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Peste: ameaça silenciosa e problema de saúde pública mundial

A peste pulmonar ou pneumônica é muito grave e pode ser fatal, com taxas de mortalidade em humanos próximas a 100% se não tratada

08/01/2020
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O desenvolvimento de antibióticos diminuiu a taxa de mortalidade da peste, mas a doença ainda constitui um problema de saúde pública e de rápida disseminação

A história da peste ao longo das civilizações é recheada de narrativas épicas que abraçam ciência, sociedade, artes e religiosidade, já que a doença foi atribuída à punição divina contra os homens em diversos momentos. Na Era Cristã foram descritas três pandemias que dizimaram milhões de pessoas. A primeira, a peste de Justiniano (cerca de 500 anos depois de Cristo), iniciou-se no Egito e disseminou-se amplamente pela Ásia, África e Europa. A doença vitimou mais de 100 milhões de pessoas. A segunda, a Peste Negra (Idade Média), teve início na Ásia e entendeu-se por toda a Europa e parte do Norte da África. A Peste Negra dizimou cerca de 30% da população europeia. A terceira, pandemia contemporânea, começou no interior da China e chegou a Hong-Kong em 1894 e de lá se espalhou para todo o mundo através de navios.

As principais formas clínicas da peste são a bubônica (mais comum, transmitida pelas pulgas) a pulmonar (forma mais grave e mais perigosa pelo potencial de rápida disseminação) e a peste septicêmica (na qual não há reações ganglionares visíveis, e geralmente ocorre na fase terminal das outras formas). Sem tratamento adequado, a taxa de mortalidade da peste pneumônica pode chegar a 100%, contra 60% da peste bubônica. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 2010 e 2015 foram notificados 3.248 casos de peste bubônica em todo mundo, com 584 mortes. Desde o ano 2000, 95% dos casos se concentram no continente africano. Em 2018 ela foi classificada pela OMS como uma infecção reemergente. Além de Madagascar, entre 2010 e 2015, foram reportados casos e mortes na Uganda e Tanzânia, na África; Bolívia, Peru, Estados Unidos, nas Américas; China, Rússia, Mongólia, Quirguistão e Ásia.

No Brasil, a peste é uma doença focal e há duas áreas principais de focos independentes, chamados de “focos do Nordeste” e o foco da “Serra dos Órgãos”. Os surtos registrados entre 1902 até 1960, em Pernambuco (PE), colocaram o estado em posição de alerta nos cenários nacional e internacional, mas também de destaque na produção de conhecimento, reconhecida até hoje. É lá que se encontra a maior coleção de Yersinia pestis da América Latina e a única do País, com 917 cepas (culturas bacterianas). Pernambuco conta também com o Serviço de Referência Nacional em Peste (SRP) da Fiocruz PE, vigilância mais antiga em território nacional, com mais de 50 anos. Mas será se o silêncio da bactéria em humanos no Estado, depois do último caso registrado nos anos 1980, significa que a Yersínia pestis desapareceu? Ou será se os períodos de seca dos últimos anos podem apenas tê-la calado?

O mundo dificilmente ficará livre da peste

Nos últimos anos, ela ocorreu em países de Madagascar aos Estados Unidos, provando que ela é um problema global e continua sendo potencialmente perigosa. Em novembro de 2019 a mídia noticiou a ocorrência de casos de peste pulmonar ou pneumônica, a forma mais rara, porém mais letal, na China. Os casos da doença não são tão raros por lá, mas surtos com vários casos em pouco tempo não acontecem com frequência. Entre 2009 e 2018, o país registrou 26 casos no total, com 11 mortes confirmadas. Em Madagascar, um surto de peste em 2017 deixou mais de 200 mortos. As populações de roedores aumentaram na Mongólia após secas persistentes, agravadas pelas mudanças climáticas.

De acordo com o Professor Brendan W. Wren, Decano da Faculdade de Doenças Infecciosas e Tropicais da London School of Hygiene & Tropical Medicine (LSHTM), epizootias ou episódios de mortalidade em série (die off, em inglês) ocorrem um tanto frequentemente entre populações de marmotas na China central, onde ela é endêmica. Questionado se os casos da doença na China estão relacionados ao clima favorável à proliferação de roedores (hospedeiros/reservatórios) e pulgas (vetores) que transmitem a bactéria, professor Brendan W. Wren responde que não, mas atenta que o aumento das populações das marmotas pode contribuir. Ainda segundo ele, devemos nos perguntar por que a peste desaparece por longos períodos? Ele observa que condições precárias de higiene, esgotos a céu aberto, lixo acumulado nas ruas e proliferação de favelas vale para ambientes urbanos, mas ele chama a atenção para o fato da maioria dos surtos ocorrerem em zonas rurais.

Independente do tipo de peste que acometeu as pessoas em novembro de 2019, na China, vale ressaltar que a bactéria causadora é a mesma (Y. pestis) em qualquer forma clínica em qualquer país.

Mas a peste não se limitada à China. Além da Ásia, ela continua afetando pessoas da América do Sul, América do Norte e da África. Em 2019, na República Democrática do Congo (RDC), autoridades de saúde relataram mais 12 casos durante a semana que terminou em 16 de novembro elevando o total para 50 casos de peste bubônica este ano na província de Ituri. Do total de casos, oito mortes foram relatadas. A Rússia, com medo da peste na fronteira chinesa intensificou as medidas de controle nas fronteiras. Na primavera do ano passado, a Mongólia colocou sua fronteira com a Rússia em quarentena quando um casal morreu depois de comer carne de marmota infectada, um caso que se acredita estar relacionado a uma forma enterogástrica da peste que evoluiu para septicemia fatal.

Números da peste

O Dr. Terence Lam, do Centro de Proteção à Saúde de Hong Kong (CHP) do Departamento de Saúde (DH), reuniu alguns dados que apresentaremos abaixo.

Globalmente, o número total de casos de peste humana relatados à Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1999 a 2008 foi em média 2.334 casos por ano.

Em 2018, o número total de casos em todo o mundo diminuiu cerca de dez vezes, para 243 casos.

De 2013 a 2018, um total de 2.886 casos foram relatados mundialmente à OMS e os cinco principais países foram: Madagascar (2.323 casos; 80%), República Democrática do Congo (RDC) (410 casos; 410%; 14%), Peru (40). 1%), Estados Unidos da América (EUA) (40 casos; 1%) e República Unida da Tanzânia (36 casos; 1%) 3. Outros países com pequeno número de casos detectados no período incluíram Uganda (22 casos), China continental (5 casos), Mongólia (5 casos), Bolívia (3 casos), Quirguistão (1 caso) e Federação Russa (1 caso).

A pesquisadora Dra. Alzira Almeida, do Serviço de Referência Nacional em Peste (SRP) da Fiocruz PE, enfatiza que apesar da baixa prevalência atual devemos permanecer extremamente vigilantes. “Em focos naturais de peste tem sido observado após várias décadas de silêncio epidemiológico o surgimento repentino de casos humanos o que é desestabilizador para autoridades nacionais ou internacionais”, destaca. Ainda segundo ela, a peste pode determinar significativos impactos nos sistemas de saúde, pondo em risco a estabilidade social, e, por sua rápida disseminação e transcendência, como nos casos de pneumonia pestosa, pode gerar emergências de saúde pública internacional, o que exige notificação à OMS, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional vigente.

Desafios da peste

Durante séculos, a presença da peste como uma doença de caráter persistente e devastador, desempenhou um papel crucial no curso da história. De acordo com o capítulo 85 Peste do livro “Fundamentos das Doenças Infecciosas e Parasitárias” (Elsevier, 2019), que conta com a participação da pesquisadora Dra. Alzira Almeida, a pergunta que se impõe é: por que estudar a peste em pleno século XXI? A melhor resposta é sim, pois, segundo a autora, certamente é o desconhecimento das características epidemiológicas e clínicas da zoonose, bem como de sua terapêutica pela maioria dos profissionais de saúde que pode piorar a situação futura e as consequências que esses fatos podem determinar na saúde das populações.

O professor Brendan W. Wren explica que o grande desafio da peste é a conscientização das pessoas que entram em contato com as populações de roedores e outros mamíferos silvestres. Para ele, não se pode, realisticamente, ter uma estratégia para atacar pulgas. A peste é uma doença em baixa, mas não uma doença erradicada. “Vemos surtos em algumas partes do mundo onde ela persiste entre populações de animais silvestres, como é o caso das marmotas na China central e esquilos-terrestres no oeste americano. Dado que ela é endêmica entre roedores silvestres sua erradicação é impraticável com os recursos científicos e tecnológicos atuais. “Entretanto os números de casos estão abaixo de mil no mundo inteiro e antibióticos são eficazes se administrados a tempo”, acrescenta.

O desenvolvimento de antibióticos no século XX diminuiu a taxa de mortalidade da peste. Entretanto, essa doença continua um problema de saúde pública de certa relevância. Apesar do número de casos reportados ser relativamente baixo, abaixo de mil no mundo inteiro, e os antibióticos serem eficazes, se administrados a tempo a Y. pestis encontra-se inserida na natureza e a sua erradicação é uma condição dificilmente viável. Em Madagascar, por exemplo, algumas das cepas da bactéria que causam a peste adquiriram resistência aos antibióticos. Especialistas reconhecem a necessidade de melhores diagnósticos e vacinas para a peste pneumônica. Uma vacina eficaz será uma solução a longo prazo. É essencial que esta zoonose seja reconhecida na sua situação atual.

Além disso, condições de higiene ruins, esgotos a céu aberto, lixo acumulado nas ruas e a proliferação de favelas contribuem para a propagação da peste em área urbana como acontece, por exemplo, em Madagascar e no Peru.

Existem riscos de pandemia global e de reemergência da peste no Brasil?

Para a pesquisadora Dra. Alzira Almeida, o risco pode ser evitado porque existem recursos científicos e tecnológicos para o controle: conhecimentos científicos, antibióticos para o tratamento dos doentes, inseticidas para controle das pulgas, rodenticidas para controle dos roedores, medidas de quarentena.

Em relação ao Brasil, ela esclarece que a peste atualmente está em uma fase silenciosa: não há casos humanos, mas a bactéria continua circulando nas áreas focais, evidenciado pela presença de anticorpos antipestosos nos animais sentinela detectado nas atividades de vigilância sorológica. Os riscos são:

– Reativação dos focos pelo aumento de roedores/reservatórios e pulgas/vetores em consequência de mudanças climáticas ou outras causas

– Reintrodução acidental pela vinda de pessoas infectadas de outros focos ativos de outros países (ou animais, pulgas);

– Introdução intencional por atividade de bioterrorismo.

Para uma doença que afeta os seres humanos há séculos, ainda há muito que desconhecemos sobre ela que continua a merecer o interesse de cientistas e historiadores, que seguem fazendo descobertas sobre ela.…