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Leishmanioses: vacinas mais próximas à realidade trazem esperança

Imunizantes podem representar grande impacto na melhoria da qualidade de vida das pessoas que vivem nas regiões mais pobres do mundo

10/05/2022
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Brasil é o país com o maior número de casos das três formas de leishmanioses: tegumentar ou cutânea; mucosa e visceral ou calazar

As leishmanioses, conjunto de doenças causadas por parasitos protozoários de mais de 20 espécies diferentes de Leishmania, representam um sério problema de saúde pública em todo o mundo. Prevalente em 98 países, com aproximadamente 1,3 milhão de casos por ano, e podem causar úlceras na pele e até mesmo afetar áreas como a mucosa bucal e o trato respiratório. O Brasil é o país com o maior número de casos das três formas da doença: tegumentar ou cutânea; mucosa e visceral ou calazar. A depender do protozoário causador, a enfermidade requer diferentes abordagens de tratamento e prognóstico. A detecção e identificação das espécies de Leishmania das diferentes formas clínicas da doença pode proporcionar um tratamento precoce e adequado. Entretanto, as ferramentas disponíveis para diagnósticos e tratamentos são primitivas, com pouco avanço, independentemente do progresso em outras ciências médicas. O desenvolvimento de uma vacina que seja eficaz contra diferentes formas de leishmanioses é fundamental e tem sido recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como ferramenta possível para uma efetiva erradicação da doença.

No campo da vacinologia, o desenvolvimento de vacinas tem se mostrado mais atraente contra a Leishmaniose Visceral Canina (LVC) do que para a humana, já que a proporção de cães positivos nas áreas endêmicas atinge cerca de 10, 20, 30 vezes mais do que pessoas infectadas. A prioridade para a LVC, deve-se também à questão mercadológica, já que a área de produtos veterinários para pequenos animais superaqueceu nas duas últimas décadas. Diversas vacinas têm sido testadas, incluindo as vacinas vivas ou inativadas, frações purificadas de Leishmania, antígenos recombinantes, expressão do antígeno por DNA plasmidial de Leishmania através de bactéria recombinante.

Já a eficácia da vacina em humanos ainda é muito limitada. Por exemplo, a primeira tentativa de proteção em massa com vacina viva foi realizada na União Soviética em 1937, e obteve cerca de 80% de infecções imunizantes. Em 1941, foi realizado um estudo mais amplo, imunizando 200 pessoas, e a reinoculação confirmou que uma única lesão era suficiente para proteger o indivíduo contra uma futura reinfecção, a este tipo de vacinação foi chamado de leishmanização. Neste período realizavam-se os primeiros estudos da vacina viva em Israel. Muitas das vacinas testadas hoje em dia utilizam parasitas mortos. O foco da pesquisa moderna é o uso de proteínas recombinantes, parasitas vivos atenuados e vacinas de DNA. Essa ideia parte do princípio de que uma boa vacina contra a leishmaniose deve ser molecularmente definida e capaz de induzir memória imunológica na ausência de organismos vivos persistentes.

A ineficácia dos tratamentos e a ausência de vacinas profiláticas para a leishmaniose visceral humana posicionam essa enfermidade em segundo lugar nos índices de mortalidade dentre as doenças infecciosas tropicais e afeta cerca de 200 mil pessoas por ano. Estima-se que as Leishmanioses Tegumentar (LT), Mucosa (LM) e Visceral (LV) apresentam uma prevalência de 12 milhões de casos no mundo, distribuída em quatro continentes (Américas, Europa, África e Ásia).

Vacina com tecnologia CRISP pode estar disponível em seis anos

O Dr. Abhay Satoskar conta que sua equipe, composta por investigadores da Ohio State University (OSU), Food and Drug Administration (US-FDA), National Institutes of Health (NIH), McGill University, Nagasaki University e Gennova Biopharmaceuticals, desenvolveu duas vacinas vivas atenuadas removendo o gene da centrina em espécies de Leishmania major do velho mundo (LmCen-/-), bem como da Leishmania mexicana (LmexCen-/-), espécies do novo mundo, utilizando a tecnologia CRISPR. “Essas vacinas são baseadas no conceito de Leishmanização, usado por muitos anos no Oriente Médio, onde as tribos beduínas esfregavam raspas de lesões ativas na pele de crianças, em áreas como os pés para protegê-los de infecções subsequentes – uma espécie de vacina viva, denominada leishmanização”, acrescenta.

A vacina LmCen-/- atenuada está em produção pela Gennova Biopharmaceutical, na Índia, e a previsão é que os ensaios clínicos de Fase I comecem em 2023. “Esperamos que a LmCen-/- seja amplamente eficaz contra as leishmanioses do Novo e do Velho Mundo. No entanto, caso a vacina contra Leishmania major seja menos eficaz para a leishmaniose do Novo Mundo devido a diferenças de espécies, temos a vacina contra Leishmania mexicana, que é um backup”, detalha o Dr. Satoskar. A expectativa é de que a  vacina esteja disponível para prevenção entre cinco e seis anos após a conclusão do estudo de Fase I.

Questionado sobre o fato de que talvez uma vacina recombinante não seja suficiente para promover a imunização a longo prazo e que para isso seria necessária uma vacina viva, o Dr. Satoskar diz concordar. Segundo ele, as vacinas usadas atualmente que fornecem a melhor imunidade a longo prazo e permitiram a eliminação de doenças como varíola e poliomielite são vacinas vivas atenuadas. “As vacinas vivas permitem a persistência do antígeno, que pode ser necessária para a imunidade a longo prazo”, assinala.

Vacina já em testes em seres humanos

No momento, a única vacina experimentada em seres humanos é a da equipe do Dr. Paul Kaye, financiada pelo Wellcome Trust. Baseada em tecnologia de adenovírus, semelhante a utilizada nas recentes vacinas contra o coronavírus da AZ/Oxford, J&J etc, ela é composta por um adenovírus de chimpanzé (ChAd63) que expressa um gene sintético, o qual codifica dois antígenos de Leishmania, o KMP-11 (K) e o HASPB (H). “O KMP-11 é expresso em todos os tripanossomatídeos e é altamente conservado. O HASPB tem terminais N e C relativamente bem conservados, mas contém repetições que variam entre os isolados de Leishmania. Nosso gene (KH) representa um composto dos isolados repetidos encontrados em isolados de Leishmania donovani da África Oriental e da Índia. Embora algumas espécies de Leishmania não expressem HASPB (por exemplo, a L. braziliensis) o composto de dois antígenos deve proporcionar boa representação na maioria das espécies de Leishmania na maioria das áreas geográficas”, explica o Dr. Kaye.

O estudo de Fase I em humanos com voluntários saudáveis foi realizado no Reino Unido e mostrou segurança e imunogenicidade. “O primeiro alvo foi a vacinação terapêutica em pacientes com leishmaniose cutânea persistente pós-calazar no Sudão. Concluímos um rótulo aberto e o estudo de segurança e imunogenicidade de Fase IIa foi publicado em 2021. Também foi realizado um ensaio controlado por placebo randomizado de Fase IIb, os quais devem ser concluídos ainda este ano”, complementa o Dr. Kaye. Até o momento, não foram realizados estudos de vacinação profilática contra leishmaniose visceral ou cutânea em países endêmicos, devido à escala e ao custo desses estudos. Segundo ele, para apoiar o investimento em tais ensaios foi desenvolvido um modelo de infecção humana controlada (MICH) de leishmaniose cutânea transmitida por flebótomos, que deve fornecer um meio eficiente e econômico para avaliar a eficácia protetora da vacina em um pequeno número de voluntários. O MIHC deve estar disponível para uso por qualquer investigador com candidatos à vacina que tenham atingido o desenvolvimento clínico de Fase I. “Os MIHC podem facilitar o teste precoce de uma decisão baseada em evidências sobre o progresso dos candidatos aos estudos de campo; a maioria dos que trabalham no campo está sendo aberta e transparente sobre seus planos e trabalhando de forma colaborativa para um desfecho comum”, observa.

Também indagado sobre o fato de que talvez uma vacina recombinante não seja suficiente para promover a imunização a longo prazo e que para isso seria necessária uma vacina viva, o Dr. Kaye reconhece que pode ser o caso, mas atenta que estudos de vacinas humanas serão exigidos para realmente entender a longevidade das respostas imunes induzidas por elas. “Infelizmente, dados de vacinas adenovirais semelhantes às usadas na pandemia de SARS-CoV-2 são complexos de interpretar devido à rápida disseminação do vírus e ao surgimento de variantes”, completa. Ainda segundo ele, é provável que exista um equilíbrio mais à frente. Por um lado, há a longevidade comprovada da memória associada à infecção viva única, embora quanto tempo a memória persiste em humanos usando cepas de vacina atenuadas em dose única seja atualmente desconhecida. “No entanto, as vacinas vivas podem enfrentar desafios associados à logística em ambientes endêmicos do país, por exemplo, cadeia de frio. Por outro lado, uma vacina não-viva pode exigir reforço, mas poderia se beneficiar consideravelmente com a facilidade de entrega através da infraestrutura existente”, compara.

O Dr. Kaye se considera um forte defensor da ideia de que precisamos experimentar diferentes plataformas e que, dada a diversidade das leishmanioses e a variação nos ambientes onde a vacinação pode ser usada (profilático vs terapêutico; nômade rural vs populações urbanas; países de renda média vs países de baixa renda), pode não ser um caso de tamanho único para todos. “No entanto, é surreal pensar que podemos projetar uma vacina perfeita para todas as leishmanioses trabalhando com dados de ensaios clínicos tão limitados. O que, infelizmente, ainda falta é uma plataforma de financiamento para sustentar e expandir a atividade de ensaios clínicos por um período de tempo realista para fornecer resultados (incluindo na memória imunológica). A abordagem passada de financiamento fragmentado de curto prazo serve apenas para estender os prazos de desenvolvimento, aumentar a competitividade, limitar o envolvimento dos pesquisadores e, em última análise, tornar a perspectiva de uma vacina mais distante do que precisa ser”, pontua. Por fim, o Dr. Kaye espera que uma vacina para a leishmaniose humana seja disponibilizada sem fins lucrativos.

Vacinas Brasileiras

O professor de Parasitologia Clínica da Escola de Farmácia da Universidade Federal de Ouro (UFOP), Alexandre Reis, lembra que o Brasil foi pioneiro no desenvolvimento, testes e utilização de vacinas para Leishmanioses seja tegumentar e/ou Leishmaniose visceral. Ele menciona que o “Pai das vacinas de Leishmanioses” foi o professor Wilson Mayrink (in memoriam) que desenvolveu a primeira vacina (pentavalente e posteriormente monovalente) produzida industrialmente em condições GMP e testada em diversos ensaios clínicos para leishmaniose tegumentar americana (LTA). Em seguida, o professor ainda empregou esta vacina no tratamento da LTA associada ou não ao glucantime (imunoterapia ou imunoquimioterapia). Posteriormente, o professor Odair Gernaro (in memoriam) realizou os primeiros ensaios clínicos em áreas endêmicas com vacinas de primeira geração (antígenos rompidos em ultrassom) na área endêmica de Montes Claros (Minas Gerais). Nesta época utilizavam antígenos homólogos (L. infantum) e heterólogos de L. braziliensis e L. amazonensis contra leishmaniose visceral canina associados ao adjuvante BCG. Logo após, o professor Reis realizou vários testes com a vacina LBSAp – Leishmania braziliensis + Saponina como adjuvante e mostrou a eficácia desta vacina.

A primeira vacina contra LV canina foi desenvolvida pela professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Clarisa B. Palatnik de Sousa, e seus estudos culminaram com a produção da Leishmune, primeira imunizante mundial contra a leishmaniose visceral canina. Hoje esta vacina não se encontra mais no mercado. “Outra conquista na área de vacinas contra a LVC foi obtida pela professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dra. Ana Paula Mora Fernandes, que junto com o Dr. Ricardo Gazzinelli, desenvolveu a segunda vacina contra LVC, que foi para o mercado com o nome de Leish-Tec®”, ressalta o professor Reis.

Atualmente há outras vacinas em estudo por grupos de pesquisas brasileiros e dentre elas está a desenvolvida por vacinologia reversa (bioinformática), uma quimera polipeptídica que vem sendo testada com alguns adjuvantes e demonstrando ótimos resultados em modelos murinos (camundongos e hamster), vacinas que foram desenvolvidas sob supervisão do vacinologista Dr. Reis.