inúmeras feridas corporais, principalmente na cabeça e nas patas, após um período de perambulação pelas ruas. Portanto, o gato foi levado para cuidados veterinários.

O exame citológico das lesões cutâneas foi realizado ao microscópio, que revelou achados compatíveis com intenso processo inflamatório piogranulomatoso e inúmeras estruturas com morfologia compatível com Sporothrix spp. dentro de macrófagos intralesionais, resultando no diagnóstico de esporotricose. O animal estava em mau estado geral e foi eutanasiado e seu cadáver incinerado. O médico veterinário aconselhou a mulher a procurar atendimento médico caso sua lesão na mão não cicatrizasse conforme o esperado, devido ao caráter zoonótico da esporotricose.

Vinte e um dias após o arranhão, a mulher identificou uma lesão no local do trauma e procurou um médico em outubro de 2019, que fez um diagnóstico clínico e epidemiológico de esporotricose com base na história apresentada. Como um sinal precoce, a mulher notou vermelhidão, inchaço e uma lesão localizada fixa, seguida por outras lesões semelhantes a espinhas. Dias depois, outras lesões no antebraço, braço, ombro e escápula lateral e contralateral foram observadas, o que é característico da forma linfocutânea. Posteriormente, as lesões atingiram as pernas e os pés (Figura 1). Coceira nos locais da lesão também foi relatada. Itraconazol oral 200 mg/dia por 1 mês e 100 mg/dia adicionais por um mês e meio foram prescritos para o tratamento. As feridas melhoraram drasticamente com a cura clínica após 2 meses e meio de tratamento.

Aproximadamente 2 meses após o diagnóstico de esporotricose de gato (caso índice), um cão e outro gato que compartilhavam o mesmo ambiente doméstico foram levados para cuidados veterinários. O gato era do sexo masculino, mestiço, não castrado cirurgicamente e apresentava lesões cutâneas iniciais no focinho do olho esquerdo e borda medial inferior (Figura 2A). Impressões coradas com um kit panóptico foram preparadas a partir das lesões do gato. Foi prescrita amoxicilina oral com clavulanato (15mg/) de 12 em 12 horas até o resultado. A citologia revelou a presença de levedura nas lesões (Figura 2B). O cão macho, mestiço, não castrado cirurgicamente apresentou lesões cutâneas ulceradas na cabeça com áreas crostadas e alopecia (Figura 2D). O cão foi testado sorologicamente com resultado negativo para leishmaniose visceral canina. As amostras de lesões cutâneas dos dois animais foram coletadas com swabs estéreis para diagnóstico no Laboratório de Micologia e Micotoxinas da Universidade Federal de Minas Gerais. Houve um crescimento de Sporothrix spp. em cultura fúngica para ambos (Figuras 2C e 2E), confirmando esporotricose. As espécies de Sporothrix isoladas do cão e do segundo gato foram identificadas como Sporothrix brasiliensis por reação em cadeia da polimerase (PCR) com base nas sequências do gene da calmodulina6.

Itraconazol oral 100 mg/dia e 180 mg/dia por 60 dias foram prescritos com protetor hepático para gato e cão, respectivamente. Precauções adicionais foram recomendadas, como separar esses animais dos demais do domicílio e não permitir o acesso à rua.

Após um mês de tratamento, em janeiro de 2020, o gato retornou à clínica veterinária e ainda apresentava edema nasal. Foi prescrito iodeto de potássio oral (8 mg/dia) associado ao itraconazol (100 mg/dia). No mesmo mês, o cão foi sacrificado devido à piora do seu estado geral e comorbidades. O gato retornou ao veterinário em março de 2020 após 50 dias de tratamento com iodeto de potássio e itraconazol, e sua cura clínica foi confirmada.

Os principais eventos relacionados à transmissão, diagnóstico, tratamento e desfecho da esporotricose em humanos e animais estão resumidos na Figura 3.

Discussão

Estudos domiciliares oferecem uma oportunidade única para determinar a transmissão de doenças infecciosas5. No presente estudo, um gato que teve acesso à rua (caso índice) foi a principal fonte de Sporothrix spp. no ambiente residencial, transmitindo este agente à sua proprietária através de arranhões. Outros dois animais (um cão e outro gato) também foram infectados, provavelmente por contato direto com o primeiro gato, pois esses animais não tinham acesso à rua. S. brasiliensis foi detectada nas lesões de pele do cão e do segundo gato, provavelmente sendo a espécie responsável pelo surto.

Apesar de ser castrado, o acesso à rua representou um importante elemento de risco, contribuindo para a infecção no caso índice. Na mesma região, há uma probabilidade três vezes maior de um diagnóstico positivo de esporotricose em gatos com acesso à rua7. Outro estudo mostrou que vagar livremente pelas ruas é um fator de risco significativo para infecção por Sporothrix spp. em gatos, mesmo após castração8.

Em um ambiente restrito, como no mesmo domicílio, o risco de um cão ser infectado pelo contato com um gato doente é alto; no entanto, acreditamos que o cão tem um papel epidemiológico limitado, pois as lesões caninas têm poucos microrganismos fúngicos9 e provavelmente não está envolvido na transmissão para o segundo gato no presente estudo.

A infecção da dona ocorreu por meio de arranhões do primeiro gato infectado, o que caracteriza esporotricose zoonótica. O diagnóstico clínico da paciente foi bem definido, uma vez que ela apresentou uma história clínica detalhada. As características das lesões foram consistentes com a forma linfocutânea, a apresentação clínica mais comum10 e as lesões regrediram com o tratamento com itraconazol. A combinação de itraconazol/iodeto de potássio apresentou melhores resultados no segundo gato. A eficácia de ambos os medicamentos como monoterapia tem sido documentada, mas casos de falha terapêutica são comuns em gatos11.

Nosso estudo destaca o potencial de transmissão de esporotricose intradomiciliar. Considerando o contexto no qual os gatos têm acesso às ruas, é necessária a aplicação de para as famílias. Além disso, novos modelos de intervenções em saúde pública baseados em uma abordagem de Saúde Única devem priorizar casos e contatos de alto risco, cujas informações proporcionarão uma melhor compreensão da extensão, natureza e determinantes da transmissão em ambientes restritos.

ORCID

Elisa Helena Paz Andrade: https://orcid.org/0000-0002-2170-4272

Camila Valgas Bastos: https://orcid.org/0000-0002-2607-8100

Afonso Vieira da Silva: https://orcid.org/0000-0003-2900-7938

Simone Magela Moreira: https://orcid.org/0000-0003-4923-7845

Taiza Gonçalves de Araújo Costa: https://orcid.org/0000-0002-9483-4676

Laurrane Alves Salvato: https://orcid.org/0000-0002-8022-2134

Salene Angelini Colombo: https://orcid.org/0000-0003-2378-8649

Camila Stefanie Fonseca de Oliveira: https://orcid.org/0000-0002-5557-7267

Danielle Ferreira de Magalhães Soares: https://orcid.org/0000-0003-4030-6832

Kelly Moura Keller: https://orcid.org/0000-0003-2882-512X

Maria Isabel de Azevedo: http://orcid.org/0000-0002-6886-0221

Referências

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  • Miranda LHM, Silva JN, Gremião IDF, MenezeS RC, Almeida-Paes R, Reis EG, et al. Monitoring fungal burden and viability of Sporothrix in skin lesions of cats for predicting antifungal treatment response. J Fungi. 2018;4(3):92-102.
  • Barrett MA, Bouley TA. Need for enhanced environmental representation in the implementation of One Health. 2014;12(2):212-9.
  • Rossow JA, Queiroz-Telles F, Caceres DH, Beer KD, Jackson BR, Pereira JG, et al. A One Health Approach to Combatting Sporothrix brasiliensis: Narrative Review of an Emerging Zoonotic Fungal Pathogen in South America. J Fungi. 2020;6(4):247-72.
  1. Rodrigues AM, Hoog GSde, Camargo ZPde. Molecular diagnosis of pathogenic Sporothrix species. PLoS Negl Trop Dis. 2015;9(12):1–22. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0004190
  2. Lecca LO, Paiva MT,Oliveira CSF, Morais MHF, Azevedo MI, Bastos CV, et al. Associated factors and spatial patterns of the epidemic sporotrichosis in a high density human populated area: a cross-sectional study from 2016 to 2018. Prev Vet Med. 2020;176. Available from: https://doi.org/10.1016/j.prevetmed.2020.104939
  3. Andrade EHP, Moreira SM, Paiva MT, Zibaoui HM, Salvato LA, Azevedo MI, et al. Characterization of animal sporotrichosis in a highly urbanized area. Comp Immunol, Microbiol Infect Dis. 2021;76. Available from: https://doi.org/10.1016/j.cimid.2021.101651.
  4. Schubach TMP, Schubach A, Okamoto T, Barros MBL, Figueiredo FB, Cuzzi T, et al. Canine sporotrichosis in Rio de Janeiro, Brazil: clinical presentation, laboratory diagnosis and therapeutic response in 44 cases (1998–2003). Med Mycol. 2006;44(1):87–92.
  5. Rees RK, Swartzberg JE. Feline-transmitted sporotrichosis: A case study from California. Dermatol Online J. 2011;17(6):1-4. Available from: https://doi.org/10.5070/D30459k1jb
  6. Gremia?o IDF, Menezes RC, Schubach TMP, Figueiredo ABF, Cavalcanti MCH, Pereira SA. Feline sporotrichosis: epidemiological and clinical aspects. Med Mycol. 2015;53(1):15-21.
  7. Rodrigues AM, Hoog GSde, Camargo ZPde. Sporothrix species causing outbreaks in animals and humans driven by animal-animal transmission. PLoS Pathog. 2016;12(7):1-7. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.ppat.1005638

Recebido em 14 de janeiro de 2022 – Aceito em 25 de março de 2022
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FIGURA 1: Forma linfocutânea de esporotricose manifestada por uma mulher de 37 anos previamente saudável, após um arranhão de gato. As lesões cutâneas começaram na mão direita (local do trauma) como áreas bem definidas vermelhas e inchadas, com aspecto de espinha (A), e depois se espalharam para outras partes do corpo, incluindo o antebraço direito (B), ombro esquerdo (C) e pé esquerdo (D).
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FIGURA 2: Lesões cutâneas, coleta de amostras e resultados obtidos do segundo gato e cão. A- As lesões cutâneas no focinho e borda medial inferior do olho esquerdo são indicadas por setas. B- Citologia da impressão da lesão cutânea do gato corada com kit panóptico e visualizada com microscópio mostrando a presença de formas de levedura. D- As lesões cutâneas do cão foram caracterizadas como áreas ulceradas e crostas de alopecia na cabeça (indicadas por setas), das quais uma foi escolhida para coleta de amostra com swab estéril para cultura fúngica. C e E – Crescimento de Sporothrix spp. na cultura fúngica a partir de lesões cutâneas do gato e do cão, respectivamente.
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FIGURA 3: Cronograma dos principais eventos que envolvem a transmissão, diagnóstico, tratamento e resultado do proprietário e animais com esporotricose no mesmo ambiente doméstico

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**